Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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 - ACRL de 05-03-2024   Abuso de confiança contra a segurança social.
Para além do preenchimento do comportamento omissivo consagrado no tipo legal, a punibilidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social depende ainda da verificação cumulativa e sucessiva das condições estabelecidas no art.º 105.º/4 als. a) e b) do Regime Geral das Infrações Tributárias, atento o disposto no art.º 107.º/2 do mesmo diploma. Ou seja, sem a sua verificação, não existe responsabilidade criminal do agente, ainda que a sua conduta preencha os demais elementos do tipo.
Proc. 2897/22.4T9FNC.L1 5ª Secção
Desembargadores:  Rui Francisco Figueiredo Coelho - Ester Pacheco do Santos - Maria José Machado -
Sumário elaborado por Carolina Costa
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Processo n.º 2897/22.4T9FNC.L1
Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
No Juiz de Instrução Criminal do Funchal do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, foi proferida decisão instrutória, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 283.º, n.º 2, 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, decido não pronunciar as arguidas AAA, Unipessoal, Lda. e BBB.»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Assistente Instituto de Segurança Social da Madeira,
IP-RAM formulando as seguintes conclusões:
« a) Nos presentes autos, foi imputado às arguidas a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos do artigo 107., ns 1 e 2 do RGIT, com referência ao artigo 105., n 1, do mesmo diploma legal, e artigos30., n 2 e 79., ambos do Código Penal, sendo a sociedade arguida responsável nos termos do artigo T do RGIT.
b) Nos termos do disposto no n 2, do artigo 107. do RGIT, a dedução nas remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais do montante das contribuições por estes legalmente devidas para o regime contributivo obrigatório de segurança social, e a não entrega, total ou parcial, dos correspondentes valores às instituições de segurança social, só não serão puníveis se, após notificada para o efeito, a entidade empregadora pagar à segurança social, no prazo de 30 dias, a totalidade da prestação, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável.
c) Face à letra da lei (artigo 107. e artigo 105. do RGIT), só o efetivo e integral pagamento/entrega à segurança social da totalidade do valor das quotizações deduzido remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, pode obstar à instauração ou ao prosseguimento do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social; só o cumprimento, pela entidade empregadora/devedora, da condição de pagamento, no prazo de 30 dias após notificação para o feito, da totalidade do montante das quotizações em falta impede o acionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal.
d) Nos termos do disposto na alínea b), do n. 4, ao artigo 105., do RGIT, só o pagamento integral da dívida de quotizações, acrescida e juros e da coima aplicável, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, constitui condição objetiva que obsta à punibilidade.
e) No despacho de não pronúncia é referido que as notificações das arguidas em causa eram inoperantes, dado que nelas não constava, como se impunha, a interpelação admonitória de que os denunciados deveriam, também, pagar o valor da coima aplicável.
f) Ora, ao contrário do entendimento manifestado no despacho de não pronúncia das arguidas, afigura-se-nos que as notificações em causa contêm todos os elementos essenciais para que as denunciadas fossem informadas do prazo que tinham, do montante a remeter à Segurança Social, e de que ao mesmo acrescem juros legais e das consequências da não entrega de tais valores.
g) Acresce que, conforme resulta dos presentes autos, junto aos ofícios de notificação remetidos às arguidas, constata-se que foi anexado o “Mapa de dívida de quotizações”, de onde resulta devidamente descriminada a “obrigação fiscal incumprida”, isto é, o montante mensal em dívida de quotizações que os arguidos retiveram das remunerações pagas aos trabalhadores, que deveriam ter sido entregues à Segurança Social.
h) Ainda acresce dizer que as notificações em causa contêm os elementos essenciais para que se cumpra a finalidade da norma em apreço, ou seja:
- Indicação da norma legal aplicável - art. 105., n. 4, al. b) do RGIT;
- Indicação do tipo de crime em causa;
- Indicação dos períodos a que diz respeito a quantia em dívida;
- Quantias em dívidas à Segurança Social;
- Informação do prazo concedido - 30 dias - para regularizar a situação;
- Indicação do que o agente deverá fazer para regularizar a situação, ou seja, deslocar-se aos Serviços da Segurança Social.
i) Considerando o texto da notificação, temos de concluir que a finalidade pretendida pelo artigo 105., n. 4, alínea b) do RGIT foi atingida, fornecendo aos arguidos todas as informações indispensáveis para que os mesmos regularizassem a sua situação, bem como as consequências resultantes do incumprimento, pelo que deveria ter sido deduzida acusação.
j) Ora, a notificação prevista na alínea b), do n4 do artigo 105. do RGIT, foi desencadeada pela Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, antes de instaurado o inquérito, cumprindo-se assim o propósito legislativo de evitar a proliferação de procedimentos criminais contra os sujeitos passivos que, tendo sido notificados para o efeito regularizaram a situação.
k) Caso o procedimento criminal se tivesse iniciado sem ter lugar aquela notificação - nomeadamente por não ser encontrado o obrigado - o Ministério Público durante a fase do inquérito deveria providenciar pelo suprimento da omissão, nomeadamente procedendo à notificação em falta.
l) Ora, suscitando-se dúvidas acerca da notificação das arguidas, que foi efetuada pelo Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105., n 4, alínea b), do RGIT, nomeadamente, em virtude dos avisos de receção terem sido assinados por pessoa diversa da destinatária, o Ministério Público deveria ter ordenado a repetição dessas notificações durante a fase de inquérito, pois nessa fase processual poderia essa alegada questão ser sanada.
