Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 11-01-2024   Com a notificação do acórdão traduzido se iniciará o prazo de recurso.
Atenta a situação processual que o recorrente teve nos autos, sobretudo tendo em conta a sua ausência ao longo de todo o julgamento, inclusivamente na leitura do acórdão, a sua considerável extensão, e a previsível demora na concretização da respectiva tradução, entendemos que apenas com a notificação do acórdão traduzido se iniciará o prazo de recurso do recorrente.
E isto porque apenas com o conhecimento do acórdão traduzido se encontrará o recorrente em condições, de uma forma informada, poder definir, designadamente em conjunto com seu Mandatário, como e em que medida deve reagir ao mesmo, assegurando-se a garantia constitucional de um efetivo direito de defesa do arguido.
Proc. 12/17.5JBLSB-NA.L1 9ª Secção
Desembargadores:  Amélia Carolina Dias Teixeira - Fernanda Sintra Amaral - -
Sumário elaborado por Carolina Costa
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Processo nº 12/17.5JBLSB - NA.L1
Acordaram, em conferência, as Juízes Desembargadoras da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Do Despacho recorrido
Em 09.08.2023 foi proferido o seguinte despacho:
«(...)
III - Requerimentos com vista à prorrogação do prazo para interposição de recurso, ao abrigo do disposto no art. 107º, nº 6 do CPP (referências 14051289, de 21-07-2023, 14053476, de 24-07-2023, 14053789, de 24-07-2023, 14064144, de 26-07-2023, 14072192, de 28-07-2023, 141026554, de 09-08-2023, 14081339, de 01-08-2023, 14097220, de 07-08-2023, 14098881, de 08-08-2023, 14101169, de 08-08-2023 e 14102654, de 09-08-2023):
Nos termos previstos no art. 107º, nº 6 do CPP, quando o procedimento se revelar de excecional complexidade, nos termos da parte final do n.º 3 do artigo 215.º, os prazos previstos nos artigos 78.º, 284.º, n.º 1, 287.º, 311.º-A, 411.º, n.os 1 e 3, e 413.º, n.º 1, são aumentados em 30 dias, sendo que, quando a excecional complexidade o justifique, o juiz, a requerimento, pode fixar prazo superior.
Face à extensão e complexidade dos autos, afigura-se justificada a prorrogação do prazo estabelecido pela lei enquanto regra - mesmo admitindo que parte do trabalho material a que aludem os arguidos se possa encontrar já realizada, como sejam as transcrições dos depoimentos das testemunhas, a análise dos documentos e mesmo o tratamento dogmático das questões jurídicas (se o tribunal teve contacto com os autos há cerca de dois anos, parte significativa dos Ilustres Mandatários trabalha afincadamente no mesmo há mais do dobro).
Assim, defere-se ao requerido concedendo-se para recurso o prazo de 120 dias, contados desde a data de notificação do despacho retificativo do acórdão, proferido nos autos a 01-08¬2023, uma vez que, em bom rigor, só nessa data tiveram acesso ao seu texto integral.
Note-se que a audiência de julgamento teve sempre a assistência de intérprete para todos os arguidos de nacionalidade estrangeira que o pretenderam, incluindo a sessão de leitura do acórdão, e que todos os arguidos são representados por advogados que se expressam em língua portuguesa, não havendo notícia de qualquer dificuldade de comunicação entre estes e os seus constituintes, mostrando dessa forma cumpridos todos os ditames legais interpretados à luz da Diretiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20-10-2010 – cfr. Acórdão do STJ de 11-05-2023, proferido no Proc. 6330/18.8JFLSB.S1 e disponível in www.dgsi.p27-06-2022.
(...)
«XII - Mais se determina que se contactem por via informal os Ilustres Mandatários dos demais arguidos estrangeiros indagando se os mesmos pretendem que seja realizada tradução.
Em caso afirmativo, diligencie igualmente pela sua realização, no mais curto prazo possível.»
