Tendo as escutas sido determinadas e efetuadas de acordo com as exigências legais, são estas um meio legítimo de obtenção de prova e a sua transcrição constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127.° do Código de Processo Penal.
Sendo embora as escutas um meio de obtenção da prova, as conversações que através destas se recolhem constituem um meio de prova, cujo conteúdo depois de transcrito e junto ao processo, passa a constituir prova documental, submetida ao princípio da livre apreciação da prova: as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art.º 127º do Código de Processo Penal).
As transcrições das escutas telefónicas - prova documental - podem mesmo surgir como único meio de prova a sustentar a convicção do tribunal.
Proc. 7418/18.0T9LSB.L1 5ª Secção
Desembargadores: Sandra Ferreira - Sandra Oliveira Pinto - -
Sumário elaborado por Carolina Costa
_______
I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo 7418/18.0T9LSB que corre termos no Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 21, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, a 18.10.2023 foi proferido acórdão condenatório contra AAA de cujo dispositivo consta o seguinte [transcrição]:
“8. Decisão
Pelas razões de facto e de direito supra enunciadas, considerando o enquadramento jurídico exposto, as Juízas que constituem este Tribunal Colectivo, decidem:
a) Absolver todos os arguidos da co-autoria material do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22.01 de que vinham pronunciados;
b) Condenar o arguido AAA pela co-autoria material de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.°, alínea a) do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C, anexa a esse diploma, na pena de 3 (três) anos de prisão;
c) Ao abrigo do disposto no disposto nos artigos 50.°, 51.°, n.° 1, alínea c) e 53.°, todos do Código Penal suspender na sua execução a referida pena de prisão, pelo período de 3 (três) anos, com regime de prova, e subordinada ao dever de o arguido entregar à instituição Ares do Pinhal, ao longo de todo o
período da suspensão, a quantia mensal de €150.0 (cento e cinquenta euros). perfazendo o montante
global de €5.400.0 (cinco mil e quatrocentos euros). pagamento que terá de comprovar
mensalmente nos autos;
(...)
h) Condenar ainda os arguidos AAA, BBB e CCC no pagamento das custas processuais, fixando-se em 3 (três) UC’s a taxa de justiça devida por cada um dos arguidos, que ficam igualmente responsáveis pelo pagamento dos honorários devidos aos Exmos. Defensores oficiosos nomeados, nos casos aplicáveis;
i) Ao abrigo do disposto nos artigos 109.° e 110.° do Código Penal, 35.°, n.° 2, 39.°, n.° 3 e 62.°, n.° 6 do Decreto-Lei n.° 15/93 de 22/01, declarar perdidos a favor do Estado o produto estupefaciente e invólucros onde estava acondicionado, o telemóvel de marca Samsung, o cofre e a mala da marca desportiva da marca “Gola”, determinando a sua destruição.
Após trânsito, caso se mantenha a condenação em pena de prisão em medida igual ou superior a 3 (três) anos, ainda que suspensa na sua execução, determino se solicite ao INML a recolha de amostra do perfil de ADN do arguido AAA e a sua inserção em base de dados de perfis de ADN, ao abrigo do disposto nos artigos 1.°, 8.°, n.° 2, 15.°, n.° 1, alínea e), 16.°, 17.° e 18.°, n.° 3, todos da Lei n.° 5/2008, de 12.02.
A recolha é obrigatoriamente precedida do cumprimento, por escrito, do direito de informação ao arguido, como previsto nos artigos 9° e 17.°, n.° 3, alínea b), da referida Lei.
Informe o INML da pena aplicada ao(à) arguido(a).
Proceda-se ao depósito do acórdão - artigo 372.°, n.° 5 do Código de Processo Penal.
Após trânsito:
- Remeta boletins à DSIC;
- Cumpra-se o disposto no artigo 64.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 15/93 de 22 de Janeiro;
- Comunique o acórdão à DGRSP, solicitando a elaboração de plano de reinserção para os arguidos (artigo 494.° do Código de Processo Penal).”
I.2 Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso para este Tribunal da
Relação, o arguido AAA, com os fundamentos expressos nas respetivas motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“CONCLUSÕES
1 - O recorrente foi condenado “em co-autoria material de 1 (um) crime tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C, anexa a esse diploma, na pena de 3 (três) anos de prisão; tendo-se, porém, decidido “suspender na sua execução a referida pena de prisão pelo período de 3 (três) anos, com regime de prova, e subordinada ao dever de o arguido entregar À INSTITUIÇÂO Ares do Pinhal, ao longo de todo o período da suspensão, a quantia mensal de 150,00€ (cento e cinquenta euros), perfazendo o montante global de 5.400,00€ (cinco mil e quatrocentos euros), pagamento que terá de comprovar mensalmente nos autos;
2 - Deu o tribunal a quo como provados os seguintes factos com relevo para a situação do ora recorrente:
“8. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos nos dias 3.08.2018, 15.04.2019 e durante o mês de Julho de 2020, o arguido AAA decidiu entregar produtos estupefacientes a terceiros, designadamente canábis, a troco de quantias monetárias.
9. Para tanto, o arguido AAA incumbiu as arguidas BBB e CCC de guardar estupefacientes nas suas habitações.
10. A arguida BBB também recebia dinheiro de compradores de estupefacientes que posteriormente entregava ao arguido AAA.
11. Pelo desenvolvimento da referida actividade, AAA (entregava) a BBB quantias monetárias não concretamente apuradas.
12. no dia 0.07.2020, pelas 10h20, o arguido AAA encontrava-se na sua residência, então situada na Rua Cidade de S. Paulo, 56, B, São Marcos, em Sintra.
13. Nessas circunstâncias, o arguido AAA detinha na sua residência, entre outras coisas, uma embalagem que continha canábis (resina), com o peso líquido de 484,300 g, e um telemóvel de marca Samsung.
14. O arguido AAA destinava, pelo menos em parte, o sobredito produto estupefaciente a terceiros, a troco de recebimento de quantias monetárias.
15. Os arguidos AAA e BBB actuaram em conjugação de esforços e vontades, no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o desígnio conseguido de receber e ter consigo o mencionado produto estupefaciente, cujas características natureza e quantidade conheciam, com o propósito de entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
16. A arguida CCC actuou em conjugação de esforços e vontades com AAA e BBB, no desenvolvimento de um plano previamente arqtuitectado, com o desígnio conseguido de receber e ter consigo produto estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conhecia, sabendo que se destinava a ser entregue a terceiros, a troco de quantias monetárias.
17. Agiram os arguidos AAA, BBB e CCC de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”
4 - O recorrente impugna a seguinte factualidade dada como provada: pontos 8, 9, 10, 11, 14, 15 e 16.
5 - Com efeito, inexistem quaisquer elementos de prova que pudessem válida e legalmente permitir ao Colectivo dar como provada tal factualidade.
6 - Apenas com base no teor de algumas escutas que nem sequer têm encadeamento cronológico mas sobretudo que não têm qualquer outro elemento de prova que pudesse confirmar o teor das conversas havidas.
7 - Como bem já se decidiu, entre tanto arestos:
“1 - Ser escutado a falar sobre estupefacientes, a referir a sua qualidade e falar na sua aquisição não são actividades ilícitas. A concretização desses diálogos é que é uma actividade ilícita. E essa concretização não pode ser dispensada.
2 - Estas actividades são relevantes porque indiciárias e demonstrativas de um eventual ambiente envolvente, mas têm como requisito essencial a prova de – ao menos – posse de material ilícito ou actividade outra confirmada por outra forma que revele ou demonstre a posse e/ou tráfico de substâncias ilícitas.
3 - O que não se pode fazer é presumir a posse e tráfico a partir de escutas telefónicas.
4 - Isto porquanto as escutas telefónicas não são um meio de prova, são um meio de obtenção de prova. São uma forma de obter prova, não são a prova de tráfico.” (acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 06/10/2020, no âmbito do Proc. n.° 90/16.4 JASTB.E1 ).
8 - Assim, os factos impugnados dados como provados representam uma violação do princípio da livre apreciação da prova que deve ater-se no princípio da legalidade, razão pela qual ficou irremediavelmente comprometido o art. 127. do C.P. Penal.
9 - A decisão proferida deve, pois, ser revogada e substituída por uma outra que expurgue os referidos factos impugnados que deverão ser dado como não provados.
10 - Por mera cautela de patrocínio, e sem conceder minimamente, sempre se dirá ainda que as pena aplicadas ao arguido são uma violência e consubstanciam uma violação ao princípio da culpa e da proporcionalidade.
11 - Militam em favor do arguido o facto de se tratar de uma conduta isolada relacionada com hábitos de consumo de canábis, aliás, abandonados entretanto sendo que desde então que o recorrente conformou a sua vida com o direito e mantém o seu trem de vida familiar e profissional conforme, aliás, resultou provado.
12 - Com efeito, o arguido, ora recorrente, é primário.
13 - Ora, a sentença recorrida violou os arts. 77.°, n.° 1 e 2 do Código Penal, bem como o disposto nos art. 13.° (princípio da igualdade) e art. 18.°, n.° 2 (princípio da proporcionalidade), ambos da Lei Fundamental.
