Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 06-02-2024   Princípio da lealdade processual - gravação aúdio vídeo - armada portuguesa competência para inspeção - medidas cautelares e de polícia em embarcação na zee portuguesa - tráfico de estupefacientes busca a embarcação - defensor oficioso
I–No âmbito da resposta prevista no art. 413º do CPP não podem ser introduzidas questões novas que não tenham sido suscitadas e resolvidas na decisão de que se recorre, e que extravasem as conclusões do recurso.
II–Mantendo ao longo do processo o Mº Público a posição de que o Estado Português estava legitimado para intervir e era competente, não se verifica qualquer oscilação em sentido contrário na posição por aquele assumida nos autos e consequentemente qualquer violação do princípio da lealdade processual.
III– A posição das autoridades … ao afirmarem que a autoridade que consta do Diretório CNA da UNDOC não é competente e a mera indicação de outras entidades que não tenham sido comunicadas ao Secretário-Geral e notificadas às restantes Partes contratantes, não permite que as autoridades Portuguesas possam efetivamente requerer a autorização nos termos do art. 17º nº 3 e 4 da Convenção de Viena a quem de Direito, e o subsequente silêncio operado pelo Estado … deve ser interpretado como renúncia ao exercício da jurisdição preferencial, legitimando a intervenção do Estado Português.
IV–E assim, as operações da Marinha de Guerra portuguesa na abordagem a uma embarcação na Zona Económica Exclusiva, inspeção, medidas cautelares e medidas de polícia subsequente são legitimas, pois que exercidas no âmbito de competência própria para a prevenção e repressão do Narcotráfico ( art. 1º e 6º, nº 2 al. k) do DL 43/2002 de 2 de março) e a intervenção do Estado português respeita o disposto no art. 5º, nº 2 do Código Penal, 49º do DL nº 15/93 de 22 .01 e o art. 6º do DL nº 43/2002 de 02.03; 18º al. b) da Lei nº 34/2006 de 28.07 e 108º da CNUDM.
V–As normas do artº 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, no que respeita à autorização a conceder, ou não, para procedimento em navio que ostenta a sua bandeira a outro Estado, visam proteger a soberania dos Estados de pavilhão sobre os respetivos navios, pelo que, mesmo ocorrendo falta de autorização, esta conduziria, quanto muito, a um eventual diferendo entre Estados, não tendo qualquer influência sobre buscas que tenham sido levadas a cabo ao abrigo de prévios mandados emitidos pelo Juiz de Instrução Criminal.
VI–Estando a busca à embarcação sustentada em mandado judicial que avaliou e decidiu da verificação dos respetivos pressupostos e não havendo necessidade da intervenção do arguido nesse ato, não se integra esta diligência no disposto no art. 64º, nº 1 al. d) do CPP e, consequentemente, inexiste a obrigatoriedade processual de nomeação de defensor, pelo que não tendo este sido nomeado, não ocorre a nulidade prevista no art. 119º, al. c) do Código de Processo Penal.
VII–Tendo acontecido a detenção dos arguidos pelas 12 horas de um sábado e comunicado o direito de constituir advogado ou de solicitar a nomeação de defensor, que estes não usaram, e tendo essa nomeação ocorrido na segunda-feira seguinte, mediante despacho do Juiz de Instrução Criminal, em momento prévio ao 1º interrogatório judicial daqueles arguidos, não ocorre violação da Diretiva 2013/48/EU do Parlamento e do Conselho de 22.10.2013 (recentemente transposta pela Lei 52/2023, de 28 de agosto) que impõe que o arguido tenha acesso a um advogado sem demora injustificada após a sua detenção.
(Sumário da responsabilidade da relatora)
Proc. 335/22.1JELSB.L1 5ª Secção
Desembargadores:  Sandra Ferreira - Mafalda Sequinho dos Santos - -
Sumário elaborado por Carolina Costa
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Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I–RELATÓRIO
I.1–No âmbito do processo n.º 335/22.1JELSB que corre termos pelo Juízo de Instrução criminal de Ponta Delgada, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores a ........2023, foi proferida decisão Instrutória (despacho de não pronúncia) concluindo-se ali da seguinte forma [transcrição]:
“(…)Em face do exposto:
- não pronuncio os coarguidos AA e BB pela prática dos imputados crimes de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts. 21º/ 1 e 24º/ c), e de adesão a associação criminosa, p. e p. pelo art. 28º/ 2, todos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro;
- julgo verificada a nulidade do ato processual de tomada de termo de identidade e residência (TIR) e, consequentemente, determino a sujeição dos coarguidos AA e BB a (novo) TIR, de imediato;
- revogo e julgo extinta, com efeitos imediatos, a medida de coação de prisão preventiva aplicada a cada um dos coarguidos AA e BB;
- declaro as substâncias estupefacientes perdidas a favor do Estado e a correspondente destruição;
- determino a restituição aos coarguidos AA e BB de todos os demais objetos e valores apreendidos.