Suscitado esclarecimentos quanto ao prazo de recurso, em 15.09.2023 foi proferido o seguinte despacho:
«(...) VII – Requerimento junto aos autos sob a referência 14166713, de 06-09-2023, solicitando esclarecimentos relativamente ao prazo para recurso: O Tribunal já se pronunciou sobre a matéria por despacho proferido nos autos em 09-08-2023. Declarada cessada a urgência conferida ao abrigo do disposto no art. 103º, nº 2, al. c) do CPP, passa a vigorar o disposto no nº1 do mencionado preceito, pelo que, em termos efetivos, o prazo para recurso teve início no primeiro dia útil após o terminus das férias judiciais.»

2. Recurso
Inconformado, o arguido Nazareno Paolo Anconetati interpôs recurso do referido despacho, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«1. Na sequência do despacho recorrido de 09-08-2023, o Arguido Recorrente, cidadão estrangeiro, que não domina de todo a língua portuguesa veio suscitar o facto do seu prazo para interpor recurso do acórdão condenatório ser, aparentemente, o mesmo dos restantes arguidos de nacionalidade portuguesa, pese embora lhe tenha sido deferida, e bem, a tradução do acórdão para a sua língua materna.
2. Com efeito, foi decidido pelo Tribunal a quo, no despacho datado de 09-08-2023, o seguinte: “Note-se que a audiência de julgamento teve sempre a assistência de intérprete para todos os arguidos de nacionalidade estrangeira que o pretenderam, incluindo a sessão de leitura do acórdão, e que todos os arguidos são representados por advogados que se expressam em língua portuguesa, não havendo notícia de qualquer dificuldade de comunicação entre estes e os seus constituintes, mostrando dessa forma cumpridos todos os ditames legais interpretados à luz da Diretiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20-10-2010 – cfr. Acórdão do STJ de 11-05-2023, proferido no Proc. 6330/18.8JFLSB.S1 e disponível in www.dgsi.pt.”
3. O Arguido Recorrente, por ser estrangeiro e não dominar a língua portuguesa, para além de ter solicitado esclarecimentos sobre o despacho supra citado, cautelarmente, invocou a nulidade caso o entendimento fosse o de que o prazo de recurso se iniciava para todos os Arguidos, incluindo estrangeiros, à data do depósito pela secretaria daquele e não do depósito ou notificação da respectiva tradução nos termos do artº. 3º nº 1 da Directiva 2010/64/EU.
4. Por despacho datado de 15-09-2023 veio o Tribunal a quo no ponto VII, sob a epígrafe “Requerimento junto aos autos sob a referência 14166713, de 06-09-2023, solicitando esclarecimentos relativamente ao prazo para recurso:” esclarecer que o prazo para recurso teve início no primeiro dia útil após o terminus das férias judiciais.
5. Contudo, relativamente à segunda questão mencionada no requerimento, note-se, o reconhecimento da contagem desse mesmo prazo somente aquando da receção do acórdão condenatório traduzido, declara o Tribunal que “já se pronunciou sobre a matéria por despacho proferido nos autos em 09-08-2023”, não se pronunciando sequer no que tange à nulidade invocada.
6. A Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20-10-2010, veio estabelecer a importância das traduções para um processo equitativo. Assim, estabelece o n° 1 do artigo 3° que “os Estados Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo” razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo”.
Deste excerto, é importante aprofundar dois conceitos que consideramos essenciais, sendo eles o “lapso de tempo razoável” e “documentos essenciais”.
7. O último conceito mencionado é, posteriormente, explicitado no nº 2 do mesmo artigo, sendo considerados documentos essenciais: 1) as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, 2) a acusação ou a pronúncia, e 3) as sentenças.
8. É importante referir e, aliás, como se extrai através da correcta interpretação do nº 1 do artigo, que estes documentos, diga-se, neste caso concreto, o acórdão proferido, necessitam sempre de tradução, não sendo suficiente uma interpretação oral dos mesmos, sob pena de violação da Directiva.
9. Entende a maioria da doutrina e jurisprudência que, e relativamente à exceção que consta do nº 7, a mesma deve depender do caso concreto mas que, esta não necessidade de tradução se deve aplicar a casos considerados manifestamente simples. Entenda-se, a título exemplificativo, casos manifestamente simples como aqueles em que estejam em causa factos facilmente apreensíveis e evidentes, sem prova relevante ou abundante (como será o caso de uma condução em estado de embriaguez ou condução sem habilitação legal), permitindo assim e também uma relevante contenção de custos inerentes à tradução.