14 - Efectivamente, na medida da pena concreta, deve ser considerada a gravidade dos factos, o grau de ilicitude, a intensidade do dolo, as necessidades de prevenção geral e especial, bem como a personalidade do agente.
15 - A pena de prisão em três anos ainda que suspensa na sua execução e a imposição de dever concretamente aplicadas representam uma violência, repita-se, pois descuraram os fundamentos filosóficos subjacentes à aplicação de uma pena, mormente a sua natureza punitiva, preventiva e ressocializante.
16 - A aplicação das penas, tal como das medidas de segurança, visa a protecção de bens jurídicos a reintegração do agente na sociedade, conforme preceitua o art, 40.°, n.° 1 do Código Penal.
17 - É igualmente sabido que a determinação da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, conforme preceitua o art. 71.°, n.° 1 do Código Penal.
18 - Ora, estes preceitos foram violados pela sentença recorrida que, aliás, padece ainda de inconstitucionalidade em face à violação do princípio da proporcionalidade na aplicação das penas.
19 - A pena de prisão suspensa na sua execução por período de 2 (dois) anos seria proporcional à conduta do arguido e seria igualmente lenitivo bastante para este continuar a conformar a sua vida ao direito.
20 - Todavia, é sobretudo desproporcionada a fixação da imposição de um dever de 150,00€ (cento e cinquenta euros) mensais, ao longo de três anos, tendo em conta as condições financeiras do ora recorrente, as suas responsabilidade financeiras e familiares conforme, aliás, ficou dado como provado.
21 - Deve, pois, ser revogada a imposição do dever em que foi condenado ou, no limite
reduzido o valor e tempo de cumprimento de entrega das contribuições monetárias.
Assim decidindo farão V. Exas. a mais lídima JUSTIÇA!”
O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 23.11.2023.
I.3 Resposta ao recurso:
Efetuada a legal notificação:
- O Ministério Público respondeu ao recurso interposto apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
(...)”IV- C O N C L U S Õ E S
1.ª Para além de estados de alma autocomplacentes e autocentrados, o Recorrente pretendeu pôr em crise a fundamentação factual, com base num fundamento único e errado: a insuficiência das escutas telefónicas para a prova de um crime.
2.ª Mesmo que as escutas constituíssem o único meio de prova (o que nem é verdadeiro), ainda assim o Tribunal a quo não estava impedido de nelas apoiar a sua convicção, como vem sendo afirmado pela Jurisprudência (por todos, o Acórdão R.P., de 19/04/2023).
3.ª Todavia, é falso que o Tribunal a quo tivesse decidido apenas com base nas transcrições, tendo conjugado prova documental, pericial, testemunhal e até as declarações dos arguidos, expondo o seu percurso lógico com fundamentos extensos, objectivos e claros, em prova produzida em julgamento.
4.ª Em momento algum o Recorrente ousou formular uma narrativa alternativa, uma outra convicção, a necessidade de uma decisão diversa, limitando-se, em termo factuais, a um niilismo absoluto.
5.ª Em 3 distintos anos civis (Agosto de 2018, Abril de 2019 e Agosto de 2020, factos 8. e 12.), o Recorrente procedeu a actos de tráfico de estupefaciente, sendo notório que uma actividade que decorra em 3 distintos anos civis não poderá ser considerada uma conduta isolada, antes assumindo uma natureza de
habitualidade (“hábitos”, como vem referido no recurso).
6.ª Ao afirmar a violência da pena ou da condição, o Recorrente acentua a sua autocomplacência, a sua incapacidade de descentração, só lhe importando as consequências, para o próprio, da pena, e não com as consequências do seu tráfico para os consumidores e suas famílias.
7.ª A final, impor-se-á inexoravelmente a improcedência do Recurso, mantendo-se o Acórdão do Tribunal a quo nos seus precisos termos, pela exigência e rigor da análise da prova e o equilíbrio da pena.
J U S T I Ç A !
I.5 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos [transcrição]:
“1. Do objeto do recurso.
Inexiste circunstância que obste ao conhecimento do Recurso, tempestivamente interposto por quem, para tanto, tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime e efeito fixado nos autos e deve ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art. 419.°, n.° 3, do Código de Processo Penal.
Em tempo, o Ministério Público respondeu ao Recurso interposto pelo Arguido AAA do Acórdão de 18/10/2023 do Juiz 21 do Juízo Central Criminal de Lisboa que o condenou pela prática, em co-autoria material, de 1 crime tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.°, alínea a) do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C, anexa a esse diploma legal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, com regime de prova, e subordinada ao dever de o arguido entregar à instituição Ares do Pinhal, ao longo de todo o período da suspensão, a quantia mensal de 150,00€ (cento e cinquenta euros), perfazendo o montante global de 5.400,00€ (cinco mil e quatrocentos euros), pagamento que terá de comprovar mensalmente nos autos.
2. Delimitação do objeto do recurso.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No essencial, e vistas as conclusões da motivação do recurso interposto, o Arguido AAA sustenta que os pontos de facto dados como provados sob os números 8.°, 9.°, 10.°, 11.°, 14.°, 15.° e 16.° do Acórdão recorrido foram incorretamente julgados, daí que o Acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que dê como não provados os mencionados pontos de facto.
O Arguido AAA pugna ainda pela redução da pena e pela revogação da imposição do dever em que foi condenado.
O objeto do recurso mostra-se assim confinado às seguintes questões:
1ª Impugnação sobre a matéria de facto;
2ª Medida da pena;
3. Posição do Ministério Público.
3.1. Posição do Ministério Público na 1.ª Instância.
O Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância respondeu à motivação
do recurso interposto nos termos constantes nos autos, sustentando a improcedência do recurso interposto pelo Arguido AAA.
3.2. Posição do Ministério Público no TRL.
Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos a bem fundamentada resposta do Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1. ª Instância ao recurso interposto pelo Arguido AAA, pugnando no sentido da sua improcedência, conforme melhor se alcança do teor da fundamentação inserta na mesma peça processual referência Citius n.º 98500, para a qual, e por uma questão de economia processual, se remete.
Com efeito, consideramos que o Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância identificou corretamente o objeto do recurso, argumentou com clareza e correção jurídica e indicou jurisprudência pertinente, o que merece o nosso acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objeto do recurso em análise diz respeito, não deixando, no entanto, de sublinhar que não obstante o Arguido AAA ter impugnado expressamente parte da matéria de facto dada provada, indicando os pontos de factos que considera incorretamente julgados, não indicou, no entanto, qualquer prova produzida que tenha a virtualidade de impor, claramente, decisão diversa da decisão recorrida.
Aliás, e sempre com o salvo e devido muito respeito, o Arguido AAA limita-se a divergir subjectiva e genericamente na avaliação da prova produzida com recurso a uma argumentação de valoração apoiada em apelos de vida pessoal e não apoiada em elementos de prova concretamente impositiva de sentido contrário à decidida pelo tribunal recorrido.
Ora, o Tribunal que julga em primeira instância, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados.
Assim, a questão fundamental é que o tribunal recorrido adquiriu a convicção firme sobre o facto e fundamentou o juízo crítico sobre a prova em que suportou tal convicção de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
A ser assim, no exame crítico levado a efeito o Tribunal recorrido seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, tendo esta sido apreciada segundo as regras da experiência e da livre apreciação, nos termos do disposto no art. 127.º do Código de Processo penal.
Aliás, e no que concerne ao valor probatório das transcrições das escutas telefónicas que o Recorrente coloca em causa, e fazendo uma rápida visita à jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que se têm pronunciado sobre esta concreta questão, há que referir desde logo e na esteira dos considerandos do Ac. STJ de 31.5.2006, cujo relator foi Exmo. Senhor Juiz Conselheiro, Dr. Sousa Fonte, diremos que «A transcrição das escutas assim realizadas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art. 127.° do CPP.
E mesmo que as escutas constituam o único meio de prova, o tribunal não está impedido de nelas apoiar a sua convicção, sendo que a não leitura das transcrições das escutas telefónicas em audiência, constando estas dos autos, não impossibilita a realização do contraditório
Por sua banda, no Ac. STJ de 26.9. 2007 (Acórdão paradigmático nesta matéria), relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro, Dr. Santos Cabral, e num caso em que a defesa sustentava que as transcrições das escutas telefónicas quando desacompanhadas de outros elementos de prova tendentes a corroborar o seu conteúdo são insuficientes, tirou-se o entendimento jurisprudencial de que se foram observadas as regras de produção de prova legalmente consignadas nada impede que as intercepções telefónicas constituam o único meio de prova a fundamentar a convicção do tribunal.
Noutro passo, e na senda da jurisprudência do STJ, no Acórdão do TRC de 9.5.2012, relatado pela Exma. Senhora Juíza Desembargadora, Dra. Maria José Nogueira considera-se que as transcrições das escutas telefónicas podem mesmo surgir como único meio de prova a sustentar a convicção do tribunal.
Aliás, no Ac. TRP de 3.12.2012, relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador, Dr. Pedro Vaz Patto, tirado num caso de crime de corrupção, sustenta-se também que as escutas telefónicas não têm que ser corroboradas por qualquer outro meio de prova.