m) Acresce que, como resulta dos autos, a arguida foi notificada através de carta enviada para o seu domicílio fiscal.
n) A este propósito, refira-se que segundo o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 18/02/2020, proferido no âmbito do processo n 481/15.8IDFAR.E1, in www.dgsi.pt. «As situações de concreto esgotamento das diligências processuais para a notificação do arguido, em que a notificação não ocorre por responsabilidade exclusiva deste, devem ser equiparadas aos casos em que a notificação é ordenada e devidamente concretizada.”, pelo que as notificações deveriam ter sido consideradas concretizadas.
o) Por outro lado, o Ministério Público na fase de inquérito, de forma a suprir a alegada ausência do referido requisito de punibilidade que diz ter ocorrido no despacho de arquivamento, deveria ter ordenado a notificação às arguidas, ao abrigo do disposto no artigo 105., n4, do RGIT.
p) Nesta medida, não poderia o Ministério Público proferir o despacho de arquivamento do inquérito nos termos em que foi proferido, nem concluir, como foi ali concluído pela inadmissibilidade legal do procedimento criminal, pois se foi detetada uma eventual irregularidade, verifica-se que a mesma poderia ter sido suprida a todo o tempo, isto é, poderia ter sido reparada oficiosamente ou mandada reparar pelo Ministério Público ou pela autoridade judiciária competente.
q) Esta é de resto a posição defendida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Maio de 2009, proferido no âmbito do processo n 142/05.66IDPRT.P1, in www.dgsi.pt. que dispõe que «A falta de notificação dos arguidos em nome pessoal, nos termos e para os efeitos do artigo 105 n 4 al. b) do RGIT, constitui, em nosso entender, uma irregularidade. O Tribunal pode ordenar, oficiosamente, a reparação da irregularidade em causa, no momento em que da mesma tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado (cfr. artigo 123/2 do Código de Processo Penal)».
r) Ao contrário do mencionado no despacho de não pronúncia, resulta de fls 85 dos autos que o paradeiro da arguida BBB não é desconhecido, pois a PSP informou, para efeitos de promover à respetiva notificação, que contactou em 16/03/2023 “com a notificanda através do telefone 000000000, a qual declarou quem está emigrada em Inglaterra desde 2018 e que no momento estava de férias em Setúbal.”
s) Dos autos também consta o n de telefone (000000000 / 000000000) e o email (equacaouniversal@gmail.com) do gabinete de contabilidade da sociedade comercial, bem como resulta de fls. 168 a 171 dos presentes autos, que no dia 31/10/2023, a PSP contactou presencialmente com a denunciada BBB, tendo sido lavrado o respetivo termo de identidade e residência, muito embora a mesma não tenha sido constituída como arguida.
t) Pelo que, ao contrário do que é referido pelo Ministério Público no despacho de arquivamento do inquérito e pela Meritíssima Juíza de Instrução no despacho de não pronúncia, não podemos dizer que o paradeiro das arguidas era desconhecido.
u) Por outro lado, acresce dizer que o artigo 286., n 1, do Código do Processo Penal, com a epígrafe, “Finalidade e âmbito da instrução ” dispõe que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. ”
v) O artigo 290., n 1, do Código do Processo Penal, com a epígrafe “Actos do juiz de instrução e actos delegáveis”, refere que “O juiz pratica todos os actos necessários à realização das finalidades referidas no n. 1 do artigo 286.”
W) Assim sendo, muito embora se considere que as notificações remetidas às arguidas nestes autos devam ser consideradas efetuadas, na fase da instrução e em última instância a Meritíssima Juíza de Instrução poderia proceder à sanação de tal alegada irregularidade, ordenando novas notificações às arguidas.
x) Por seu turno, acresce que o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação - artigo 262., n 1 do Código do Processo Penal.
Y) O n 2 do mesmo artigo estatui que: “Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito ”.
z) A direção do inquérito cabe ao Ministério Público - artigo 263. do Código do Processo Penal - que pratica os atos necessários à realização da finalidade a que se dirige: investigar a \ notícia do crime e quem foram os seus agentes em ordem à decisão sobre se deverá ou não promover-se a fase de julgamento - artigo 267. do Código Penal.
aa) O artigo 219.°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa dispõe que “Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar bb) O Ministério Público procede oficiosamente a quaisquer diligências que julgar indispensáveis à descoberta da verdade (artigo 50., n 2, do Código do Processo Penal), cc) A fase do inquérito é essencialmente inquisitória, dominada pelo Ministério Público a quem é atribuído o poder de esclarecimento oficioso do facto objeto da suspeita. O Ministério Público dispõe dos mais amplos poderes de investigação - artigo 267. do Código do Processo Penal.
dd) Ora, verifica-se que se o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência no âmbito do inquérito ignorando um patamar mínimo de atos de investigação, face aos factos que lhe foram denunciados, visto que os autos contêm indícios da prática pelas arguidas do crime de natureza pública de abuso de confiança contra a segurança social, pelo que entende-se que foi cometida a nulidade insanável de falta de inquérito prevista no artigo 119., alínea d), do Código do Processo Penal, ee) Bem como omitiu a prática de alguns atos que se reputam obrigatórios ou diligências essenciais face à natureza do crime em questão (pois apesar de ter entendido que as notificações efetuadas não poderiam produzir efeito não cuidou de levar a cabo novas notificações, o Ministério Público optou pelo “arquivamento liminar do inquérito”), verificando-se o cometimento da nulidade prevista no artigo 120., n 2, alínea d) do Código do Processo Penal.