10. No caso em apreço, estamos perante um pesado acórdão condenatório que visou 88 arguidos em elevadas penas de prisão. Para além disso, encontra-se inserido no conceito de especial complexidade a extensão da devida tradução aos documentos essenciais e, no caso em concreto que nos cumpre apreciar, encontramo-nos perante um Acórdão com 2833 páginas, algo que julgamos bastante extenso e de difícil compreensão.
11. Apesar de, e como foi referido, e corretamente pelo Tribunal a quo, a decisão ter sido lida por súmula com tradução em simultâneo, consideramos ser consideravelmente desafiador o entendimento, por parte do Arguido da extensão da decisão, bem como o que desta resulta. Sem esta correta compreensão, torna-se substancialmente difícil para o mesmo, se assim o entender, recorrer da matéria de facto daquilo que poderá considerar um erro de julgamento, prejudicando, de forma acentuada, o seu direito de defesa.
12. Ora, apesar de a lei não o prever expressamente, parece-nos evidente que a interpretação conforme à Constituição que deve ser feita do artº. 411º nº1 al. b) do C.P.P. é que no caso de Arguidos estrangeiros que não compreendem de todo a língua portuguesa, o prazo para interposição de recurso só pode iniciar-se com o depósito da sentença traduzida ou com a notificação desta ao respectivo Arguido, na medida em que só nesse momento vai ser permitido ao Arguido exercer, de forma justa e plena, a sua defesa.
13. O Arguido Recorrente não desconhece a jurisprudência citada no despacho recorrido, aliás, singular, do STJ, no qual o Tribunal a quo sustenta a sua decisão nesta questão. Porém, a única semelhança prende-se com a leitura por súmula que foi efectuada num caso e noutro!
Ora, tal aparente situação não tem na verdade qualquer semelhança com o presente caso, a não ser que, num e noutro caso a leitura do acórdão foi feita por súmula. Porém, diríamos mesmo, assim acontece em todos os casos existam ou não Arguidos estrangeiros. No mais, o Acórdão em que o Tribunal recorrido tenta sustentar a sua decisão possui diferenças significativas relativamente ao caso em apreço. Na verdade, as diferenças são avassaladoras.
14. No caso do citado aresto do STJ a que o Tribunal a quo faz referência, procedeu-se a uma leitura por súmula a um (note-se, somente um) arguido de uma decisão significativamente menos extensa não deve servir como base justificativa para o caso que nos cumpre apreciar.
15. Com o devido respeito, em comparação com o caso que nos ocupa, parece-nos evidente que os direitos que devem ser garantidos ao Arguido se encontram significativamente mais fragilizados quando se verifica a leitura por sumula de uma decisão referente a 88 arguidos, de um julgamento que durou, sensivelmente, um ano, com uma considerável complexidade de factos a apreciar, factos esses que não podem, de forma alguma, ser de fácil compreensão para o Arguido em somente um momento (note-se, o da leitura da decisão por súmula), sendo necessário para o mesmo a correta análise de dezenas de factos que contra si foram dados como provados, bem como centenas de páginas de motivação, de modo a que possa exercer plenamente os seus direitos.
16. Ademais, parece-nos que, no citado aresto do STJ, aparentemente justificativo da decisão tomada pelo Tribunal recorrido, consigna-se uma situação distinta. Com efeito, defenderam os Ilustre Conselheiros que naquele caso concreto (o que não significa que isso possa ser extraído para os demais) não decorria da Directiva uma obrigatoriedade de prorrogação do prazo de recurso, na medida em que, no douto entender daqueles, foi respeitado o designado “lapso de tempo razoável” relativamente à possibilidade de exercício tempestivo do direito de defesa e à garantia de equidade do processo, uma vez que a tradução foi facultada ao Arguido 7 (sete) dias depois da leitura do acórdão, algo que, realisticamente, não nos parece especialmente impeditivo do direito de defesa do Arguido em questão.