Assim, e após esta rápida incursão pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, não há margem para dúvidas de que as escutas telefónicas ainda que constituíssem o único meio de prova, que não é o caso, mesmo assim seriam suficientes para fundamentar a convicção do tribunal.
Nesta conformidade, entende-se que não deve haver lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, deve improceder a impugnação sobre a matéria de facto.
Pelo exposto, e salvo o devido e muito respeito por diferente opinião, somos do parecer que o recurso interposto pelo Arguido AAA deve ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra o Acórdão recorrido.
I.6 Resposta
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta pelo arguido reiterando a posição já expressa no recurso interposto.
I.7 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.° do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
II - Fundamentação
II.1 Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.° 1 do art.° 412.° do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ], são as conclusões apresentadas pelos recorrentes que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410° do Código de Processo Penal.
Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação dos respetivos recursos interpostos nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
- Do erro de julgamento dos factos elencados em 8, 9, 10, 11, 14, 15 e 16, por a sua prova se basear
apenas em algumas escutas sem qualquer outro elemento de prova que permita confirmar o teor das
conversas havidas.
- Da violação do princípio da livre apreciação da prova.
- Da violação do princípio da culpa e da proporcionalidade na fixação da pena concreta.
- Da desproporcionalidade do período fixado para a suspensão da execução da pena e do dever de
pagar 150,00€ ao longo de três anos em face das suas condições socioeconómicas.
II.2 Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar a fundamentação de facto da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:
“2.1. Factos provados
Da discussão da causa e com relevância para a decisão resultaram provados os seguintes
factos:
1. No dia 25.03.2018, DDD e EEE viajaram juntos de Lisboa para o Rio de Janeiro, no Brasil, a bordo do voo TP075.
2. No Brasil, DDD e EEE receberam de terceiros cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 12222,8g.
3. No dia 07.04.2018, no Aeroporto do Rio de Janeiro, DDD e EEE embarcaram no voo TP074.
4. DDD e EEE levaram para o interior do avião o referido produto estupefaciente, no interior de malas de viagem.
5. A aeronave aterrou no Aeroporto de Lisboa no dia 08.04.2018, cerca das 07h06.
6. Após a aterragem, EEE e DDD recolheram do tapete de recolha de bagagens as sobreditas malas de viagem, que continham a cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 12222,8 g.
7. Seguidamente EEE e DDD foram detidos em flagrante delito pela Polícia Judiciária, no âmbito do processo 127/18.2JELSB.
8. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos nos dias 3.08.2018, 15.04.2019 e durante o mês de Julho de 2020, o arguido AAA decidiu entregar produtos estupefacientes a terceiros, designadamente canábis, a troco de quantias monetárias.
9. Para tanto, o arguido AAA incumbiu as arguidas BBB e CCC de guardar estupefacientes nas suas habitações.
10. A arguida BBB também recebia dinheiro de compradores de estupefacientes, que posteriormente entregava ao arguido AAA.
11. Pelo desenvolvimento da referida actividade, AAA a BBB quantias monetárias não concretamente apuradas.
12. No dia 20.07.2020, pelas 10h20, o arguido AAA encontrava-se na sua residência, então situada na Rua ….., n.° 56, 2B, …, em Sintra.
13. Nessas circunstâncias, o arguido AAA detinha na sua residência, entre outras coisas, uma embalagem que continha canábis (resina), com o peso líquido de 484,3 00g, e um telemóvel de marca Samsung.
14. O arguido AAA destinava, pelo menos em parte, o sobredito produto estupefacientes a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
15. Os arguidos AAA e BBB actuaram em conjugação de esforços e vontades, no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o desígnio conseguido de receber e ter consigo o mencionado produto estupefaciente, cujas características natureza e quantidade conheciam, com o propósito de o entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
16. A arguida CCC actuou em conjugação de esforços e vontades com AAA e BBB, no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o desígnio conseguido de receber e ter consigo produto estupefaciente, cujas características natureza e quantidade conhecia, sabendo que se destinava a ser entregue a terceiros, a troco de quantias monetárias.
17. Agiram os arguidos AAA, BBB e CCC de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Mais se provou, quanto às condições pessoais e de vida dos arguidos:
AAA
18. Na data dos factos o arguido AAA vivia com a companheira e a filha do casal, de cinco anos, em habitação situada em S. …, cedida por um amigo do arguido, que se encontrava fora do país, tendo o agregado familiar ali vivido entre os anos de 2017 e 2020.
19. O arguido manteve relações de vizinhança com as co-arguidas e detinha uma ligação de amizade com o co-arguido no mesmo processo.
20. Após a instauração deste processo judicial, o arguido passou a viver em P…, meio social onde cresceu e onde reside a progenitora, tendo o casal estado separado durante cerca de um ano.
21. Durante esse período, AAA residiu com a mãe, até o casal ter arrendado um apartamento, tendo restabelecido o relacionamento afectivo, sendo a dinâmica familiar descrita como estável.
22. O casal reside próximo da mãe do arguido, podendo esta contar com o suporte do filho, dispensando também algum apoio e acompanhamento à neta.
23. Com o pagamento da renda de casa despende o casal a quantia mensal de € 350,00.
24. O arguido manteve uma anterior ligação afectiva, da qual nasceu um filho, actualmente com 17 anos, que reside com a progenitora, mantendo o arguido uma relação próxima com o filho.
25. Como habilitações literárias o arguido possui o grau equivalente ao 9.° ano de escolaridade.
26. Aos 18 anos o arguido deixou de estudar, passando a trabalhar na área de construção civil, tendo ainda ajudado os pais, que exploravam um estabelecimento comercial.
27. Referiu o início do consumo de haxixe por volta dos 18 anos.
28. Em Abril de 2022 o arguido passou a trabalhar na Câmara Municipal de … com a categoria de assistente operacional de limpeza urbana, com contrato de trabalho efectivo.
29. O arguido aufere um ordenado líquido no valor de € 851,85 euros e a sua companheira trabalha num call center, no sector de vendas, recebendo um ordenado de € 870.
30. Sendo o arguido considerado pelo seu superior hierárquico um trabalhador bem integrado, cumpridor e adequado na interacção pessoal.
31.0 arguido tem valorizado e mantido convívio familiar, ocupando-se a praticar desporto, frequentando ginásio.
32. No certificado do registo criminal do arguido não se encontram averbadas condenações.
(...)
2.2. Factos não provados
Com relevo para a decisão a proferir, não se provaram os demais factos constantes da acusação (para a qual remete o despacho de pronúncia), designadamente:
a) Em data não apurada, anterior a 30.07.2017, os arguidos AAA e FFF e outros indivíduos, cujas identidades se desconhecem, congeminaram um plano, que se traduzia na introdução de cocaína em Portugal, por via aérea e na sua entrega a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
b) Na prossecução do apontado projecto e no decurso do mês de Julho de 2017, o arguido abordou as testemunhas DDD e EEE e propôs-lhes que transportassem consigo cocaína, do Brasil para Lisboa, por via aérea e a troco da quantia global de € 9000.
c) Nessa sequência, o arguido AAA entregou às testemunhas EEE e DDD uma quantia monetária para que estes pudessem tirar os passaportes.
d) O arguido AAA solicitou a EEE para instalar uma aplicação de mensagens peer to peer (ponto a ponto) no telemóvel e disse-lhe que posteriormente receberia mais instruções através dessa plataforma.
e) Posteriormente, o arguido FFF enviou, através de tal sistema, uma mensagem à testemunha EEE e combinaram um encontro.
f) O arguido FFF encontrou-se com EEE e DDD e entregou-lhes uma quantia monetária, destinada a pagar as suas passagens aéreas para o Brasil e de volta a Lisboa, cerca de € 2000.
g) O arguido FFF voltou a encontrar-se com EEE e DDD e entregou-lhes a quantia de € 1300, para custear as despesas da estadia destes no Brasil.
h) A cocaína transportada do Brasil para Lisboa por EEE e DDD destinava-se a ser entregue ao arguido AAA.
i) Após a detenção de EEE e DDD, o arguido AAA decidiu continuar a entregar cocaína a terceiros, a troco de quantias monetárias.
j) A arguida CCC também recebia dinheiro de compradores de estupefacientes, que posteriormente entregava ao arguido AAA.
k) O arguido AAA também entregava a CCC quantias monetárias pela actividade por esta desenvolvida.
l) Os arguidos AAA e FFF agiram em conjugação de vontades e esforços com EEE e DDD e outras pessoas, cujas identidades se desconhecem, no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de introduzir em território nacional a referida cocaína, cujas características, natureza e quantidade conhecia, com o fito de o entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
m) Entre 2018 e 2020 o arguido AAA exerceu a actividade de motorista de táxi, sem contrato formalizado, tendo desenvolvido outros trabalhos, num armazém de peças para automóvel, onde se manteve em diferentes períodos, nos CTT durante dois anos e numa empresa de catering, durante cerca de um ano.
2.3. Motivação da decisão de facto
Tal como resulta do disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal, salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova deve ser apreciada no seu conjunto, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, sendo certo que a livre apreciação da prova não se confunde, em momento algum, com a afirmação de uma convicção fundada na mera subjectividade do julgador. Ao invés, é ponto assente que a livre convicção terá sempre de assentar numa valoração racional e crítica da prova produzida e examinada em audiência, harmonizável com as regras da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo objectivar a motivação da decisão tomada.