ff) Note-se, para os devidos efeitos, que no caso dos autos, verifica-se que as denunciadas nem sequer chegaram a ser constituídas como arguidas, nem foram interrogadas, apesar do seu paradeiro não ser desconhecido (cfr. fls. 85 e fls 168 a 171 dos autos), gg) Assim, caso se tenha verificado que o procedimento criminal se tenha iniciado sem ter lugar à notificação prevista na alínea b), do n 4, do artigo 105., do RGIT, nomeadamente, por não se ter encontrado a denunciada, ou caso se tenha verificado existir alguma irregularidade na dita notificação, afigura-se-nos que o Ministério Público deveria providenciar pelo suprimento da omissão, nomeadamente procedendo à notificação em falta, hh) De acordo com o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, (cff. Processo n 1584/18.2T9SNT.L1-9, datado de 30/09/2019), no sítio da internet www.dgsi.pt, foi consignado que “I-Se o Ministério Público profere despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência no âmbito do inquérito ignorando um patamar minimo de investigação face aos factos denunciados, comete a nulidade insanável de falta de inquérito prevista no art. 119. al d), do CPP;
II- O que efectivamente interessa saber é se a denúncia, tal como é apresentada, tem alguma potencialidade para configurar um crime. Se de forma evidente e conclusiva não houver crime, nem deve ser aberto inquérito. Mas se houver indícios ou suspeitas, mesmo ténues que sejam, tem que haver inquérito, procedendo-se pelo menos à inquirição do arguido/suspeito, antes de eventualmente o Ministério Público decidir arquivar o inquérito;
III- Tendo sido totalmente omitido o inquérito num caso em que a lei determina a sua
obrigatoriedade, estamos perante uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, a que alude o art. 119., al. d), do Código de Processo Penal (cf. ainda o art. 118°, n.° 1, do mesmo código). ”
ii) Assim sendo, considera-se que o Ministério Público não poderia ter proferido o despacho de arquivamento do inquérito do modo e nas condições em que o fez, pois deveria ter procedido à realização de todas as diligências necessárias a investigar a existência do crime que foi denunciado, determinar os seus agentes e a responsabilidade de cada um deles, bem como descobrir e recolher as provas e tudo o mais necessário a sustentar uma acusação, razão pela qual considera-se que foi totalmente omitido o inquérito num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade, verificando-se a ocorrência de uma nulidade (insanável, de conhecimento oficioso), prevista no artigo 119., alínea d), do Código do Processo Penal, em conjugação com o artigo 118., n 1, do mesmo diploma.
jj) Isto porque, não pode o Ministério Público, porque tem um entendimento contrário à Lei de que “O cumprimento do acordo de pagamento em prestações determina que se considere regularizada a dívida à segurança social ”, ignorar que os factos que lhe foram denunciados consubstanciam a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social que defende o interesse público, procedendo pura e simplesmente ao arquivamento do inquérit de forma liminar.
kk) Pelo exposto, deverá julgar-se verificada a nulidade em questão, de conhecimento oficioso, declarando-se inválido o despacho de arquivamento do inquérito, o que aqui se requer, com as devidas consequências legais.
11) Por seu turno, muito embora se considere que as notificações remetidas às arguidas nestes autos devam ser consideradas efetuadas, por mera cautela de patrocínio e tendo em conta que não consta da alínea b), do n 4, do artigo 105. do RGIT ou de qualquer outra norma de quem é a entidade que legalmente tem poder para elaborar a notificação daquele preceito, na fase da instrução e em última instância a Meritíssima Juíza “a quo ”, poderia e deveria ter ordenado a notificação às arguidas, ao abrigo do disposto no artigo 105., n 4, do RGIT. mm).»
- das respostas -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
« 1. Nos termos do artigo 118, n 2 do C.P.Penal a violação ou a inobservância das disposições da Lei do Processo Penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na Lei.
2. Nos termos do disposto no artigo 119.º, n.1 d) do CPP, constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
3. Por seu turno, nos termos do disposto no art. 120., n. 1 e n. 2 alínea d) do Código de Processo Penal, constitui nulidade, dependente de arguição, a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
4. Nos termos do disposto no artigo 262. do CPP, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
5. Nos presentes autos encontra-se em tela a prática de factualidade suscetível de integrar um crime de abuso de confiança à segurança Social.
6. O AFJ do STJ n 6/2008, de 9-04-2008, fixou jurisprudência nos seguintes termos: «A exigência prevista na alínea b) do n.4 do artigo 105.0 do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2. , n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do art. 105.0 do RGIT)».
7. “(...) As condições objectivas de punibilidade são, assim, circunstâncias que se situam fora do tipo de ilídto e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto, ou seja, são um pressuposto para que o actuar anti jurídico importe consequências penais.».
8. Apesar de o crime já se ter consumado, só após o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária e, ainda, do não pagamento, no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito, da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, poderá desencadear-se a responsabilização criminal do agente.