Restitua os coarguidos AA e BB à liberdade.
Sem custas processuais.
Comunique, de imediato, ao Tribunal da Relação de Lisboa (por referência ao apenso “A”).
Notifique.

Após o trânsito em julgado desta decisão instrutória, notifique os coarguidos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 186º/ 3 do CPP.

I.2 –Recurso da decisão
Inconformado com esta decisão dela veio o Mº Público recorrer apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“Pelas razões acima indicadas, formulam-se as seguintes CONCLUSÕES:
I–Por despacho de ...-...-2023 o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Juízo de Instrução Criminal de ... não pronunciou os arguidos AA e BB pela prática, em co-autoria e em concurso real, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p.p. artigo 21º/1 e 24º, alínea c), e de um crime de adesão a associação criminosa, p.p .artigo 28º/2 do Decreto Lei 15/93 de 22 de janeiro, pelos quais os arguidos foram acusados, por entender que:
«No caso dos autos, sabendo-se que a tomada de medidas ao abrigo do cit. art. 17º da Convenção de Viena carece de autorização do Estado do pavilhão - independentemente de a autoridade concreta do Estado ... competente constar, ou não, da atualização da listagem de contactos pública para o efeito l6 [noto que a própria autoridade convocada inicialmente esclareceu, no dia ........2022 (portanto, em momento anterior ao da abordagem da embarcação pela Marinha de Guerra), não ser competente/ autorizada para dar seguimento à solicitação no âmbito do art. 17º da Convenção (cabendo essa designação, exclusivamente, a cada Estado Parte - cfr. segunda parte do art. 17º/ 7 da Convenção de Viena)] -, e que essa autorização não foi concedida, a vexata quaestio consiste em saber se a intervenção das autoridades portugueses, ainda assim, está legitimada, ou não, por outra(s) norma(s) legal(ais).
A proibição de prova resultante da busca e apreensões, e correlativa exclusão de valoração, abrange, necessariamente, por que dali diretamente decorrente (e, como referi, sem se cogitar outra forma legal de obtenção da prova), os seguintes elementos elencados na acusação: o auto de pesagem e despistagem e o relatório pericial de toxicologia (umbilicalmente relacionado com o produto estupefaciente apreendido), a planta e o relatório de exame à embarcação, a reportagem fotográfica de bens apreendidos, a cópia dos passaportes dos coarguidos, o auto de detenção em flagrante delito, a guia de depósito de objetos e o relatório aos aparelhos apreendidos (art. 1229/ 3 do CPP).
Nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 109º/ 1 e 2 do CP e dos arts. 35º/ 1, 2 e 3 e 62º/ 6, ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro (ou, subsidiariamente, em caso de inaplicabilidade da lei penal portuguesa, à luz do princípio internacional em matéria de combate ao tráfico de estupefacientes), a substância estupefaciente deverá ser declarada perdida a favor do Estado e destruída.
Todos os demais objetos e valores, cuja apreensão deixa de relevar, deverão ser restituídos aos coarguidos.»
II– O Ministério Público entende que, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 179 da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico de drogas; foram cumpridas as regras de obtenção e produção de prova que conduziram à realização da busca, a qual obedeceu ás regras do Código de processo penal; sendo as mesmas e o seu resultado (apreensão, auto de pesagem, relatório pericial de toxicologia,...) válidas á luz do Código de Processo Penal Português.