No que concerne à prova documental incorporada nos autos, realça-se que a mesma pode ser valorada para a formação da convicção do Tribunal ainda que não tenha sido debatida ou formalmente examinada em audiência, porquanto se trata de prova acessível a todos os sujeitos processuais e, desse modo, mostra-se assegurado o princípio do contraditório.
Assim, considerando o que se deixou exposto, o Tribunal firmou a sua convicção na análise crítica da prova documental constante dos autos, em particular a seguinte:
- Certidão judicial de fls. 1730 a 1742, referente ao acórdão condenatório proferido no âmbito do processo n.° 127/18.2JELSB, que corre termos no Juízo Central Criminal de Lisboa - J18, confirmado por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa;
- Autos de diligência e de busca e apreensão, bem como registos fotográficos que os acompanham de fls. 1356-1357 e 1360-1364 (residência do arguido AAA), 1374 e 1376-1376-G (residência da arguida CCC), 1379-1380, 1382- 1391 (residência da arguida BBB), 1416 a 1421 (residência do arguido FFF), 1396 e 1398-1408 (residência da mãe do arguido AAA) e ainda auto de exame directo e de abertura do cofre apreendido na residência da mãe do arguido, juntos a fls. 1409 a 1411;
- Informação prestada pela Autoridade Tributária relativa aos arguidos, constante de fls. 1784-1785;
- Cópia do contrato de trabalho do arguido AAA de fls. 1868-1873;
- Informação relativa aos códigos atribuídos aos números de telemóvel/IMEI sujeitos a intercepções telefónicas, juntos a fls. 391, 393, 602, 603, 1120 e 1279;
- Sessão 5669, transcrita a fls. 4 do Apenso A, referente ao alvo 9..., correspondente ao arguido AAA, relativa a conversação mantida entre este e um indivíduo do género masculino no dia 3.08.2018;
- Sessão 19591, transcrita a fls. 7-8 do Apenso C, referente ao alvo 10…, correspondente ao arguido AAA, relativa a conversação em voz off mantida entre o referido arguido e um indivíduo do género masculino no dia 15.04.2019;
- Sessões 12022, 12207, 12226, 12653, 12688, 13115, 13433 e 14130, transcritas a fls. 4, 9-10, 10-11, 11-12, 12-14, 14-17, 17-19 e 22-23, todas do Apenso D, referentes ao alvo 111765050, correspondente à arguida BBB, relativas a
conversações mantidas entre a referida arguida e os arguidos AAA e CCC, para além de outros indivíduos não identificados, ocorridas entre os dias 3.07.2020, 4.07.2020, 8.07.2020,12.07.2020, 15.07.2020 e 20.07.2020, o que foi ainda conjugado com a análise dos suportes fonográficos de tais intercepções, compilados a fls. 2200, como adiante melhor se explicitará;
- Relatórios sociais de fls. 2149-2151, 2154-2155, 2159-2161 e 2169-2171;
- CRC’s de fls. 2107 a 2110.
Tal prova documental foi conjugada com o relatório pericial de exame toxicológico de fls. 1640, através do qual foi possível apurar a natureza e quantidade das substâncias apreendidas ao arguido AAA.
Os referidos elementos probatórios foram concatenados com as declarações prestadas pelo arguido AAA em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido - nos termos previstos no artigo 357.°, n.° 1, alínea b) do Código de Processo Penal -, e ainda com os depoimentos das testemunhas AM e VP, inspectores da Polícia Judiciária, sendo certo que os arguidos, como era seu direito, optaram por não prestar declarações em audiência de julgamento.
O mesmo se diga, aliás, quanto a DDD e EEE, arrolados como testemunhas na acusação, mas que em virtude de manterem a qualidade de arguidos em processo conexo (o processo n.° 127/18.2JELSB, como se alcança da informação apurada junto do TEP, constante de fls. 2141 a 2146), recusaram-se validamente a depor no âmbito deste processo, atento o disposto no artigo 133.°, n.° 2 do Código de Processo Penal.
Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, AAA negou a prática dos factos que lhe são imputados, referindo que nunca procedeu à venda de estupefacientes, nem pediu a BBB ou a quem quer que fosse que lhe guardasse uma mala ou uma mochila, negando que alguma vez tivesse a mala apreendida nos autos e, confrontado com o teor de conversas relacionadas com “os cinco mil” - cfr. sessões 12653 e 12688 -, disse que “não percebe essas conversas”.
No tocante ao haxixe que foi apreendido na sua residência, referiu o arguido que era para seu consumo, dizendo que fuma muito, “à volta de 10 gramas por dia”, acrescentando mais adiante que “agora estava a tentar outra vez deixar”, justificando a aquisição daquela quantidade com o facto de assim evitar “ir aos bairros comprar tantas vezes”. Referiu ainda que trabalhava fazendo folgas de outros taxistas, que lhe pagam em dinheiro, auferindo entre € 450 e € 500 mensais, afirmando que pagou € 450 por aquela quantidade de haxixe que lhe foi apreendida, a qual pagou com o último ordenado, sendo que estava de férias quando foi detido.
Esclareceu ainda que sua mulher auferia cerca de € 700 mensais, e comissões sobre a venda de aspiradores, tendo o casal uma despesa mensal de aproximadamente € 400 com as despesas domésticas. Referiu ainda o arguido que a sua mãe ajuda com alimentação e assume o pagamento da escola da neta, filha do arguido. Referiu ainda que tem um outro filho, relativamente ao qual, “quando pode” paga uma pensão de € 150 mensais.
Confrontado ainda com conversação mantida entre BBB e CCC, em que falam da mala, disse que era tudo mentira, apesar de reconhecer ser vizinho de BBB, mas referindo que não são amigos, dizendo que a ajuda, mas apenas com comida, nunca o tendo feito monetariamente.
A testemunha AM limitou-se a referir que participou na diligência de busca e apreensão à residência de AAA, referindo que quem conduziu a investigação foi o seu colega VP.
VP, por seu turno, esclareceu as diligências investigatórias que levou a cabo no âmbito deste processo, que teve a sua génese num outro (o processo n.° 127/18.2JELSB), relacionado com o transporte aéreo de 12 quilos de cocaína do Brasil para Portugal, reconhecendo que, quanto a esse transporte, apurou apenas o que foi transmitido pelos aí arguidos DDD e EEE. Para além disso, explicou as diversas diligências que foram realizadas, já no quadro deste processo, desde Maio de 2018, concretizando a análise que fez dos elementos probatório recolhidos, nomeadamente das intercepções telefónicas efectuadas aos arguidos e, bem assim, o que foi encontrado nas residências de AAA e BBB.
Da análise conjugada de todos os elementos probatórios supra referidos, desde logo se conclui, no que tange à factualidade imputada ao arguido FFF, que a mesma terá de ser dada como não provada, sendo evidente a ausência de elementos probatórios que corroborem esses factos.
Com efeito, como reconheceu a testemunha VP, quanto a FFF, a prova recolhida quanto a este reconduzia-se apenas às declarações que tinham sido prestadas por DDD e EEE no âmbito do processo n.° 127/18.2JELSB que a testemunha tinha reputado credíveis.
Porém, no âmbito da audiência de julgamento realizada nestes autos, DDD e EEE recusaram-se validamente a depor. Perante tal recusa, naturalmente, que o Tribunal não poderá valorar as declarações pelos mesmos prestadas no âmbito do processo n.° 127/18.2JELSB, quer em sede de julgamento, quer em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tratando-se, pois, de em elemento de prova cuja valoração não é legalmente admissível, não podendo “entrar pela janela” o que o legislador não permitiu que “entrasse pela porta”.
Efectivamente, podendo as agora testemunhas arroladas pelo Ministério Público recusar-se a prestar depoimento no âmbito deste processo, atento o disposto no artigo 133.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, não poderia o Tribunal valorar declarações que DDD e EEE prestaram no âmbito de um outro processo, sem que as mesmas pudessem ser sindicadas pela Defesa dos aqui arguidos AAA e FFF, o que, a admitir-se, seria claramente violador dos direitos de Defesa destes arguidos.
Assim, e porque quanto à factualidade relacionada com o transporte aéreo de cocaína apenas subsiste como elemento probatório o acórdão condenatório transitado em julgado proferido no âmbito do processo n.° 127/18.2JELSB, que apenas faz caso julgado quanto às condutas dos arguidos que aí foram julgados e condenados, não tendo sido produzida qualquer outra prova, no âmbito deste processo, que permita imputar aos arguidos AAA e FFF participação nesses factos, o que se revelou determinante para a decisão do Tribunal quanto à factualidade dada como provada e não provada atinente a tal matéria de facto.
Já no que respeita à restante factualidade imputada ao arguido AAA, a prova carreada para os autos revelou-se mais robusta.
Ainda que o arguido tenha negado a prática dos factos que lhe são imputados, nomeadamente no que concerne à venda a terceiros de estupefaciente, ou sequer que deixasse uma mala com estupefaciente à guarda de BBB e CCC, o teor de algumas das conversações telefónicas que foram objecto de intercepção nos autos vão em sentido contrário, antes corroborando - ainda que em parte - o depoimento do inspector VP.