9. In casu, o MP determinou a realização de diligências de investigação, mormente junção de prova documental, delegou a competência de investigação no próprio assistente, na qualidade de OPC e o próprio MP encetou diligências com vista à constituição e interrogatório das denunciadas como arguidas, pelo que não se pode afirmar que se procedeu a arquivamento liminar.
10. É evidente que foi realizado inquérito, pelo que o inquérito não padece da nulidade prevenida no artigo 119, n1 do CPP.
11. A única diligência de inquérito obrigatória é a constituição e interrogatório como arguido, nos termos do disposto no artigo 58, n1 do CPP.
12. No caso dos autos não se encontra verificada qualquer uma das situações previstas no artigo 58,
n1 do CPP, porquanto, inexistindo prévia notificação nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 105, n4 b) do RGIT.
13. Ainda assim, o MP efetuou diligências no sentido de proceder à constituição e interrogatório das arguidas, o que não ocorreu, porque nesta fase, tal como na fase da instrução resulta a impossibilidade de notificação das denunciadas.
14. É forçoso concluir que o inquérito também não enferma da nulidade prevista no artigo 120, n 1 e
n2 d) do CPP.
15. No caso dos autos, da análise de fls.6 a 15, verificamos que a notificação não foi realizada, de todo.
16. Ainda que assim não fosse, delas não consta a menção relativa à coima aplicável.
17. Não está, claramente, verificada a condição objetiva de punibilidade.
18. A notificação nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 105, n4 b) do RGIT e o não pagamento subsequente, nos 30 dias posteriores tem que estar verificada antes da comunicação do crime ao MP, sob pena de os factos aí descritos não constituírem crime (entendido como ação típica, ilícita, culposa e punível), como supra expendido.
19. Não se tratando de processo pendente no MP ou no Tribunal à data de entrada em vigor da Lei que introduziu a referida condição objetiva de punibilidade (caso em que deveria proceder-se à notificação, já na pendência do processo criminal, como ocorreu em inúmeros processos), cabe à administração- AT ou ISS, IP, proceder a tal notificação antes de o processo ser enviado para o Ministério Público.
20. O Ministério Público não tem o dever de fazer diligências para tornar uma conduta não punível numa conduta punível, como não tem que diligenciar pela conceção dos restantes elementos do crime.
21. De acordo com o preceituado no artigo 53. do CPP, no processo penal, compete ao Ministério Público colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objetividade, cabendo- lhe dirigir o inquérito, à luz do princípio da legalidade e isenção.
22. “Assim sendo, resulta daqui, desde logo, salvo melhor opinião, que a administração tributária não deverá denunciar o facto ao Ministério Público, para um procedimento criminal que não poderá ter lugar, enquanto não se mostrar verificada a notificação em causa. Denunciar para quê, se, como diz a lei, “os factos só são puníveis se (...)”. Enquanto não se verificar a condição que constitui um pressuposto material da punibilidade esta não poderá, nunca, vir a ter lugar” AC TRL, de 15-02-2018.
23. O ISSM não está impedido de providenciar pela verificação da condição de punibilidade até à data da prescrição, o que sempre esteve, está e estará na sua disponibilidade.
24. Destarte, salvo o devido respeito por melhor opinião, inexiste qualquer nulidade de inquérito e a decisão instrutório não merece qualquer reparo.»
Notificado para tanto, respondeu a Arguida AAA, Unipessoal, Lda. concluindo nos seguintes termos:
« A) As notificações a que alude o artigo 105°, n.° 4 alínea b) do RGIT elaboradas pela Recorrente não chegaram às destinatárias, não foram assinadas pelas próprias ou por terceira pessoa, acabando devolvidas ao seu remetente.
B) Aquelas notificações têm que conter sob pena de irregularidade de conhecimento oficioso a indicação concreta das importâncias que as notificadas devem de pagar, bem como a fixação da coima aplicável, não cabendo ao Ministério Público ou aos Tribunais a decisão sobre o montante da coima, mas sim à Segurança Social.
C) A notificação não é eficaz, pois não chegou ao poder do destinatário ou dele não é conhecida, nunca se garantido de facto e de direito a oportunidade que a lei prevê de liquidação dos montantes reclamados e de, assim, operar a exclusão de punição.
D) Por não recebidas e, também, perante a insuficiência do seu teor quanto à aplicação e fixação do valor da coima não gozam de eficácia nem produziram os devidos efeitos legais, porquanto, para que a conduta ilícita posso vir a ser punida, é exigido que aquela notificação se mostre efectivamente cumprida e que subsequentemente o seu destinatário não proceda, no prazo de 30 dias após a sua recepção, ao pagamento das quantias devidas a título de cotização à Segurança Social, acrescidas dos juros respectivos e do valor da coima aplicável.
E) A data da elaboração do auto de notícia conhecia a aqui Recorrente a falta da condição objectiva de punibilidade e ainda assim requereu a instauração de procedimento criminal.
F) Mesmo após as tentativas infrutíferas de realização das notificações durante o inquérito nada veio a ser requerido pela aqui Recorrente visando a remessa pelo Ministério Público de novas notificações, quer feitas pessoalmente, quer por via postal registada com aviso de recepção.
G) Só existiria infracção criminalmente punível se o agente tiver sido notificado e não procedesse ao pagamento da prestação tributária/contribuição devida dentro do prazo de 30 dias, sob pena de se verificar um simples ilícito contra- ordenacional (já punível) que não se converteu em ilícito penal.