17. Já no presente caso, a tradução solicitada foi somente deferida pelo Tribunal recorrido, não tendo sido ainda disponibilizada (desconhece-se até se já começou a ser elaborada) o que, uma vez mais, nos parece significativamente diferente.
18. Não se sabendo sequer quando irá ser entregue a tradução de uma decisão de 2833 páginas, parece-nos inconcebível que o prazo para o recurso dessa mesma decisão esteja já a correr para o aqui Recorrente, bem como para os demais Arguidos estrangeiros que, repete-se, não falam nem compreendem nada da língua portuguesa, como de resto o Tribunal a quo bem sabe.
19. Mesmo alegando que já foi facultada ao Arguido o acórdão condenatório, do qual o mesmo pode recorrer se assim entender, mais uma vez parece-nos que tal consubstancia uma considerável discrepância relativamente aos demais arguidos de nacionalidade portuguesa, na medida em que a esses lhes é fornecida uma decisão na sua língua materna onde, com o auxílio dos respetivos Mandatários, lhes é possível, de maneira justa, interpor recurso, se assim o entenderem, com a perfeita e clara noção de tudo o que lhes é imputado.
20. Ora, torna-se lógico que se, por um lado, é obrigatória a tradução do acórdão condenatório, de modo a que o arguido possa exercer o seu direito de defesa, por outro, o prazo para recurso do mesmo também só pode contar a partir da respetiva disponibilização.
Aliás, neste âmbito talvez seja preciso relembrar que, no passado, Portugal já foi condenado por violação da CEDH, por ter assumido um entendimento diferente ao referido (Panasenko v. Portugal, 2008).
21. Considerando que o prazo para interposição de recurso para qualquer arguido português se conta a partir do depósito da sentença (artº. 411º nº1 al. b) do C.P.P.), na medida em que é desde aí que a mesma se encontra disponível para ser corretamente analisada, também para o arguido estrangeiro essa possibilidade de análise só surge, logicamente, com a disponibilização da respectiva tradução. Insiste-se que esta é, aliás, a única interpretação possível conforme à Constituição, no quadro da Directiva que vimos citando e de acordo com a jurisprudência do TEDH.
22. Aliás, se dúvidas existiam quanto a esta matéria, o Arguido Recorrente sugeriu inclusivamente ao Tribunal recorrido o reenvio prejudicial sobre esta questão (o que não é nenhuma novidade, na medida em que num caso paralelo foi recentemente solicitado pelo TRE). Porém, se é certo que o Tribunal recorrido gozava de discricionariedade na decisão de colocar ou não a questão prejudicial, consoante considere que a mesma é necessária ou não ao julgamento da causa;
23. Já no que concerne a esta Alta instância, o reenvio assume carácter de obrigatoriedade, uma vez que a questão já não é susceptível de recurso, para que através deste mecanismo contencioso, se garanta a uniformidade na interpretação e aplicação do Direito da União Europeia.
24. Foi nesta sequência que o Recorrente invocou a nulidade do decidido pelo Tribunal recorrido, caso o entendimento fosse o de que o prazo de recurso se iniciava para todos os Arguidos, incluindo estrangeiros, à data do depósito pela secretaria do acórdão e não do depósito ou notificação da respectiva tradução nos termos do artº. 3º nº 1 da Directiva 2010/64/EU.
25. Vício esse que o Tribunal recorrido nem sequer se dignou a se pronunciar.
26. Assim, ao abrigo da alínea c) do nº 2 do artigo 120º do CPP, deve considerar-se insanavelmente nulo o Despacho datado de 09-08-2023, cujo efeito afecta, simultaneamente, o Despacho datado de 15-09-2023, (nulidade essa que, e como já foi sustentado anteriormente, não é sanável).
27. Insanavelmente nulo porque a imperatividade resultante da aplicação das normas das Directivas e da Jurisprudência do TJ, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União e determina a desaplicação do regime da sanação das nulidades estabelecido pelo artigo 120º, nº 3 CPP.
