I - A competência para dirigir o inquérito pertence ao Ministério Público e a intervenção do Juiz, nesta fase, é pontual e excepcional. Tal resulta da estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal que significa, fundamentalmente, que a acusação tem que ser deduzida por um órgão distinto do julgador. De resto, a vinculação temática do tribunal, a garantia de que o juiz do julgamento não interveio na definição do objecto do processo e a garantia de independência do Ministério Público em relação ao juiz, constituem corolários decisivos do princípio do acusatório. Todavia, o princípio do acusatório e o facto da direcção do inquérito competir ao Ministério Público, não significa que, ultrapassada a fase de inquérito, o juiz não possa sindicar a legalidade dos actos praticados nessa fase.
II - Acontece que a falta de notificação da acusação ao arguido não afecta as suas garantias de defesa, já que, chegado o processo à fase de julgamento, e tendo o Tribunal conhecimento do paradeiro do arguido, será o mesmo notificado da acusação - podendo então requerer instrução. Estamos, assim, perante uma irregularidade com previsão no n.° 1 do art.° 123° do Cód. Proc. Penal, e não no n.° 2.
III - A falta de notificação da acusação do Ministério Público ao arguido constitui uma irregularidade que tem de ser arguida pelo interessado, no caso o arguido, no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso. Mas ainda que seja entendimento do Juiz que é de reparar oficiosamente a irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao Ministério Público essa reparação.
IV - Quando o n.° 2 do art.° 123° do Cód. Proc. Penal, prevê a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” quer dizer que a autoridade judiciária que detecta a irregularidade pode tomar a iniciativa de reparar essa irregularidade, determinando que os respectivos serviços diligenciem nesse sentido, não ordenando a remessa dos autos ao Ministério Público, pois que tal situação contém uma implícita ordem para que este proceda à notificação da acusação ao arguido - decisão que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.
Proc. 1333/18.5T9TVD.L1 5ª Secção
Desembargadores: João Carrola - Luís Gominho - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
Acordam, em conferência, na 5a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,
I.
No Processo Comum com o n.° 1333/18.5T9TVD que corre termos no Juízo Local Criminal de Torres Vedras, Comarca de Lisboa Norte, em que é arguido MCE... e assistente FS..., Lda, na sequência de despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz titular dos autos que ordenou a remessa dos mesmos aos Serviços do Ministério Público por não se mostrar ter sido efectuada a notificação da acusação ao arguido, veio o Ministério Público interpor o presente recurso pedindo que seja substituído o despacho recorrido por outro que receba a acusação deduzida pelo M.° P.° por se considerar notificado o arguido ou, caso se considere que o mesmo não está ainda notificado, determine a reparação dessa irregularidade pela secretaria do Juízo Local Criminal.
Para tais pretensões, formulou o recorrente M.° P.° as conclusões que se transcrevem:
1.°
O arguido MCE... foi devidamente notificado da acusação particular contra si deduzida, a qual recebeu no dia 20.03.2019, pelas 11h46m, na morada por si indicada no Reino Unido, como comprova a pesquisa que pelo número de registo do correio no sítio dos CTT e que foi efectuada depois de vários meses de espera por um aviso de recepção que nunca foi devolvido pelos correios britânicos.
2°
Contudo, depois do processo ter sido remetido à distribuição, a Mm.a Juiz a quo proferiu despacho onde declarou que a pesquisa da base de dados dos CTT não valia como prova de recepção da notificação e ordenou a devolução do processo ao Ministério Público para que este procedesse à junção de uma prova cabal da notificação da acusação ao arguido (ou seja do aviso de recepção que muito provavelmente se extraviou).
3.°
Porém, para além da pesquisa da base de dados fazer prova da recepção da notificação pelo arguido, verifica-se que a decisão recorrida padece desde logo de falta de fundamentação pois não indica qualquer norma jurídica, nem sequer apresenta razões lógicas que sustentem a impossibilidade da prova do recebimento da notificação por via da pesquisa pelo número de registo do correio, motivo pelo qual foi violado o art. 97.°, n.° 5 do Código Penal.
4.°
Contudo, ainda que se entendesse que não havia prova da notificação da acusação ao arguido ou até mesmo que essa notificação tinha sido omitida, tal omissão consubstancia apenas uma mera irregularidade que, por não afectar os direitos do arguido, não é de conhecimento oficioso e depende de arguição pelo interessado no prazo de 3 (tês) dias cfr. art. 123.°, n.° 1 do Código de Processo Penal.