H) Ora, não estando reunida durante o inquérito a condição objectiva de punibilidade pela falta da notificação prevista pelo artigo 105, n. 4 alínea b) do RGIT, sendo legalmente inadmissível o procedimento criminal, veio (e bem!) a decisão de o encerrar por arquivamento nos termos do n. 1 do artigo 2770 do C.P.P.
I) Se no inquérito se concluir que afinal a notícia investigada não tinha fundamento, designadamente por inexistência de crime e inadmissibilidade do procedimento criminal, impõe-se despacho de arquivamento.
J) Em fase de instrução requerida pela Recorrente veio a ser proferida decisão instrutórià de não pronúncia das arguidas, subscrevendo-se o entendimento manifestado “(...) atéà notificação nos termos do disposto no art 105., n.4., alínea b) do RGIT, não obstante o facto ilícito estar consumado, a respectiva conduta não épunível, sendo clara a jurisprudência de que a efectivação de tal notificação e a omissão do pagamento na sequência da mesma constitui condição objectiva de punibilidade., não cabendo à fase de instrução “não fazer ou refazer um inquérito que não deve correr sem a existência de um facto punível.
K) Não padece o inquérito e a instrução de nenhuma das nulidades invocadas pela Recorrida nos termos previstos no artigo 119 al. d) do C.P.P. e no artigo 120, n. 2, alínea d) do C.P.P.
L) Tanto a fase de inquérito, como a fase de instrução pelo impulso da Recorrente, tiver lugar e seguiram a devida tramitação processual e em nenhuma foi omitida a prática de acto processual que a lei prescreve como obrigatório.
M) A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do MP e de modo análogo no que respeita aos actos de instrução ao juiz de instrução.
N) Assim e em face do exposto, a decisão recorrida de despacho de não pronúncia deverá ser mantida por mostrar-se devidamente fundamentada e não comportar quaisquer vícios.»
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito meramente devolutivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido de acompanhar a resposta do Ministério Público junto da 1.ª Instância, pugnando no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- Foram as Arguidas notificadas nos termos e para os efeitos da al. b), do n.° 4, ao artigo 105.°, do RGIT?
- Suscitando-se dúvidas acerca dessa notificação das arguidas, o Ministério Público deveria ter ordenado a repetição dessas notificações durante a fase de inquérito?
- Na fase da instrução o Tribunal poderia proceder à sanação de tal alegada irregularidade, ordenando novas notificações às arguidas.
- O paradeiro das arguidas era conhecido e o Ministério Público nem sequer diligenciou para que as mesmas fossem constituídas como Arguidas, antes proferindo despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência no âmbito do inquérito, assim incorrendo em nulidade insanável de falta de inquérito prevista no artigo 119.°, alínea d), do Código do Processo Penal?
- O Ministério Público omitiu a prática de alguns atos que se reputam obrigatórios ou diligências essenciais face à natureza do crime em questão o que corresponde a nulidade prevista no artigo 120.°, n° 2, alínea d) do Código do Processo Penal?
- Reconhecida essa nulidade, de conhecimento oficioso, deverá declarar-se inválido o despacho de arquivamento do inquérito?
DA DECISÃO INSTRUTÓRIA RECORRIDA
Da decisão recorrida consta a seguinte fundamentação:
«Da invocada nulidade do inquérito
Requereu o assistente que seja declarada a nulidade do inquérito nos termos do disposto no art. 119.º, alínea d) do Código de Processo Penal.
Nos termos do referido preceito, constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
Por seu turno, nos termos do disposto no art. 120.º, n.º 1 e n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal, constitui nulidade, dependente de arguição, a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
No processo comum, e conforme se estabelece no art. 262.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, havendo a notícia de um crime a abertura de inquérito é sempre obrigatória, ressalvadas as excepções previstas neste código, sendo estas os casos em que o Ministério Público optar pela submissão dos factos a julgamento em processo sumário, ou nos casos em que o procedimento depender de queixa ou participação e estas se não tiverem verificado.
Conforme se disse no Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Maio de 2008 (in www.dgsi.pt) “Importa esclarecer que a expressão “notícia de um crime” tem o significado de notícia de factos que objectivamente preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito criminal. Como é bom de ver, a “notícia de um crime” para o ser tem de conter factos que podem integrar em abstracto um ilícito criminal.
Para aferir se os factos participados objectivamente preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito, basta o simples confronto dos mesmos com a lei.
Se, feito este confronto, os factos manifestamente não configuram qualquer crime, o M.ºP.º procede pura e simplesmente ao arquivamento da denúncia.”
No caso dos autos o Ministério Público determinou a abertura de inquérito, a realização de diligências e, inclusive a realização de interrogatório das arguidas.
Como tal, é manifesto que foi realizado inquérito.
Por outro lado, e no que respeita à nulidade a que se refere o art. 120.º, n.º 1 e n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal, importa ter em conta que a norma comporta dois segmentos, designadamente, o respeitante à nulidade respeitante a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, por um lado, e, por outro, o segmento respeitante à omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, sendo estas exclusivas da fase de julgamento.
Ora, na fase de inquérito, a única diligência obrigatória é a constituição de arguido nos casos legalmente previstos.
Quanto à constituição de arguido, o art. 58.º do Código de Processo Penal estabelece taxativamente quais os casos em que a mesma é obrigatória, designadamente quando: correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal (alínea a); tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (alínea b), um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254º a 261º (alínea c) ou for levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada (alínea d).