Veja-se a sessão 5669 do Apenso A, relativa a conversação mantida no dia 3.08.2018 entre AAA (N) e um indivíduo de voz masculina (VM) que, no que agora releva, tem o seguinte teor:
“(...) VM - Deixa aqui a outra metade da bolota em casa da tua mãe.
N - Está bem.
VM - Diz-me o sítio, que eu depois dou o dinheiro à tua mãe, quando tiver dinheiro vou
lá dar se entretanto tu não chegares e deixo-te o dinheiro com a tua mãe.
N - Está bom.
VM - Pode ser?
N - Está bem.
VM - Depois tens que me dizer... dizes à tua mãe?
N - Digo! Deixo lá naquele cestinho lá em cima do microondas.
VM - Está bem, está bem, depois eu deixo o dinheiro com a tua mãe, puto!
N-Estábem.
Veja-se ainda a sessão 19591 do Apenso C, relativa a conversação mantida no dia
15.04.2019 resultando claro, não só da transcrição, mas em particular da audição dessa mesma
sessão que o arguido AAA (N) está a efectuar uma chamada telefónica, e enquanto
aguarda que atendam mantém uma conversação presencial com um indivíduo de voz masculina
(VM) que, no que agora releva, tem o seguinte teor:
“VM - Preciso de falar contigo uma cena.
N - O quê?
VM - Vais-me arranjar aí umas dez gramas.
VM - É para uns gajos que pagam cem euros cada grama.
VM - Vais ter comigo, a gente vai entregar aos gajos.
N - Então já tens aí cinco.
VM - Eu tenho, mas eu tenho mais dinheiro.
N - Sim, a última vez ficaste com as cinco gramas.
VM - Sim, mas ele não me pagou.
N - Não te pagou, tem de pagar.
VM - Sim, é agora, é agora.
N - Tem de pagar. (...)”
Ora, do teor de tais conversações resulta evidente que o arguido AAA, pelo menos nessas ocasiões, se dedicou à cedência de estupefacientes a terceiros, o que fazia a troco de quantias monetárias, designadamente de canábis que, como é sabido, é muitas vezes acondicionado em formato vulgarmente chamado de bolotas.
O mesmo se diga, aliás, no decurso do mês de Julho de 2020, resultando claro, não só das
conversações mantidas entre as arguidas CCC e BBB, como das conversações desta última como terceiros, que as referidas arguidas, pelo menos no decurso do mês de Julho de 2020 colaboraram activamente com AAA nessa actividade de venda de estupefacientes.
Veja-se, a título de exemplo, a conversa mantida entre as arguidas no dia 20.07.2020, data em que foram executadas as buscas domiciliárias e as arguidas foram confrontadas com os factos aqui em causa, no decurso da sua inquirição na Polícia Judiciária - o que se mostra documentado nos autos - e que consta da sessão 14130 do Apenso D.
Da audição de tal conversa verifica-se que a arguida CCC diz a BBB que sabe que a polícia lhe revistou a casa e que a mala aí foi encontrada - veja-se cerca do minuto 00:50 em que CCC diz “eu sei, eles mostraram-me a mala”, reconhecendo mais adiante na conversa, cerca do minuto 6:00, que disse à Polícia Judiciária onde estava a mala, referindo “eu disse logo onde é que eu guardava aquilo”. Aliás, esta declaração da arguida só corrobora outro elemento probatório constante do processo: o auto de diligência de fls. 1374 e a fotografia de fls. 1376, donde resulta que nesse dia 20.07.2020, no decurso da busca realizada à residência de CCC, esta indicou o local onde habitualmente guardava a mala com estupefaciente.
Ora, considerando o teor dessa conversação entre as arguidas, onde referem claramente o facto de a mala ir para casa de CCC, o receio desta, perguntando a BBB se a mala “tinha coca lá dentro”, o que BBB nega, dizendo “Ele nunca deixou isso na minha casa”, aliado ainda a outras conversas que mantiveram entre si - veja-se a sessão 12226, de 4.07.2020, em que BBB diz a CCC que vai a sua casa num instante buscar a mala, que precisa de ir buscar uma coisa para o AAA e outra para o cunhado de CCC -, e o facto de na casa da arguida BBB ter sido apreendida a mala de marca Gola, tendo presente o quadro de normalidade e as regras da experiência comum que devem pautar o pensamento judiciário, a única conclusão lógica, plausível e expectável que se pode retirar é que a referida mala apreendida em casa de BBB e que já tinha estado também em casa de CCC era entregue por AAA a BBB, a qual continha estupefaciente, que esta guardava e, por vezes, entregava a CCC para que também esta a guardasse na sua casa.
Por outro lado, resulta evidente que as arguidas sabiam que essas suas actuações eram ilícitas, tendo perfeito conhecimento de que a referida mala continha estupefacientes, como bem espelha essa conversação de 20.07.2020 e o receio evidenciado por ambas as arguidas ao aperceberem-se que elementos da Polícia Judiciária tinham largo conhecimento das suas actividades e, bem assim da actividade que vinha sendo desenvolvida pelo arguido AAA. Acresce que em certa ocasião BBB ligou a CCC para ir a sua casa buscar algo para entregar ao cunhado, dizendo-lhe que o seu filho lhe dizia onde estava e CCC deixava lá o dinheiro, sendo evidente da audição de tal conversa que falava, de estupefaciente e dinheiro (veja-se a sessão 13433, de 15.07.2020).
E não se diga que AAA nada tinha que ver com a referida mala que era guardada na casa de BBB e por vezes também na casa de CCC, como o mesmo quis fazer crer em primeiro interrogatório judicial.
Com efeito, em face de todos os elementos probatórios supra referidos, nomeadamente as concretas condutas apuradas quanto ao mesmo nos dias 3.08.2018 e 15.04.2019, aliado ao teor das conversas mantidas entre as co-arguidas, em particular a do dia 20.07.2020, e ainda o facto de o arguido ter na sua posse, nesse mesmo dia, mais de 480 gramas de resina de canábis, levaram a que o Tribunal não conferisse qualquer credibilidade a tais declarações de AAA.
Com efeito, a justificação apresentada pelo arguido para deter essa quantidade de resina de canábis (que asseverou ser para seu consumo exclusivo), já de si pouco verosímil, considerando, por um lado, os rendimentos que o arguido disse auferir e os seus encargos familiares (teria gasto a totalidade dos seus rendimentos do mês para se abastecer de canábis), e, por outro, o facto de o próprio ter dito que “agora estava a tentar outra vez deixar” de consumir - não sendo minimamente lógico que uma pessoa que esteja a tentar parar com o consumo de estupefaciente adquira quase meio quilo de resina de canábis apenas para seu consumo pessoal -, foram claramente abaladas pela demais prova produzida e a que se aludiu supra, resultando evidente para este Tribunal que a referida resina de canábis se destinava, pelo menos em parte, à cedência a terceiros, a troco de quantias monetárias, actividade que, aliás, o arguido já vinha desenvolvendo em anteriores ocasiões, e que também desenvolveu, pelo menos no decurso daquele mês de Julho de 2020.
Efectivamente, para além dessa conversa de 20.07.2020 mantida entre as co- arguidas, importa ainda considerar que ocasiões houve, ao longo desse mês de Julho de 2020, em que BBB esteve a “fazer contas” com o arguido AAA, encontrando-se com o mesmo (veja-se o teor das sessões 12022 e 12207, ambas de 3.07.2020), sendo evidente a familiaridade com que se tratam.
Por outro lado, resultou claro que BBB não se limitava a guardar estupefaciente para o arguido, antes procedendo ao recebimento de quantias monetárias destinadas a AAA - veja-se o teor das sessões 12653 e 12688, ambas de 8.07.2020, em que BBB refere ter recebido de um indivíduo cinco mil euros para entregar ao AAA e que este os foi buscar. Acresce que de tais conversações resultou ainda evidente que BBB era remunerada por essa actividade que desenvolvia para AAA, como bem espelha o teor da sessão 13115, de 12.07.2020, relativa a conversa mantida entre as duas co-arguidas, em que BBB se queixa a CCC do facto de o seu companheiro ter ficado com 150 euros que eram o seu ganho, entregando mais dinheiro do que era suposto a AAA.
Ora, importa ter presente o à vontade com que ambas as arguidas falavam ao telemóvel entre si e com outras pessoas não identificadas, sendo perfeitamente clara e genuína a estupefacção manifestada por ambas quando se apercebem, em 20.07.2020, que a Polícia Judiciária estava a par das suas actividades e de AAA.
Ora, perante tal facto, e sendo certo que nenhuma das arguidas tinha qualquer motivo para querer incriminar o arguido AAA, com quem, aliás, BBB tinha uma relação de grande familiaridade, sendo que o próprio arguido reconheceu que a “ajudava”, nenhuma reserva se suscitou a este Tribunal quanto à genuinidade das conversas mantidas entre as arguidas e de BBB com terceiros não identificados.
Sendo este o percurso lógico efectuado pelo Tribunal para a formação da sua convicção, nenhuma dúvida subsistiu quanto ao facto de o arguido AAA se dedicar à venda a terceiros, pelo menos de resina de canábis, nos moldes que se fez verter nos factos provados.