28. Finalmente, o Arguido Recorrente suscitou e suscita ainda a inconstitucionalidade material na interpretação conjugada dos artigos 113º nº 10 e 411º nº 1 al. b), ambos do C.P.P. e artigo 3º nº1 da Directiva 2010/64/EU face à sua aplicação vertical directa segundo a qual, no caso de Arguido estrangeiro que não compreende a língua portuguesa o prazo para interposição do recurso conta-se desde o depósito do acórdão na secretaria em língua portuguesa e não desde o seu depósito ou notificação na sua língua materna, uma vez que audiência de julgamento teve sempre a assistência de intérprete para todos os arguidos de nacionalidade estrangeira que o pretenderam, incluindo a sessão de leitura do acórdão, a qual foi por súmula, por manifesta violação do artigos 13º nº 2, 18º nº3, 20º nº1, 32º nº1 da C.R.P. e ainda artigo 6º CEDH.”
Mais conclui pelo provimento do recurso e, em consequência, pela substituição do despacho por outro que determine que o prazo de interposição de recurso para o arguido estrangeiro que não domina, de todo, a língua portuguesa se inicia com o depósito ou notificação da respectiva tradução do acórdão e, bem assim, pela declaração de inconstitucionalidade material da interpretação dada aos artigos 113º, nº 10 e 411º, nº 1, al. b), ambos do Código de Processo Penal e artº 3º, nº 1 da Directiva 2010/64/EU face à sua aplicação vertical directa.»

Após a admissão do referido recurso, o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao mesmo no sentido da sua improcedência. Argumenta, em síntese, o seguinte:
«(...) resta concluir que tendo o Recorrente sido julgado na ausência e mostrando-se representado pelo seu Ilustre Mandatário para todos os efeitos legais, não é exigível a tradução do acórdão e, muito menos, defensável que o prazo de interposição de recurso concedido pelo Tribunal a quo, de 120 (cento e vinte) dias, se inicie com a notificação da tradução, sendo por demais evidente que o prazo se iniciou com a leitura do acórdão, acto em que esteve presente o seu Ilustre Mandatário, em sua representação – nos moldes concretizados pelo Tribunal a quo após a cessação da natureza urgente dos autos –, inexistindo qualquer violação dos seus direitos de defesa, mostrando-se observado o preceituado nos artigos 113º, nº 10 e 411º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal, no artº 3º, nº 1 da Directiva 2010/64/EU e, bem assim, os ditames constitucionais consagrados nos artigos 13º, nº 2, 18º, nº 3, 20º, nº 1 e 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.»

Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral emitiu parecer, pugnando pelo provimento do recurso. Nesse parecer afirma-se, em síntese, o seguinte (transcrição parcial):
«(...) O signatário, tem presente que “O processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Recorda ainda o art.' 3.' n.' 1 da Directiva 2010/64/EU, cuja epígrafe reza “Direito à tradução dos documentos essenciais”, e cujo texto consigna “Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo.”
Mais ocorre que estas salvaguardas não se satisfazem com a representação forense, por mais prestimosa que seja.»

Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado resposta ao parecer do Ministério Público .

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cf. por todos, o Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, Iª Série - A, de 28/12/95).
Ora, no caso vertente, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a questão que importa apreciar e decidir é a de saber a partir de quando começa a correr o prazo de 120 (cento e vinte) dias concedido pelo Tribunal para efeitos de interposição de recurso pelo arguido.

B) Apreciação do recurso
Transcritos que já estão supra os despachos sobre os quais incidiram o recurso, com vista à apreciação da questão acima enunciada, importa ainda considerar que dos elementos com que vem instruída a certidão e dos que constam do processo principal, que nos foram disponibilizados, resulta o seguinte:
- O arguido é natural da Alemanha (de nacionalidade italiana);
- O recorrente veio requerer e consentir na realização do julgamento na ausência, através de requerimento junto aos autos sob a referência citius 11380781, pretensão que foi deferida por despacho datado de 24/09/2021 (referência citius 149862647), proferido no Apenso AD, por se verificarem os pressupostos previstos no artº 334º, nºs 2 e 4 do Código de Processo Penal, tendo sido representado para todos os efeitos, pelo seu Ilustre Mandatário em todas as sessões de julgamento.