Por outro lado, e como estabelece expressamente o art. 272.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.
No mais, e conforme conta do Acórdão do Tribunal de Évora de 2 de Julho de 2019, in www.dgsi.pt, “o Ministério Público é livre, salvaguardados os atos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 395/04 de 2.6.2004, DR 11 série de 9.10. 04, p. 14975”.
No caso dos autos não se verifica qualquer das situações a que se refere o referido art. 58.º na mediada em que as notificações referentes ao art. 105.º, n.º 4, alínea b) precedem a notícia do crime e a necessidade (ou não) de repetição de notificações não gera qualquer nulidade.
Nestes termos, não se verifica qualquer nulidade do inquérito.

Não existem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra, desde já, conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

Segundo o disposto no art.º 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
O art.º 283.º, n.º 2, ex vi art.º 308.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, estipula que “consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Sobre este conceito legal escreve o Prof. Figueiredo Dias - os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. Acrescenta este autor que logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova..., tem de ser sempre valorado a favor do arguido. - Direito Processual Penal,1º, 1974, 133, citado no Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T. II, p. 65.
Na jurisprudência, a interpretação desse conceito é resumida pela Relação de Coimbra (Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T.II, p.65) da seguinte forma - para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que é imputado.
Neste sentido se pronunciou o S.T.J. (Ac. de 10.12.92, citado no Código de Processo Penal Anotado, de Manuel Silva Santos e outros, Ed. de 1996, p.131), que definiu “indiciação suficiente” como aquela que resulta da verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em audiência de julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção porque os agentes virão a responder.
Deve assim o juiz de instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida em sede de inquérito e de instrução e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, consequentemente, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.

O assistente imputa às arguidos a prática em co-autoria material, e sob a forma continuada, um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos artigos 107.º n.º 1 e 2, 105.º, n.º 4, alínea a) e b), em conjugação com os art. 6.º e 7.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
De acordo com o referido artigo 107.º, n.º 1, “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.º 1 e 5 do artigo 105.º”.
Por sua vez o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), estabelece que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500 deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
Nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se, tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (alínea a) e a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (alínea b).
Considerou o Ministério Público que esta notificação não foi efectuada, nem foi possível em inquérito proceder à mesma, tendo por não verificada a condição objectiva de punibilidade, entendendo o assistente que essa notificação poderia ter sido feita pelo Ministério Público ou até nesta fase.
Ora, até à notificação nos termos do disposto no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, não obstante o facto ilícito estar consumado, a respectiva conduta não é punível, sendo clara a jurisprudência de que a efectivação de tal notificação e a omissão do pagamento na sequência da mesma constitui condição objectiva de punibilidade.
Perante a omissão relevante de pagamento que constitui facto ilícito típico ainda não punível, deve a Segurança Social proceder à notificação referida e, omitido o pagamento devido acrescido de juros e coima, desencadear o procedimento criminal, pois só nessa data se mostra verificada a existência do crime no que ao processo crime respeita.
Na verdade, não obstante, haver já um facto ilícito e típico a existência do processo penal apenas se reporta à existência de um crime tal como definido no art. 1.º, alínea a) do Código de Processo Penal, ou seja, ao conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança.
Sem que o facto seja punível, em rigor, não deve sequer haver lugar ao levantamento do auto de notícia e à
abertura de inquérito.
No caso dos autos, sem que as notificações a que se refere o art. 105.º, n.º 4, alínea b) estivessem regularmente efectuadas porque as mesmas não obedecem aos requisitos legais que o próprio assistente invoca e nem contêm a menção à coima, o assistente elaborou auto de notícia.
Ora, a Segurança Social não está impedida nem desobrigada de proceder à notificação em causa de acordo com as normas legais vigentes, mas os princípios da boa-fé e da confiança que vinculam também – e principalmente – o Estado impõem que a notificação em causa seja efectuada previamente à instauração do procedimento criminal, mesmo com risco de prescrição dos factos.
Com efeito, as notificações que contam dos autos não foram sequer assinadas, delas não consta a menção relativa à coima aplicável e tanto do inquérito como da instrução resulta a impossibilidade de notificação das arguidas.
Ainda que se considerasse que esta omissões constituem irregularidade susceptível de sanação e não nulidade como acima exposto, a notificação em causa não pode ocorrer nesta fase processual, dada a sua natureza, pois não cabe à instrução substituir-se à Administração ou ao Ministério Público.
Não se verificando nulidade do inquérito não existe fundamento legal para a devolução dos autos ao Ministério Público e mesmo que se entendesse poder haver agora lugar à notificação omitida, ainda assim haveria de proceder aos actos de inquérito como sejam o interrogatório das mesmas e eventual inquirição de testemunhas.
Como resulta da norma acima citada, à instrução cabe a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e não fazer ou refazer um inquérito que não deve correr sem a existência de um facto punível.
Assim sendo, considero que os autos não estão feridos de qualquer nulidade nem estão reunidos os pressupostos para que as arguidas sejam submetidas a julgamento pela prática dos factos que lhes foram imputados.

Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 283º, n.º 2, 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, decido não pronunciar as arguidas AAA, Unipessoal, Lda. e BBB.»
FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre conhecer da argumentação do recurso da Assistente que coloca em causa não só o arquivamento dos autos como a decisão instrutória que o confirmou.