Já no tocante à cocaína, pese embora do teor das conversações mantidas entre as arguidas BBB e CCC, e dos valores referenciados na sessão 19591 de 15.04.2019 resulte indiciado que o arguido poderia transaccionar também cocaína, a verdade é que poderia ser essa ou qualquer outra substância estupefaciente, sendo certo que ao arguido apenas foi apreendida resina de canábis, pelo que se entendeu que a prova não era suficientemente robusta para imputar ao arguido a concreta venda ou cedência a terceiros de cocaína, o que determinou a decisão do Tribunal quanto a tal factualidade dada como não provada.
Relativamente ao elemento subjectivo inerente às condutas apuradas, o Tribunal concluiu pela sua verificação, de acordo com um juízo de verosimilhança, assente nas regras da experiência comum, no confronto com a demais factualidade objectiva apurada, pois como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4.05.1994 (disponível em www.dgsi.pt). o dolo não é susceptível de apreensão directa por pertencer ao foro íntimo de cada um, pelo que só poderá ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e as regras da experiência que permitam inferi-lo a partir de factos materiais comuns, entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infracção.
Com efeito, em face das condutas objectivas adoptadas pelos arguidos AAA, BBB e CCC, resultou evidente que estes sabiam que as suas acções configuravam actuação proibida e criminalmente perseguida.
Quanto à factualidade apurada relativa às condições pessoais e de vida dos arguidos, considerou-se o teor dos relatórios sociais e CRC constantes dos autos e a que se aludiu anteriormente, sendo certo que quanto ao arguido AAA não se considerou credível que entre 2018 e 2020 o arguido tivesse desenvolvido todas as actividades profissionais que referiu à técnica que reinserção que elaborou o relatório, tanto mais que não apresentou qualquer elemento probatório documental que corroborasse essas declarações, acrescendo o facto de se ter apurado que nos anos 2019 e 2020 o arguido nem sequer apresentou declaração de IRS, o que determinou a decisão do Tribunal quanto à factualidade dada como não provada quanto a este concreto ponto.
II. 3 Apreciação do recurso
Considerações gerais:
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.°, n.° 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.°, n.°s 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.° 2 do artigo 410.° do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido precito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.°s 3 e 4 do artigo 412.° do Código de Processo Penal.
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e ás concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do n° 3, do citado artigo 412.° do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente:
Assim refere Germano Marques da Silva que “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”.
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha, ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
Ora analisada a decisão sob recurso nenhum destes vícios do disposto no art. 410°, n° 2 do Código de Processo Penal se verificam.
II.3.3 – Da impugnação ampla da matéria de facto (art. 412º, nº 3 do Código de Processo Penal)
A impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412°, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente, como sobredito, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus n°s 3, 4 e 6.
Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.
Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.
O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.
O recorrente deverá referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
No caso vertente, o recorrente indica os concretos factos que considera incorretamente julgados pontos 8, 9, 10, 11, 14, 15 e 16 da matéria de facto provada.
Entende o recorrente que inexiste prova que os sustente, porquanto estes factos estão fundados apenas em escutas que são meio de obtenção de prova e inexistem quaisquer elementos de prova que permitam ao tribunal dar como provada tal factualidade.
Lendo a decisão de que se recorre verificamos que estes factos não resultam apenas da análise das transcrições das escutas levadas a cabo e ali indicadas, como menciona o recorrente.
Na verdade da análise da motivação da decisão de facto verificamos que para além, das sessões transcritas de escutas efetuadas (que ali são concretizadas) foi considerada a certidão judicial de fls. 1730 a 1742, referente ao acórdão condenatório proferido no âmbito do processo n.° 127/18.2JELSB, que corre termos no Juízo Central Criminal de Lisboa - J18, confirmado por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa; os autos de diligência e de busca e apreensão, bem como registos fotográficos que os acompanham de fls. 1356-1357 e 1360-1364 (residência do arguido AAA), 1374 e 1376-1376-G (residência da arguida CCC), 1379-1380, 1382- 1391 (residência da arguida BBB), 1416 a 1421 (residência do arguido FFF), 1396 e 1398-1408 (residência da mãe do arguido AAA) e ainda auto de exame directo e de abertura do cofre apreendido na residência da mãe do arguido, juntos a fls. 1409 a 141. Ainda a informação prestada pela Autoridade Tributária relativa aos arguidos, constante de fls. 1784-1785;a cópia do contrato de trabalho do arguido AAA de fls. 1868-1873 e a informação relativa aos códigos atribuídos aos números de telemóvel/IMEI sujeitos a interceções telefónicas, juntos a fls. 391, 393, 602, 603, 1120 e 1279. Mais foram consideradas e conjugadas com estes elementos de prova as declarações prestadas pelo arguido recorrente em primeiro interrogatório judicial de arguido detido e os depoimentos prestados pelos inspetores da Polícia Judiciária.
E foi da análise e conjugação de todos esses elementos que o Tribunal concluiu pela forma vertida.
É certo que parte da fundamentação do Tribunal resulta também da análise que efetuou das sessões transcritas no processo, resultantes das escutas efetuadas nos autos.
Defende o arguido que as escutas são um meio de obtenção de prova e não um meio de prova e assim os factos provados, fundamentando-se neste meio de obtenção de prova, representam uma violação do disposto no art. 127º do Código de Processo Penal.
Germano Marques da Silva defende que enquanto a escuta telefónica é um meio de obtenção de prova, as gravações são já um meio de prova (Curso de Processo Penal, Vol. II, 5.ª edição, pág. 169).
Também na jurisprudência dos tribunais superiores encontramos essa mesma distinção:
Assim se defende no Acórdão do TRC de 09/05/2012, onde se escreve “1. As escutas telefónicas, constituindo, embora, um meio de obtenção de prova, não deixam de ser simultaneamente um meio de prova, dado que, regularmente efectuadas, uma vez transcritas no processo, passam a constituir prova documental.
2. A transcrição das escutas assim realizadas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.° 127°, do Código de Processo Penal, mesmo que não lida nem examinada em audiência.
3. As transcrições das escutas telefónicas - prova documental - podem mesmo surgir como único meio de prova a sustentar a convicção do tribunal”.
Neste acórdão, esgrimindo a questão, escreve-se: “São vários, aliás, os arestos do Supremo Tribunal de Justiça onde se «acolhe» a natureza ambivalente das escutas telefónicas. É o caso do acórdão do STJ de 15.02.2007: Em matéria de escutas telefónicas, tem acentuado este Tribunal que as escutas telefónicas regularmente efectuadas durante o inquérito, uma vez transcritas em auto, passam a constituir prova documental, que o tribunal de julgamento pode valorar de acordo com as regras da experiência ... mas também, entre muitos outros, dos acórdãos de 09.03.1996, 14.11.1996, 20.11.2002, 03.06.2004, 31.05.2006 – [cf, procs. n.° 46690, 48588, 3173/02, 519/03-3, 1412/06- 3.ª].
(...)A questão não é nova e tem sido objecto, no essencial, de resposta unívoca por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, contrariando a tese preconizada pelo recorrente, vd. os acórdãos do STJ de 24.02.1993, 09.11.1994, 05.02.98 – [cf. CJ, 1993, I, 202, CJ, 1994, III, 245, CJ 1998, I, 194].
Posição reafirmada no acórdão do STJ de 31.05.2006 [proc. n.° 1412/06 – 3.ª], onde se mostra consignado: As escutas telefónicas ... são meio legitimo de obtenção de prova; a transcrição das escutas assim realizadas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art. 127° do CPP, mesmo que não lida nem examinada em audiência, porquanto se trata de prova contida em acto processual cuja leitura em audiência é permitida – art° 355° do CPP; ... estando nos autos a transcrição das escutas efectuadas, o arguido sempre poderia ter contraditado, no decurso da audiência, o seu conteúdo e conformidade com os respectivos suportes; se não o fez «sibi imputat», bem como nos acórdãos do mesmo Supremo Tribunal de 15.02.2007, 17.11.2009 e 4.11.2009 – [cf. procs. 06P4092, 169/07.3GCBNV.S1, 680/07.6GCBRG.G1.S1]”.
Também no Acórdão do TRP de 01.05.2016, se escreve: “I - As escutas telefónicas são um meio de obtenção de prova, mas as conversações recolhidas através dessas interceções constituem meio de prova; transcrito e inserido no processo o conteúdo das gravações possa a constituir prova documental submetida ao princípio da livre apreciação da prova.” Posição que foi reafirmada no AC TRP de 19.04.2023 (disponível também em www.dgsi.pt).
Na situação presente o Tribunal a quo valorou o conteúdo de sessões transcritas de escutas levadas a cabo nos autos, mas não se limitou à análise dessas sessões resultando, de forma cristalina, do acórdão sob recurso que foi igualmente tida em conta diversa prova documental, a prova testemunhal produzida e muito concretamente os depoimentos dos inspetores da Polícia Judiciária ali identificados e as declarações do arguido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido (explicando-se as razões pelas quais não se mostraram credíveis).
Ora, tendo as escutas sido determinadas e efetuadas de acordo com as exigências legais, são estas um meio legítimo de obtenção de prova e a sua transcrição constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.' 127.° do Código de Processo Penal.