5.º
Mas ainda que se considerasse que estamos perante uma irregularidade de conhecimento oficioso (cfr. art. 123.°, n.° 2 do Código de Processo Penal) a ordem da Mm.a Juiz a quo tendo em vista a sua reparação jamais poderá ser dirigida ao Ministério Público que, por ser uma magistratura independente e autónoma não está sujeita ao cumprimento de quaisquer ordens emanadas pela Mm.a Juiz.
6.°
Assim, as diligências tendentes à reparação da irregularidade conhecida pela Mm.a Juiz deverão ser realizadas pelos serviços do Juízo onde exerce funções, sendo ilegal e inconstitucional, por violar os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público, a ordem para devolução dos autos ao Ministério Público com vista à reparação da irregularidade conhecida pela Mm.a Juiz a quo.
7.º
Assim sendo, porque o despacho recorrido violou o disposto nos arts. 97.°, n.° 5; 123.°; 311.° e 312.° do Código de Processo Penal, bem como os arts. 32.° e 219.° da Constituição da República Portuguesa, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, e determinando-se ainda que o despacho recorrido seja substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público (por se considerar notificado o arguido ou, não o tendo sido, por não estar em causa qualquer irregularidade de conhecimento oficioso) ...
8.°
... ou, ainda que se considere que o arguido não está notificado, que estamos perante urna irregularidade e que a mesma é de conhecimento oficioso, substituindo-o por outro despacho que determine a reparação dessa irregularidade pela secretaria do Juízo Local Criminal de Torres Vedras — Juiz 2.
Não houve contra-alegações.
Tal recurso veio a ser admitido por despacho de 20.09.2019, tendo sido atribuído ao mesmo, na parte que agora interessa, o efeito meramente devolutivo, com subida imediata e em separado nos termos dos art.°s 406° n.° 2, 407°, 408° a contrario sensu, todos do CPP.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta elaborou parecer em que, aderindo aos fundamentos do recurso, propugna pela sua procedência, suscitando, no entanto, a questão relativa ao efeito atribuído ao recurso que entende ser de fixar como suspensivo como havia sido requerido na respectiva interposição pelo recorrente.
No exame preliminar a que se refere o art.° 417° n.° 1 CPP foi alterado o efeito do recurso para suspensivo nos termos do art.° 408° n.° 3 CPP.
II.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
A decisão sob recurso é a seguinte:
Devidamente compulsados os autos, verifica-se que o arguido nunca foi
constituído enquanto tal, bem como nunca prestou TIR.
Foi determinada a notificação da acusação particular deduzida (a que o MP aderiu) por via postal registada, com AR para a morada do arguido em Oxford, United Kingdom.
Remetida a devida notificação, a verdade em que ainda não se mostra junto o comprovativo da notificação (AR devidamente assinado).
A pesquisa dos CTT de fls. 130 não faz prova de notificação.
Neste sentido, os presentes autos foram remetidos à distribuição desconhecendo-se se, efectivamente, o arguido se mostra regularmente notificado.
Neste sentido, devolva os autos ao MP para que encete diligências no sentido da junção da prova cabal da notificação do arguido (AR devidamente assinado).
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série 1-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no n° 2 do art. 410° do Cód. Proc. Penal.
Assim, cumpre averiguar se, devido a não confirmação ainda nos autos da efectiva notificação do despacho de acusação ao arguido, podem os autos, já remetidos para a fase de julgamento, ser devolvidos aos Serviços do Ministério Público para reparar tal irregularidade.
Compulsados os autos, verificamos que o arguido nunca foi ouvido nessa qualidade no inquérito, não prestou TIR e, por requerimento subscrito pelo seu defensor — fls. 33 dos presentes —, comunicou aos autos a sua morada, sita no Reino Unido.
Para esta morada e por via postal registada com A/R, foi determinada, pelo titular do inquérito, a notificação ao arguido da acusação, não se mostrando nos autos feita qualquer junção desse A/R, assinado pelo arguido.
A fls. 36 dos presentes encontra-se junto print extraído do site dos CTT, relativo ao acompanhamento do registo postal, dele constando a informação Objecto entregue na data de 2019/03/20.
Não estando aqui em causa saber se a notificação foi efectivamente entregue ao destinatário, também não importa aqui dilucidar se a notificação foi, ou não, feita de forma irregular, mas, antes, se o Juiz do processo tem poderes para determinar ao Ministério Público a prática de qualquer acto na fase anterior de Inquérito.
A competência para dirigir o inquérito pertence ao Ministério Público (cfr. art.°s 219° da Constituição da República Portuguesa e 263° do Cód. Proc. Penal) e a intervenção do Juiz, nesta fase, é pontual e excepcional- mormente os estabelecidos no art.° 268° CPP.