- O arguido, ora recorrente, não esteve presente na leitura do acórdão, tendo sido representado pelo seu Mandatário;
- O acórdão foi lido, por súmula, no dia 20.07.2023 e depositado nesse mesmo dia, tendo sido objecto de despacho de rectificação, proferido em 01.08.2023, ao abrigo do disposto no art. 380º, do C. de Processo Penal;
- No dia 20.10.2023 foi junta aos autos a tradução autorizada pelo tribunal a quo para a língua alemã do acórdão condenatório (referência citius 14354888).
Vejamos então.
Como referimos supra, a questão fundamental a resolver consiste em saber quando se inicia a contagem do prazo de 120 (cento e vinte) dias concedido pelo Tribunal a quo para efeitos de interposição de recurso.
Sustenta o recorrente que não domina a língua portuguesa, e, nessa medida, o prazo de interposição de recurso deve ter início com o depósito ou notificação da tradução do acórdão, uma vez que só esta interpretação do artº 411º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal é conforme com a Constituição e com o artigo 3º, nº1 da Directiva 2010/64/EU.
Por seu turno, entendeu o tribunal a quo que o prazo de 120 dias para a interposição de recurso inicia-se a contar da data de notificação do despacho rectificativo do acórdão proferido, não obstante ter ordenado a tradução desta decisão
Quid Iuris?
Sendo, pois, de 120 dias o prazo prorrogado para interposição do recurso pelo arguido, há então que determinar a partir de quando ele começa a correr.
Resulta dos autos que o arguido, natural da Alemanha, e de nacionalidade italiana, que se presume que não entende o português, e que não renunciou à tradução de documentos essenciais para o exercício da sua defesa, a que alude o artigo 3.º, n.º 8 da Diretiva n.º 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/10/2010, não esteve presente na sessão de leitura do acórdão, tendo sido representado pelo seu Mandatário nos termos previstos no artigo 334º, nºs 2 e 4, do Código de Processo Penal.
Do que se deixa escrito, decorre que o recorrente, porque não esteve presente, não tomou na sessão de leitura do acórdão conhecimento na sua língua materna nem da sua condenação nem dos respectivos fundamentos.
Assim, assiste-lhe o direito à tradução da sentença na sua língua de origem, direito, que, aliás, foi assegurado pelo tribunal a quo que autorizou a tradução.
Efectivamente, está em causa o direito de defesa do arguido, uma vez que se está já perante uma condenação e está em causa o direito ao recurso dessa mesma decisão, só plenamente alcançável se o arguido conhecer, não só a pena em que foi condenado, mas também e sobretudo os factos que o tribunal julgou provados e em que fundamentou a condenação.
Como se expliciou no Acórdão desta Relação de Lisboa de 14.11.2023 (relatado pelo Ex.mo Sr. Desembargador João Ferreira - acessível in www.dgsi.pt), a propósito do enquadramento jurídico dos direitos do arguido não conhecedor da língua portuguesa no processo penal, designadamente quanto à notificação e tradução dos documentos essenciais e atos processuais que lhe dizem respeito: «Nesta matéria, o primeiro elemento a ter em consideração é que o regime regra das notificações dos atos processuais ao arguido em processo crime, designadamente, o resultante do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, al. c) e 113.º, n.º 10 ambos do Código de Processo Penal, baseia-se no principio que o arguido entende a língua portuguesa, na qual estão redigidos todos os atos processuais, como decorre do disposto no artigo 92.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Nas situações em que o arguido não conhece ou não domina a língua portuguesa, dispõe o artigo 92.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, em vigor à data dos factos e até 28 de Agosto de 2023, que ao mesmo é nomeado intérprete, sendo que a falta de tal nomeação constitui uma nulidade sanável, dependente de arguição, nos termos do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, al. c) e 121.º ambos do Código de Processo Penal.