Em suma, sendo embora as escutas um meio de obtenção da prova, as conversações que através destas se recolhem constituem um meio de prova, cujo conteúdo depois de transcrito e junto ao processo, passa a constitui prova documental, submetida ao princípio da livre apreciação da prova: as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art.º 127º do Código de Processo Penal).
Como se escreve no referido Acórdão do TRP de 19.04.2023 “A aferição indiciária/probatória (consoante a fase do processo) que as conversações transcritas possam ter, enquanto meio de prova (e não como meio de obtenção de prova), dependerá do seu conteúdo e contextos, da colocação dos sujeitos no espaço e no tempo e na interação que tenham entre si, articulados com a conduta delitual que lhes esteja imputada nos autos. A interpretação do conteúdo das conversações telefónicas é estritamente norteada pelas regras da lógica, segundo as normas da experiência comum, numa abordagem marcadamente normativa e conservadora de aferição probatória (como, aliás, sucede com os restantes meios de prova).
Como também é observado no mencionado acórdão do TRP, de 3/3/2021, embora possam assumir, por si só, ou não, um relevo auto-suficiente, a relevância do impacto indiciário das transcrições das escutas tem sido discutido na Jurisprudência, podendo em determinadas circunstâncias ter um valor indiciário acrescido, ou nenhum.
A jurisprudência tem expresso orientações matizadas, oscilando entre a que defende serem as conversações telefónicas aptas a ser valoradas pelo tribunal, em confronto com os demais elementos de prova, constituindo premissas atendíveis na prova indireta (o cotejo das conversações transcritas com outros meios de prova, sobretudo quando através dessas conversações se contextualiza um acontecimento comprovado por vigilâncias coevas ou a seguir realizadas, ou mesmo quando se relacionam com factos ocorridos alguns dias depois; ou quando na sequência
histórica das escutas os interlocutores fazem alusão a entregas de estupefaciente ocorridas recentemente à data).
No entanto, a relevância probatória/indiciária das conversações telefónicas e de SMS transcritos, com mais frequência do que se possa imaginar, pode ter uma importância autónoma, podendo até afirmar-se que, em determinado contexto, constitui prova direta (na classificação entre provas diretas e indiretas), entendida esta como o meio de prova que corporiza expressamente o iter típico do crime cometido pelo agente.
Neste conspecto há a ponderar a relevância das conversações transcritas, face à dimensão típica dos delitos em discussão. Em crimes onde a tutela penal é antecipada a uma gama alargada de atos, como é o caso do delito de tráfico de estupefacientes (que noutros crimes seriam atos preparatórios), essas conversações adquirem uma relevância acrescida como meio de prova, não só para comportamentos típicos de detenção; disponibilidade de estupefaciente para venda, assim como o seu transporte”. “
Deste modo, ao Tribunal a quo não estava vedada a possibilidade de analisar o conteúdo das sessões transcritas como o fez, e da leitura da decisão em apreço resulta claro que o conteúdo dessas sessões/conversações transcritas, foi valorado em conjugação com os restantes meios de prova - depoimentos, declarações do arguido e bem assim com as apreensões decorrentes da busca efetuada na sua residência (484,300gr de canábis resina), surgindo, assim, as conversações transcritas como mais um elemento indiciário que na conjugação e congruência com os demais permitiu a demonstração dos factos nos moldes ali definidos.
O recorrente esquece que o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que os sujeitos especifiquem e indiquem como não corretamente julgados ou se as provas sindicadas impunham decisão diversa.
Porém, a alteração da matéria de facto não decorre, por via do recurso, da mera possibilidade de a prova produzida permitir uma decisão de sentido distinto da tomada pelo julgador.
Exige-se, antes, que essa decisão diversa se imponha por ser evidente ou flagrante o erro do tribunal a quo, em função das provas produzidas, no julgamento da matéria de facto.
Na situação que nos ocupa, a prova documental, testemunhal por declarações e a resultante das conversações transcritas nos autos e as apreensões levadas a cabo na residência do arguido, foram devidamente tidos em conta pelo tribunal, como resulta claramente da motivação constante da sentença sob recurso, que de forma clara estabeleceu o raciocínio efetuado nessa análise e conjugação.
Dessa leitura ressalta um percurso lógico e objetivo, suportado pelas regras da experiência, que permite concluir pela racionalidade e justeza da imputação feita ao arguido/recorrente.
Assim sendo, não houve violação do princípio da livre apreciação da prova.
Aliás, não se verificam quaisquer razões objetivas que justifiquem a modificação da matéria de facto provada (impugnada) e determinem o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal a quo, mas antes se confirmam os fundamentos em que se alicerçou a convicção do tribunal sobre a matéria provada.
Na verdade, o duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância.
Cabe deste modo concluir que, e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Em suma, e como acima expresso, não se encontram razões no recurso apresentado para - a partir das concretas provas produzidas - sobrepor o juízo interpretativo efetuado pelo recorrente àquele efetuado pelo Tribunal a quo , que por isso se deve manter, assim se respeitando a convicção pessoal do julgador no âmbito do uso do principio que vigora neste domínio, o da livre apreciação da prova vertido no art.127º.
Em face do exposto, improcede a pretensão do recorrente de ver alterada a matéria de facto.
Como consequência soçobra também a sua pretensão de absolvição do crime reportado a estes concretos factos, pois que estes e os restantes elencados na factualidade assente consentem e integram a subsunção jurídica deles efetuada no acórdão sob recurso.
II.3.4 – Da violação do princípio da igualdade ( art. 13° da CRP) e da proporcionalidade (art. 18° da CRP) na pena concreta encontrada e na fixação do dever imposto como condição da suspensão da execução da pena.
No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre, antes do mais, atentar, no referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.04.2017, onde se escreve: “Fixada a pena é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação. Relativamente à determinação do quantum exacto de pena será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada”.
A censura que o tribunal de recurso pode fazer sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses fatores na decisão final.
É função do recurso - antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções.
Os poderes deste Tribunal abrangem nesta matéria, entre outras, a avaliação dos fatores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada.
Assim, o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir alterando o quantum da pena concreta quanto ocorrer desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
Quanto à medida da pena:
Em primeiro lugar, porque se refere às finalidades das penas e medidas de segurança, importa ter em conta o disposto no artigo 40.°, n° 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.° 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Por sua vez, decorre do artigo 70.° do Código Penal, sob a epígrafe “critério de escolha da pena”, que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Por fim, do invocado artigo 71.°, n.° 1, do citado diploma legal decorre que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial, determinando o n.°2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata), “considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.
Decorre, por fim, do n.°3 do citado preceito legal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.
Assim sendo, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.
Conclui-se, portanto, que estaremos perante uma pena justa e proporcional quando esta satisfizer as exigências de prevenção geral e especial, atentando-se no caso concreto, e não exceder a medida da culpa do agente.
Aqui chegados:
Analisando o caso concreto, à luz dos considerandos acabados de expor, constata-se que o arguido foi condenado numa pena de 3 anos de prisão pela prática, em coautoria de um crime de tráfico de menor gravidade previsto e punível pelo art. 25º do DL 15/93 de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C, cuja moldura penal abstrata se situa entre 1(um) ano e 5 (cinco) anos de prisão.
No acórdão sob recurso escreveu-se “(...) Conjugando o disposto nos artigos 40.° e 70.° do Código Penal, resulta que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e o reforço da consciência jurídica comunitária na validade da norma infringida (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
A pena, por seu turno, não pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que esta é o ponto de referência que o julgador não pode ultrapassar.
Por outro lado, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dará preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Acresce que do disposto no artigo 71.° do Código Penal resulta que na determinação da medida da pena, importa apreciar e valorar todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente do crime.
No que concerne ao tráfico de estupefacientes, as necessidades de prevenção geral são significativas, conhecidas que são as consequências altamente nocivas do consumo de substâncias estupefacientes e os seus reflexos sociais, quer a nível individual (na vida dos consumidores e suas famílias), quer numa perspectiva colectiva, atento o elevado índice de pequena e média criminalidade associado a tais consumos, o mesmo se diga, aliás, quanto ao crime de detenção de arma proibida, considerando o perigo e intranquilidade que geram na comunidade.
As necessidades de prevenção especial, por seu turno, não se mostram tão prementes, considerando que os arguidos não têm condenações averbadas no respectivo registo criminal, beneficiando presentemente de inserção laborai e familiar
Aplicando os princípios sumariamente expostos ao caso em apreço, pondera-se:
- Grau de ilicitude do facto: ainda que os arguidos tenham perpetrado os factos em co-autoria, contribuindo todos para o resultado final, certo é que o grau de participação de cada um é distinto, o que deve reflectir-se na concreta medida da pena a aplicar a cada um. Com efeito, as concretas condutas apuradas quanto a AAA assumem maior gravidade e difusão temporal, pelo que o grau de ilicitude é mais acentuado quanto a este. Também entre as arguidas BBB e CCC o grau de ilicitude da conduta da primeira assume maior relevo, pois que enquanto a segunda se limitou a guardar na sua habitação uma mala que continha haxixe (pertença do arguido AAA), não se tendo apurado o recebimento de contrapartidas monetárias, BBB, para além dessa função de guarda, assumia já um papel mais relevante, chegando a receber dinheiro, que entregava a AAA, sendo “remunerada” por isso, como se alcança das intercepções telefónicas escalpelizadas anteriormente.