Tal resulta da estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal (consagrada no art.° 32°, n° 5, da CRP) que significa, fundamentalmente, que a acusação - que define e fixa o objecto do processo, imputando um crime a determinada pessoa - tem que ser deduzida por um órgão distinto do julgador. De resto, a vinculação temática do tribunal, a garantia de que o juiz do julgamento não interveio na definição do objecto do processo e a garantia de independência do Ministério Público em relação ao juiz, constituem corolários decisivos do princípio do acusatório.
Todavia, o princípio do acusatório e o facto da direcção do Inquérito competir ao Ministério Público, não significa que, ultrapassada a fase de inquérito, o juiz não possa sindicar a legalidade dos actos praticados nessa fase.
Tendo sido deduzida acusação e não sendo requerida instrução, o processo segue para a fase de julgamento, cabe, então, ao juiz (de julgamento) pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, nos termos do art.° 311°, n° 1, do Cód. Proc. Penal.
Mostra-se actualmente pacífico que no despacho a que se refere aquele art.° 311° CPP não é admissível ao juiz censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação de forma a abranger outros factos e/ou outros agentes, ou, simplesmente, para reformular a acusação (cfr. acórdão do TRE, de 11.07.1995, in CJ XX, tomo IV, p. 287), as opiniões já divergem quando se procura saber se o juiz (de instrução ou de julgamento) pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que proceda ao eventual suprimento de uma nulidade de inquérito ou para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido.
Essas opiniões passaram por defender que o juiz pode devolver os autos ao Ministério Público se entender que não foram efectuadas todas as diligências necessárias para a notificação da acusação ao arguido (assim, e para além do acórdão citado no despacho recorrido, cfr. o acórdão do TRP, de 09.05.2001, in CJ XXVI, tomo III, p. 230) com o argumento de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa e, aproximando-nos da questão agora posta no recurso, uma deficiente notificação é susceptível de afectar o direito de defesa do arguido — na medida em que deste faz parte o direito conferido ao arguido de, uma vez deduzida acusação contra si, requerer a abertura da instrução, com vista a evitar a sua submissão a julgamento, pelo que se imporia a possibilidade da sua reparação oficiosa, nos termos do disposto no n° 2 do art. 123° do C. Penal — no mesmo sentido cfr. o acórdão do TRC, de 24.11.1999, in CJ XXIV, tomo V, p. 51.
Acontece que a falta de notificação da acusação ao arguido não afecta as suas garantias de defesa, já que, chegado o processo à fase de julgamento, e tendo o Tribunal conhecimento do paradeiro do arguido, será o mesmo notificado da acusação — podendo então requerer instrução, para o que disporá do prazo legal normal estabelecido no art.° 287° n.° 1 CPP.
Estamos, assim, perante uma irregularidade com previsão no n.° 1 do art.° 123° do Cód. Proc. Penal, e não no n.° 2. Desta forma, a falta de notificação da acusação do Ministério Público ao arguido constitui uma irregularidade que tem de ser arguida pelo interessado, no caso o arguido, no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso (neste sentido, cfr. o acórdão do TRE, de 14.04.2009, in CJ XXXIV, tomo II, p. 294).
Mas ainda que seja entendimento do Juiz que é de reparar oficiosamente a irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao Ministério Público essa reparação. Quando o n.° 2 do art.° 123° do Cód. Proc. Penal, prevê a possibilidade de ordenar-se oficiosamente a reparação quer dizer que a autoridade judiciária que detecta a irregularidade pode tomar a iniciativa de reparar essa irregularidade, determinando que os respectivos serviços diligenciem nesse sentido, não ordenando a remessa dos autos ao Ministério Público, pois que tal situação contém uma implícita ordem para que este proceda à notificação da acusação ao arguido — decisão que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.
De facto, sendo autónomas a intervenção do Ministério Público no inquérito e a do Juiz na fase da instrução e/ou do julgamento, não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunçã o (cfr. o acórdão do STJ, de 27.04.2006 (pesquisado in www.dgsi.pt) —assim, também, Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2° edição actualizada, págs. 790/791) que, em anotação ao artigo 311° defende que pelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público (...) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito e reformular a acusação, incluindo irregularidades da notificação da acusação.
Para além destas referências doutrinárias e jurisprudenciais mostram-se relevantes e no mesmo sentido as referidas nas motivações de recurso, cuja actualidade e pertinência para a questão se mantêm.
Não pode pois deixar de proceder o recurso.
III.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro em conformidade com o disposto no art.° 311°, n.° 2 do CPP.
Não são devidas custas.
Feito e revisto pelo 1° signatário.
Lisboa, 26 de novembro de 2019
João Carrola
Luís Gominho