- da notificação das Arguidas
- na fase administrativa
A primeira questão suscitada prende-se com o entendimento da Assistente de que foram as Arguidas notificadas nos termos e para os efeitos da al. b), do n.° 4, do artigo 105.°, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Em causa está a factualidade noticiada de que as Arguidas AAA, Unipessoal, Lda. e sua gerente, BBB, não procederam à entrega tempestiva ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, as contribuições devidas entre Junho de 2016 e Fevereiro de 2017 e entre Julho de 2017 e Fevereiro de 2019, no montante global de € 1.834,22. Está, pois, em causa, a prática de dois crimes de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. nos art.º 107.º/1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, por referência ao artigo 105.º/1, 4 e 7, do mesmo diploma.
Comete este crime quem, enquanto entidade empregadora, deduziu do valor das remunerações devidas aos seus trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas (quotizações), mas não o entregou, total ou parcialmente, à competente instituição de segurança social.
A suspeita da prática deste crime recaía assim sobre as Arguidas, a primeira por ser a sociedade que não fez a entrega devida, e a segunda por ser quem agiu em sua representação, determinando-se e determinando a vontade da pessoa colectiva (art.º 6.º do Regime Geral das Infracções Tributárias).
Contudo, para além do preenchimento do comportamento omissivo consagrado no tipo legal, a punibilidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social depende ainda da verificação cumulativa e sucessiva das condições estabelecidas no art.º 105.º/4 als. a) e b) do Regime Geral das Infrações Tributárias, atento o disposto no art.º 107.º/2 do mesmo diploma. Ou seja, sem a sua verificação, não existe responsabilidade criminal do agente, ainda que a sua conduta preencha os demais elementos do tipo.
Defendeu o Ministério Público no seu arquivamento, o que foi confirmado pelo Tribunal de Instrução Criminal, que no caso que nos ocupa, não foi realizada essa notificação.
Compulsados os autos, confirma-se que para os efeitos desta notificação, o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, expediu ofícios remetidos por via postal registada com aviso de receção para as duas Arguidas. Porém, tais missivas não foram recebidas pelas respetivas destinatárias. Aparentemente, o Assistente entendeu que estavam devidamente realizadas as notificações e remeteu o caso para inquérito, sem ter diligenciado pela repetição da diligência, provavelmente por não dispor de outros elementos de identificação sobre o paradeiro de ambas.
Como o próprio Assistente reporta nas suas motivações «foram enviadas notificações para pagamento a ambas as arguidas, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n° 4, do artigo 105.° do RGIT, tendo as mesmas sido devolvidas com a menção “objeto não reclamado/não atendeu”». Ou seja, não tendo sido os avisos de recepção assinados pela Arguida Maria José Freitas, por si e em representação da Arguida sociedade, não se logra saber se a mesma recebeu a notificação expedida pela Segurança Social.
Com efeito, entende-se igualmente que, dada a natureza da omissão de pagamento após a notificação e a necessidade de, da mesma, se poder retirar o elemento subjectivo do agente quanto a essa omissão, deverá tal notificação ser pessoal e não basta o envio da carta para a morada conhecida, exigindo-se, no mínimo, carta registada com AR devidamente assinado pelo destinatário. Em abono desse entendimento retiram-se alguns azimutes nos Acs. do Tribunal da Relação do Porto 26.02.2014 [ECLI:PT:TRP:2014:6319.11.8IDPRT.P1.F3]; Tribunal da Relação de Coimbra 11.10.2017, [ECLI:PT:TRC:2017:2500.15.9T9CBR.C1.7E]; e Tribunal da Relação de Évora 11.05.2021, [ECLI:PT:TRE:2021:1391.11.3TAPTM.E1.D2], bem como no estudo de Tiago Milheiro “ Da punibilidade nos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social”, in Revista Julgar n.º 11 (Maio-Agosto 2010), p.79.
Deste modo, bem andou o Tribunal de Instrução Criminal na decisão recorrida ao considerar que não ficou demonstrado o cumprimento da notificação prevista no art.º 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias por parte do Assistente no decurso da fase administrativa do processamento das contribuições devidas.
- no inquérito
Sabendo-se que não ocorreu a notificação das arguidas, o Ministério Público deveria ter ordenado a repetição dessas notificações durante a fase de inquérito? A resposta é negativa.
Segundo o disposto no art.º 262.º do Código de Processo Penal, «O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação». Tal como construído o tipo legal em apreço, não existe crime antes dos responsáveis pelo pagamento terem sido notificados nos termos do art.º 105.º/4 al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias e passado o prazo de 30 dias destinado ao pagamento em dívida. Ou seja, a mera omissão de pagamento não é suficiente para o preenchimento do tipo legal, a menos que tenham passado os 30 dias previstos para o efeito, após a notificação do devedor para fazer tal pagamento.
Deste modo, não se pode exigir ao Ministério Público que, no inquérito, venha suprir insuficiências procedimentais do Assistente para que, e só então, o crime se venha a consumar.
A única circunstância na qual, historicamente, se alcançou a necessidade de realizar tal notificação já na pendência do inquérito, prende-se com a entrada em vigor da alteração legal [Lei n.º 64-A/2008, de 31/12] que passou a consagrar esta necessidade de notificação, relativamente aos processos já pendentes.