Até à entrada em vigor do regime introduzido pela Lei n.º 52/2023, de 28 de Agosto, o Código de Processo Penal era omisso quanto ao direito que o arguido tinha de ter acesso ao conteúdo dos atos processuais que lhe dizem respeito em língua que compreenda, isto é, direito à respetiva tradução.
Não obstante esta omissão legal, a verdade é que tal obrigatoriedade de tradução dos documentos essenciais do processo ao arguido – designadamente, auto de constituição de arguido, Termo de Identidade e Residência, notificações para atos processuais a que o mesmo tem o direito de estar presente, acusação e sentença e, em geral, qualquer despacho donde resulte a privação da liberdade do arguido - resultava da aplicação no nosso ordenamento das normas constantes dos artigos 1º a 3º da Diretiva n.º 2010/64/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/10/2010 e artigo 3.º da Diretiva n.º 2012/13/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22/05/2012.
Com efeito, quanto à primeira Diretiva, tendo a mesma sido publicada no Jornal Oficial da União Europeia a 26/10/2010, entrando em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação (artigo 11.º), dispunha o seu artigo 9.º a obrigatoriedade da sua transposição para o direito interno de cada Estado-Membro até ao dia 27/10/2013. Por sua vez, a Diretiva n.º 2012/13/EU, foi publicada no Jornal Oficial da União Europeia a 01706/2012, entrando em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação (artigo 13.º), dispondo o seu artigo 11.º a obrigatoriedade da sua transposição para o direito interno de cada Estado-Membro até ao dia 02/06/2014.
Mesmo sem tal transposição, o Estado Português, e, designadamente os Tribunais Portugueses, estavam obrigados a aplicar o regime instituído em tais Diretivas, por efeito do chamado efeito direto vertical de uma Diretiva no ordenamento jurídico de um Estado-Membro, como corolário do princípio do primado do direito da EU.
No que diz respeito ao direito à nomeação de intérprete e à disponibilização de tradução dos atos processuais aos arguidos estrangeiros, que não compreendam a língua, estabelece a Diretiva n.º 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de22/05/2012, relativa ao direito à informação em processo penal, prevê no seu artigo 3.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, o direito à interpretação e tradução, oral ou por escrito, em linguagem simples e acessível, tendo em conta as necessidades específicas dos suspeitos ou acusados vulneráveis. Este direito já resulta do estatuído no artigo 6.º, n.º 3, al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Quanto aos documentos que devem ser traduzidos, resulta do disposto nos artigos 6.º e 7.º, n.º 1 da referida Diretiva que devem ser todos aqueles «essenciais para impugnar eficazmente, nos termos do direito nacional, a legalidade da detenção ou prisão».
No artigo 3.º, n.º 2 da Diretiva n.º 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/10/2010, consideram-se documentos essenciais, «as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças», sem prejuízo das «autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial.» (cf. artigo 3.º, n.º 3)
Nesse sentido, aquando da sentença condenatória, caso o arguido não entenda a língua portuguesa, terá a mesma que ser traduzida e entregue uma cópia traduzida ao arguido para que o mesmo apossa compreender e fazer valer os seus direitos em conformidade.
Este regime não só é de aplicação no ordenamento português por efeito das referidas Diretivas, após as datas supra mencionadas, como o mesmo foi consagrado na revisão do Código de Processo Penal, operada pela entrada em vigor da Lei n.º 52/2023, de 28/08.Com este diploma, consagrou-se o direito do arguido, que não conhece ou domina a língua portuguesa, de ver traduzido os documentos essenciais para o exercício do seu direito de defesa, que lhe são comunicados e de ter um intérprete (artigo 61.º, n.º 1, alínea j) do Código de Processo Penal) e, em concreto, de ver traduzido na sua língua o auto de constituição de arguido (artigo 58.º, n.º 6 do Código de Processo Penal), o Termo de Identidade e Residência (cf. artigo 336.º, n.º2 do Código de Processo Penal), e de todos os documentos referidos no artigo 113.º, n.º 10 do Código de Processo Penal (cf. artigo 92.º, n.º 3 do Código de Processo Penal), para além do arguido poder apresentar pedido fundamentado de tradução de documentos do processo que considere essenciais para o exercício do direito de defesa (cf. artigo 92.º, n.º 6 do Código de Processo Penal).»