III– Dos autos resulta, que:
IV–a)- em ........2022, as autoridades policiais portuguesas têm conhecimento da forte suspeita do transporte de substâncias estupefacientes por um veleiro do tipo catamarã, denominado ..., que ostenta o pavilhão da ..., vindo de algures da ... e de regresso à ..., e que estaria próximo dos … (fls. 1), e de características melhor assinaladas na informação descritiva e fotográfica a fls. 5-6;
b)- em ........2022, a Polícia Judiciária sinaliza internamente a necessidade de realização de busca à embarcação ... (fls. 2-4), o que é proposto ao Ministério Público (fls. 8-10);
c)- em ........2022, a Policia Judiciária dirige às autoridades ... designada pelo ... para responder a tal pedido - Central Bureau of Investigation- Drug Division, por telecópia, o pedido de autorização de intervenção das autoridades portuguesas ao abrigo do art. 17º da Convenção de Viena, identificando cabalmente a embarcação (fls. 23-24), que, ao que tudo indica, não é recebido nesse dia, nem no dia seguinte, por motivo de memória cheia, erro nas comunicações (fls. 25, 26, 27 e 28);
d)- em ........2022, às ll:25h., a Polícia Judiciária dirige, novamente, às autoridades …, por correio eletrónico, o pedido de autorização de intervenção das autoridades portuguesas ao abrigo do art. 179 da Convenção de Viena, identificando cabalmente a embarcação (fls. 30-30v.);
e)- em ........2022, às 14:40h., as autoridades ... respondem, por correio eletrónico, confirmando que a embarcação tem o pavilhão da ... e informam que está registada em nome do coarguido AA e, bem assim, que não são a entidade competente/ autorizada para dar seguimento à solicitação no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena (fls. 29);
f)- em ........2022, às 8:48h.; as autoridades ... respondem novamente, por correio eletrónico, a pedido do mesmo jaez encaminhado por outra entidade, reiterando que não são a entidade competente/autorizada para dar seguimento à solicitação no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena (fls. 31-32);
g)- em ........2022, às 13:03h., as autoridades ... respondem novamente, por correio eletrónico, reiterando que não são a entidade competente/autorizada para dar seguimento à solicitação no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena, indicando qual é essa entidade e informando que o pedido foi reencaminhado à mesma (fls. 33-34), havendo notícia de conformação do recibo de leitura, por parte desta, no dia ........2022 (fls. 38);
h)- não houve resposta expressa, pelas autoridades ..., à solicitação de tomada de medidas no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena.
V–Em causa está um crime de tráfico de estupefacientes e sobre a matéria rege a alínea b) do artº 49º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1, segundo 0 qual para efeitos do presente diploma, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional... quando praticados a bordo de navio contra o qual Portugal tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988.
VI–A transposição para o direito interno dos objectivos e regras que, num processo evolutivo, vão sendo adquiridos pela comunidade internacional mostra-se necessária ao seu funcionamento prático, acontecendo que as disposições mais significativas daquela Convenção das Nações Unidas não são exequíveis sem mediação legislativa.
VII– Perfeitamente consonante se mostra ainda aquela norma do artº 49º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1 com a que resulta do disposto no nº 2 do artº 5º do Código Penal, segundo o qual a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional que 0 Estado Português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional.
VIII– E é fora de dúvida, perante os elementos que logo constam da fase inicial do processo, que neste caso Portugal foi autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, 0 que solicitou ao país de bandeira da embarcação em causa.
IX–0 artigo 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes de 1988, quanto ao Tráfico ilícito por mar, estabelece que:
1-As Partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar.
2-A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio com o seu pavilhão, ou sem qualquer pavilhão ou matrícula, é utilizado para o tráfico ilícito, pode solicitar auxílio às outras Partes a fim de pôr termo a essa utilização. As Partes assim solicitadas prestam essa assistência no limite dos meios de que dispõem.
3-A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio no uso da liberdade de navegação de acordo com o direito internacional e que arvore o pavilhão ou tenha matrícula de uma outra Parte é utilizado para o tráfico ilícito, pode notificar desse facto o Estado do pavilhão e solicitar a confirmação da matrícula; se esta for confirmada, pode solicitar ao Estado do pavilhão autorização para adoptar as medidas adequadas em relação a esse navio.
4-De acordo com o n.º 3 ou com os tratados em vigor entre as Partes ou com qualquer outro acordo ou protocolo por elas celebrado, o Estado do pavilhão pode autorizar o Estado requerente a, inter alia:
a)- Ter acesso ao navio;
b)- Inspeccionar o navio;
c)- Se se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito, adoptar medidas adequadas em relação ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo.
X–7- Para os efeitos dos n.ºs 3 e 4 do presente artigo, as Partes respondem sem demora aos pedidos de outras Partes com vista a determinar se um navio arvorando o seu pavilhão está autorizado a fazê-lo, assim como aos pedidos de autorização formulados nos termos do n.º 3.
XI– Cada Estado designa, no momento em que se tornar Parte da presente Convenção, a autoridade ou, se for caso disso, as autoridades encarregadas de receber e de responder a esses pedidos. Essa designação será notificada pelo Secretário-Geral a todas as outras Partes no mês seguinte ao da designação.