- Intensidade da culpa: Em todas as condutas apuradas os arguidos actuaram com dolo directo e de elevada intensidade;
- Condições pessoais do agente: importa ponderar a ausência de condenações criminais, bem como a inserção familiar e laborai de que todos os arguidos beneficiam presentemente.
Assim, tudo visto e ponderado, tendo presente as molduras penais abstractamente aplicáveis, os factores agravantes e atenuantes relativos a cada um dos arguidos, e as concretas condutas empreendidas por cada um, julga-se adequado, suficiente e proporcional ao caso em apreço e à salvaguarda das finalidades da punição condenar os arguidos nas seguintes penas:
a) O arguido AAA, na pena de 3 (três) anos de prisão (...)
Tal como concluiu o Tribunal a quo trata-se de um tipo de crime que impõe fortes necessidades de prevenção geral, seja na sua vertente positiva seja negativa, tendo o Tribunal realçado as consequências altamente nocivas do consumo de substâncias estupefacientes e os seus reflexos sociais, quer a nível individual (na vida dos consumidores e suas famílias), quer numa perspetiva coletiva, atento o elevado índice de pequena e média criminalidade associado a tais consumos.
Concluiu o Tribunal a quo não serem tão prementes as necessidades de prevenção especial atenta a ausência de antecedentes criminais do arguido.
Porém, como igualmente concluiu o Tribunal a quo, dos factos provados decorre que o grau de ilicitude do facto foi mais acentuado relativamente ao arguido/recorrente (em comparação com as suas coautoras) por os seus atos assumirem maior gravidade e difusão temporal, o que se mostra correto, não sendo de menosprezar a quantidade de estupefaciente apreendido em sua casa. Na verdade, a conduta que se pune teve lugar pelo menos a 03.08.2018, 15.04.2019 e durante o mês de julho de 2020, consistindo na entrega de canábis a terceiros a troco de dinheiro; sendo que para tanto incumbia as coarguidas BBB e CCC de guardar o estupefaciente, a troco de dinheiro, o que nos transmite já uma (ainda que insipiente) organização; sendo que detinha na sua casa 484,300 gr de canábis a 20.07.2020.
Foi ainda considerada a intensidade do dolo, bem como as suas condições de vida, mormente a já referida ausência de antecedentes criminais e a inserção laboral e familiar que beneficiava.
Em suma, o Tribunal a quo ponderou os fatores atendíveis, e fê-lo de forma séria e fundamentada, pelo que atentando nas circunstâncias supra enunciadas, na moldura penal abstrata prevista para o tipo de crime em apreço e considerando os referidos critérios de determinação da pena concreta, entendemos ajustada e proporcional à culpa do recorrente e às necessidades de prevenção geral e especial, a pena concretamente fixada de 3 (três) anos de prisão - que se situa a meio da diferença entre o limite mínimo e máximo da moldura penal abstrata e portanto se afigura proporcional e adequada, afigurando-se que a pena de dois anos seria insuficiente para salvaguardar as exigências de prevenção geral que se impõem.
Na verdade, tendo a determinação da medida da pena obedecido aos critérios de prevenção geral positiva, isto é à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (com impacto premente na sociedade) e de prevenção geral negativa e tendo sido considerados igualmente as exigências de socialização o agente, estas na ponderação da sua situação pessoal, familiar, profissional e ausência de antecedentes criminais, e não tendo a medida da pena encontrada excedido a medida da culpa, impõe-se concluir que não foram ultrapassados os limites da adequação ou proporcionalidade, estando, assim, a pena encontrada conforme ao estabelecido no art. 18° da Constituição da República Portuguesa e muito concretamente à proibição do excesso prevenida no n° 2 do mencionado artigo.
Entende também o arguido que houve violação do princípio da proporcionalidade na fixação de um dever de 150,00€ mensais ao longo de três anos, tendo em conta as condições financeiras e responsabilidades familiares que resultaram provadas, pugnando pela revogação da imposição do dever ou, no limite, reduzido o valor e tempo de cumprimento de entrega das contribuições monetárias.
Na decisão em apreço, fundamentando o dever que acompanha a suspensão da execução da pena, escreveu-se o seguinte: “No caso que nos ocupa, pese embora a já referida gravidade das condutas, em particular do arguido AAA, não poderá deixar de se considerar que se trata de uma primeira condenação criminal, encontrando-se todos os arguidos inseridos ao nível familiar e laboral, crê-se ser ainda possível acreditar que a ameaça de cumprimento da pena de prisão em que agora vão condenados leve a que não voltem a incorrer na prática de novos crimes.
Assim, pelas razões expostas, entendendo-se ser ainda possível a formulação de um juízo de prognose favorável no sentido de que a ressocialização em liberdade ainda poderá ser alcançada, decide-se suspender a execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos, por igual período ao da pena aplicada a cada um. lapso temporal que se reputa adequado para que sejam alcançadas as finalidades da punição.
Porém, mostra-se justificado determinar o acompanhamento institucional desse período, através do instituto da suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova, atento o percurso pessoal dos referidos arguidos e a extensão das penas aplicadas (artigo 53.°, n.° 1 do Código Penal).
4.3. Da imposição de um dever
Resulta do disposto no artigo 51.°, n.° 1, alínea c) do Código Penal que “o suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente entregar a instituições públicas ou privadas, de solidariedade ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente”.
Ora, no caso que nos ocupa, no que concerne ao arguido AAA, considerando a maior extensão e gravidade da sua conduta, entende-se adequado às concretas necessidades de prevenção especial e à reparação do mal decorrente do crime a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão ao referido dever, de molde a que o arguido interiorize devidamente o juízo de censura inerente à sua actuação criminosa.
Em concreto, considera-se adequado que tal contribuição se destine a instituição que contribua para o apoio a toxicodependentes.
Neste contexto, julga-se adequado que a contribuição fixada reverta a favor da instituição Ares do Pinhal, com sede na Rua Ares do Pinhal. Aldeia de Eiras. 6120- 151 Amêndoa, instituição de solidariedade social de referência no tratamento e apoio a toxicodependentes e pessoas em situação de vulnerabilidade.
Assim, considerando o que se deixou exposto e o apurado quanto às condições económicas do arguido, e de molde a que este possa cumprir o dever fixado, tem-se por justo e adequado fixar a contribuição monetária no montante de € 150,00 (cento e cinquenta euros) mensais, a entregar ao longo de todo o período de suspensão da execução da pena, ou seja, pelo período de 3 (três) anos, perfazendo o montante global de € 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos euros), devendo o arguido comprovar mensalmente nos autos tal entrega.”
Tal como foi entendido pelo tribunal a quo igualmente nos parece que no aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social do arguido se mostra necessário fixar o dever de efetuar uma entrega monetária [art. 51°, n° 1 al. c) do Código Penal], sendo que a instituição indicada na decisão recorrida dedica-se ao apoio a toxicodependentes e, por isso, se mostra inteiramente adequada a tal finalidade, sendo que a sua manutenção ao longo do período de suspensão constitui também um reforço desse sentimento de responsabilidade social que se pretende atingir.
É certo que de acordo com o disposto no art. 51°, n° 2 do Código Penal “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”.
Porém, dos autos resulta que o arguido está empregado auferindo um ordenado líquido no valor de € 851,85 euros e a sua companheira trabalha num call center, no sector de vendas, recebendo um ordenado de € 870,00. O casal reside próximo da mãe do arguido, podendo esta contar com o suporte do filho, dispensando também algum apoio e acompanhamento à neta. Com o pagamento da renda de casa despende o casal a quantia mensal de € 350,00.
Deste modo, ainda que com sacrifício – que não deixa de estar associado à natureza da pena – cremos que será razoável exigir o cumprimento deste dever ao arguido.
Na verdade, tendo este agregado um rendimento global líquido proveniente do seu trabalho de 1721,00€, o montante de 150,00€ corresponde a 9/prct. desse rendimento; e considerando o rendimento disponível após o pagamento da renda de 350,00€ corresponde a 11/prct. desse mesmo rendimento, o que se afigura, como referido, razoável e proporcional às exigências de ressocialização que a situação em apreço impõe e não constitui, por outro lado, um dever que não seja razoável impôr - pelo que inexiste também, sob esta perspetiva qualquer violação do principio da proporcionalidade previsto no art. 18° da Constituição da República Portuguesa ou da igualdade previsto no art. 13° do mesmo diploma legal, que aliás, o recorrente não fundamenta minimamente.
Em face de todo o exposto, improcede também neste segmento o recurso interposto pelo arguido, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, mantem-se o acórdão recorrido nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC [artigos 513°, n.°s 1 e 3 e 514.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e artigo 8°, n° 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique.
Texto processado pela primeira subscritora (art. 94º, nº 2 do CPP)
Lisboa, 6 de fevereiro de 2024
Sandra Ferreira
Sandra Oliveira Pinto
Ester Pacheco dos Santos