No que respeita ao dies a quo para a interposição do recurso, importa considerar que resulta ainda dos autos que o arguido não esteve presente em nenhuma das sessões de julgamento, tendo requerido e consentido na realização do julgamento na sua ausência, através de requerimento junto aos autos sob a referência citius 11380781, pretensão que foi deferida por despacho datado de 24/09/2021 (referência citius 149862647 do Apenso AD), por se verificarem os pressupostos previstos no artº 334º, nºs 2 e 4 do Código de Processo Penal, sendo representado para todos os efeitos, pelo seu Ilustre Mandatário.
Por outro lado, o acórdão proferido pela 1ª instância é composto por 2833 páginas, ou seja, assume uma extensão considerável, donde decorre que a tarefa de tradução pode levar muito tempo e o procedimento revela-se de excepcional complexidade (atente-se no número de arguidos - 88).
Conforme resulta do estatuído no art. 111º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, a comunicação dos actos processuais destina-se a transmitir o conteúdo de despacho proferido no processo. Ora, essa transmissão visada com a comunicação ou notificação só ocorre quando o destinatário tem efectivo conhecimento do conteúdo do despacho ou, no caso, do acórdão.
Por conseguinte, e ressalvando sempre o devido respeito por opinião diversa, a transmissão apenas ocorre se efectuada por forma a que o destinatário possa conhecer cabalmente o conteúdo do acórdão. Desconhecendo o recorrente a língua portuguesa usada no acto, a transmissão apenas se poderá considerar devidamente executada quando lhe for transmitida em língua que conheça, no caso, a língua materna.
Por conseguinte, embora o arguido se deva considerar notificado com a leitura do acórdão, em que esteve ausente mas representado pelo seu Mandatário, nos termos previstos no artigo 334º, nºs 2 e 4 do Código de Processo Penal, a notificação apenas se pode considerar válida e cabalmente efectuada com a notificação do acórdão devidamente traduzido, pois só então o arguido conhecerá todos os fundamentos em que assentou a sua condenação e ficou na posse de todos os elementos para assegurar eficazmente o direito ao recurso e, nessa medida, o seu direito de defesa (neste sentido veja-se a decisão da reclamação nº 124/10.6JBLSB-F.E1, Relator: Desembargador António M. Ribeiro Cardoso, acessível em www.dgsi.pt e Júlio Barbosa e Silva, in “A Directiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal”, consultável em JULGAR Online, março de 2018 | 34).
Temos, então, que no caso concreto, atenta a situação processual que o recorrente teve nos autos e acima descrita, sobretudo tendo em conta a sua ausência ao longo de todo o julgamento, inclusivamente na leitura do acórdão, a sua considerável extensão, e a previsível demora na concretização da respectiva tradução, entendemos que apenas com a notificação do acórdão traduzido se iniciará o prazo de recurso do recorrente.
E isto porque apenas com o conhecimento do acórdão traduzido se encontrará o recorrente em condições, de uma forma informada, poder definir, designadamente em conjunto com seu Mandatário, como e em que medida deve reagir ao mesmo, assegurando-se a garantia constitucional de um efetivo direito de defesa do arguido.
Donde e sem necessidade de mais considerações, por tudo o deixado expendido
entendemos que é de revogar o despacho proferido.
Nesta medida, procede o interposto recurso, mostrando-se prejudicada a necessidade deste Tribunal ad quem tomar posição quanto às questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo arguido.

III. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente revogar o despacho recorrido, determinando-se que o prazo de 120 dias concedido para interposição de recuso do acórdão condenatório conta-se desde a data da notificação ao recorrente do acórdão traduzido.

Sem custas
Notifique.

Lisboa, 11 de Janeiro de 2024
As Juízes Desembargadoras (processado a computador pela relatora e revisto por
todos as signatárias; assinaturas eletrónicas)
Amélia Carolina Teixeira (Relatora)
Maria Ângela Reguengo da Luz (1ª Adjunta)
Fernanda Sintra Amaral (2ª Adjunta)