10–As medidas adoptadas nos termos do n.º 4 do presente artigo só são aplicáveis por navios de guerra ou aeronaves militares ou quaisquer outros navios ou aeronaves devidamente assinalados e identificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e autorizados para esse fim.
XII– Desde logo, não podemos deixar de referir que a Convenção das Nações Unidas utiliza o termo pode, ou seja, tem a faculdade de ou invés do termo deve, que significa estar obrigado a.
XIII–Ora, o referido termo indica a faculdade que o Estado tem de contactar o outro Estado e não a obrigatoriedade.
XIV–Todavia, e como resulta dos factos descritos no despacho recorrido, as autoridades ... contactadas pela Polícia Judiciária confirmaram, num primeiro momento, o registo da embarcação com pavilhão ..., mas disseram não serem a entidade competente para dar seguimento à solicitação no âmbito do art.º 17.5 da CV88. Mais tarde, vieram indicar quem era a entidade e informaram que o pedido fora reencaminhado à mesma, (constando dos autos a confirmação do recebimento fls.33-34).
XV–Deve ainda esclarecer-se que no âmbito da lista das autoridades nacionais competentes quanto aos Tratados de fiscalização internacional das drogas das Nações Unidas, a ... em ... indicava a entidade contactada pela Polícia Judiciária (cfr.https://www.-----.---/---------/.....-......_.........._2..._-----.pdf (fls.65)
XVI–Contudo, e não obstante as diversas insistências, nunca se obteve resposta das autoridades ... ao pedido de Portugal para adoptar as medidas adequadas em relação à embarcação ....
XVII–Assim, não podemos deixar de discordar do entendimento judicial de que o cumprimento do art.º 17.º da CV88 carece de uma resposta positiva do Estado do pavilhão (não bastando o silêncio/falta de resposta ao requerido).
XVIII–Esse argumento não encontra respaldo na letra do artigo 17.º da CV88, nem noutras Convenções ou Tratados, se apelarmos aos mesmos para nos ajudarem a interpretar aquele preceito.
XIX.–Ao contrário, o que vemos plasmado noutros instrumentos normativos internacionais nesta área é o facto de, como veremos mais à frente, na ausência de resposta do Estado da bandeira ao Estado requerente, este fica legitimado a intervir junto da embarcação suspeita.
XX–Apenas para contextualização do que se vai referir a seguir, diremos que, como é sabido, os Tratados (direito convencional, regional ou local) são fontes de Direito Internacional do Mar, bem como o costume internacional, as decisões de Organizações Internacionais e a Jurisprudência internacional (designadamente do Tribunal Internacional de Direito do Mar).
XXI– Dos autos o que se apura é o facto de, no cumprimento do estipulado pela CV88 (ratificada quer por Portugal, quer pela ...), a ..., dando cumprimento ao disposto no n.º 7 do artigo 17.º dessa Convenção, designou a autoridade encarregada de receber e de responder aos pedidos, tratando-se do Central Bureau of Investigation -Drug Division, conforme consta do Competent National Authorities Directory da UNODC.
Ora, foi para essa entidade que Portugal (através da PJ) dirigiu os pedidos, fazendo aquilo que podia e devia fazer.
XXII–Ciente da informação de que dispunha, de que na embarcação em causa estavam a ser transportados produtos estupefacientes (cocaína), e em elevado volume, e que para eliminar o tráfico ilícito por mar (escopo do artigo 17.º da CV88) se impunha a sua abordagem, Portugal solicitou à entidade que a ... indicou como sendo a competente internamente para a dita autorização (constante do referido Directório) informações sobre a embarcação, designadamente se estava registada na ... e, nesse caso, se a ... autorizava Portugal a adoptar as medidas adequadas em relação à embarcação (cfr. n.º 3 do citado art.º 17.º da CV88).
XXIII–De facto, a ..., apesar de ter confirmado a existência do registo da embarcação ... (assumindo, assim, ser o Estado do pavilhão), nunca se pronunciou sobre a autorização ao Estado requerente (Portugal) para abordar o navio com vista à descoberta das provas de envolvimento no tráfico de estupefacientes.
XXIV–Como preceitua o referido n.º 7 do art.º 17.º da CV88, as Partes respondem sem demora aos pedidos de autorização formulados nos termos do n.º 3.
O que a ... não fez.
XXV–Qual era a alternativa das autoridades portuguesas?
Baixar os braços e nada fazer, deixando que a embarcação seguisse o seu caminho e viesse a concretizar o transporte dos produtos estupefacientes?- Tal comportamento constituiria a nosso ver grave infração das obrigações internacionais, por parte de Portugal?