Concluindo, não se impunha ao Ministério Público, em sede de inquérito, providenciar pela produção do acto que poderia levar à consumação do crime, posto que, sem este, não poderia o dito inquérito prosseguir.
- na instrução
Por maioria de razão, na fase da instrução, não poderia o Tribunal proceder à sanação de tal alegada irregularidade, ordenando novas notificações às arguidas. Sem prejuízo, desde que o processo começou, e estando o Assistente tão convicto de conhecer o paradeiro das Arguidas, deveria o mesmo tê-las notificado em conformidade, permitindo então a contagem do prazo subsequente de 30 dias.
- das nulidades por falta de inquérito
Segundo o Recorrente, o paradeiro das arguidas era conhecido e o Ministério Público, o qual nem sequer diligenciou para que as mesmas fossem constituídas como Arguidas, antes proferindo despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência no âmbito do inquérito. Como tal, conclui que, assim, incorreu em nulidade insanável de falta de inquérito prevista no artigo 119.°, alínea d), do Código do Processo Penal.
A resposta a esta tese encontra-se na abordagem anterior ao tipo de crime em apreço. Desde logo, ao observar a factualidade material documentada, o Ministério Público apercebeu-se de estarmos perante uma situação na qual está em falta uma das condições objectivas de punibilidade dos factos pelo que, não se verificou, ainda, a consumação do crime que poderia ser investigado.
Destarte, é irrelevante que seja conhecido o paradeiro das suspeitas, ou que sejam realizadas diligências para as encontrar, ou ainda que sejam as mesmas constituídas Arguidas. Qualquer destas acções traduzir-se-ia na prática de actos inúteis pois, a final, a decisão seria sempre a mesma.
Como o Ministério Público não pode substituir-se ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM na notificação que este pretende, afigura-se que a intenção do Assistente, insistindo nessa prática, passa pela instrumentalização do processo criminal, quando lhe bastava diligenciar ele mesmo pela concretização da notificação que, no seu entender, seria fácil de alcançar.
Como tal, a omissão não é do Ministério Público. O Ministério Público não omitiu a prática de alguns atos que se reputam obrigatórios ou diligências essenciais face à natureza do crime em questão, pelo que inexiste qualquer nulidade prevista no artigo 120.°, n° 2, alínea d) do Código do Processo Penal que cumpra conhecer, improcedendo, pois, a pretensão de ver alterada a decisão instrutória e a sua substituição por outra que declare inválido o despacho de arquivamento do inquérito.
Assim, naufraga o recurso.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso do Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, mantendo inalterada a decisão instrutória recorrida.
Custas pelo Recorrente, sem prejuízo de isenções subjectivas, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.
Lisboa, 05.Março.2024
Rui Coelho
(Relator)
Ester Pacheco dos Santos
(1.° Adjunto)
Maria José Machado
(2.° Adjunto)
Voto de vencida (Processo n.º 2897/22.4T9FNC.L1)
Votei vencida pela seguinte ordem de razões:
Está comprovado nos autos que o Instituto da Segurança Social enviou carta registada com aviso de recepção para a morada da sociedade arguida e da arguida sua gerente, que constava do processo dos serviços da Segurança Social, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, nº 4 do RGIT.
As cartas vieram devolvidas porque não foram reclamadas e não por qualquer outra razão.
Tratando-se de uma notificação a efectuar pela Segurança Social no âmbito de um procedimento administrativo, há que aplicar o disposto nos artigos 112.º, n.º1, alínea a) e 113.º, nº1 do Código de Procedimento Administrativo, por força do disposto no artigo 3.º alínea c) do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16/09.
Assim, a notificação aos responsáveis pelo pagamento das contribuições em dívida, para efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º4, alínea b) do RGIT, deve ser feito por carta registada dirigida para o domicílio do notificando ou, no caso de este o ter escolhido para o efeito, para outro domicílio por si indicado e presume-se feita no terceiro dia útil posterior ao registo ou no 1º dia útil seguinte. Nem a lei tributária, nem o Código de Procedimento Administrativo impõem no caso a notificação por contacto pessoal.
Idêntico regime quanto à notificação resulta do disposto no artigo 113.º do Código de Processo Penal ou das disposições do Código de Processo Civil (artigos 228.º e 230.º do CPC).
A não considerarmos efectuada a notificação, está aberta a porta para nunca se verificar a condição de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º4, alínea b) do RGIT, sempre que os devedores se furtarem às notificações da Segurança Social, não indo levantar as cartas registadas enviadas para esse efeito.
Os arestos citados na decisão que fez vencimento não versam sobre a questão da formalidade e validade da notificação aos devedores de contribuições à Segurança Social, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º4, alínea b) do RGIT. Nem sequer referem o modo como tal notificação deve ser efectuada e o autor citado, Tiago Milheiro, diz expressamente que quanto à notificação, para efeitos do artigo 105., nº4, al. b) do RGIT, se deverá seguir o formalismo imposto no artigo 113.ºdo CPP para as notificações ou seja, por contacto pessoal, por via postal registada ou por via postal simples com prova de depósito.
Considero, pois, que houve notificação válida dos arguidos nos termos e para os efeitos do art.º 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT e que a notificação efectuada contém todos os elementos que deveria conter ao contrário do que se entendeu no despacho recorrido.
Por isso, eu daria provimento ao recurso e revogaria o despacho recorrido, ordenando ao Juiz de instrução para proferir decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia face às provas existentes nos autos.
Maria José Machado