XXVI–O Ministério Publico entende que o “silêncio das autoridades ... legitimava/legitimou a intervenção.
XXVII–E com os seguintes argumentos:
De acordo com o disposto no art.º 108.º da CNUDM Todos os Estados devem cooperar para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas praticado por navios no alto mar em violação das convenções internacionais.
XXVIII–Se os Estados já estavam, assim, obrigados a cooperar na repressão do tráfico de estupefacientes praticado por navios no alto mar, considerou-se ser necessário elaborar provisões mais detalhadas no contexto específico da Convenção contra o tráfico de estupefacientes - daí o teor do art.º 17.º da CV88.
XXIX–Como se dispõe logo no n.º 1 desse art.º 17.º da CV88 as partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar.
XXX–E no n.º 3 prescreve-se que A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio no uso da liberdade de navegação de acordo com o direito internacional e que arvore o pavilhão ou tenha matrícula de uma outra Parte é utilizado para o tráfico ilícito, pode notificar desse facto o Estado do pavilhão e solicitar a confirmação da matrícula; se esta for confirmada, pode solicitar ao Estado do pavilhão autorização para adoptar as medidas adequadas em relação a esse navio.
XXXI–Isso foi feito pela entidade competente de Portugal, como está documentado nos autos e foi admitido no despacho recorrido.
XXXII–Seguiu-se ausência de resposta da ... em relação à autorização para a tomada das medidas por parte de Portugal e qualquer manifestação de vontade de exercer a sua jurisdição preferencial.
XXXIII–O artigo 31.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada em 23 de Maio de 1969, que estabelece normas sobre a regra geral de interpretação dos tratados, remete, no seu n.º 3, alínea b), para a interpretação actualista/evolutiva dos Tratados, com base na prática seguida pelas respetivas Partes, ao preceituar que se terá em consideração, simultaneamente com o contexto, Toda a prática seguida posteriormente na aplicação do tratado pela qual se estabeleça o acordo das Partes sobre a interpretação do tratado.
XXXIV–Prática esta que é revelada, designadamente, por Tratados posteriores de execução da CV88 (como são os a seguir referidos Acordo de São José, Acordo do Conselho da Europa e Tratado entre Portugal e Espanha).
XXXV–De facto, o que se vem observando na redacção e interpretação de Tratados elaborados nesta área da repressão do tráfico de estupefacientes por via marítima é a previsão de existência de um consentimento tácito do Estado do pavilhão para que o Estado requerente possa intervir na ausência de uma resposta expressa do primeiro à solicitação do segundo.
XXXVI–Assim, preceitua o art.º 16.º do Acordo relativo à cooperação em matéria de supressão do tráfico ilícito marítimo e aéreo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas na zona das ... substâncias psicotrópicas na região das ..., ... (Acordo de São José), que (sublinhados e tradução nossos):
Operações para além do mar territorial
Artigo 169Arraisonnement (em português Abordagem)
1.–Quando os funcionários responsáveis pela aplicação da lei de uma Parte encontrarem um navio suspeito, alegadamente da nacionalidade de outra Parte e situado para além do mar territorial de qualquer Estado, considera-se que o presente Acordo constitui uma autorização do Estado Parte cujo pavilhão o navio alega arvorar, para que esses funcionários subam a bordo e revistem o navio suspeito, a sua carga e interroguem as pessoas encontradas a bordo, a fim de determinar se o navio está envolvido em tráfico ilícito, exceto nos casos em que uma Parte tenha notificado o Depositário de que está a aplicar o disposto no n.º 2 ou no n.º 3 do presente artigo.
2.–Ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar o presente Acordo, uma Parte pode notificar o depositário de que os navios que reivindicam a sua nacionalidade e que se encontram para além do mar territorial de qualquer Estado só podem ser abordados com o seu consentimento expresso.
Essa notificação não dispensa a Parte em causa da obrigação de responder imediatamente aos pedidos apresentados pelas outras Partes no âmbito do presente Acordo, em conformidade com as suas capacidades. A notificação pode ser retirada em qualquer altura.
3.–No momento da assinatura, ratificação, aceitação ou aprovação do presente Acordo, ou em qualquer momento posterior, uma Parte pode notificar o depositário de que se considera que as Partes receberam autorização para abordar um navio suspeito fora do mar territorial de qualquer Estado que arvore o seu pavilhão ou reivindique a sua nacionalidade, revistar o navio suspeito e a sua carga e interrogar as pessoas encontradas a bordo, a fim de determinar se o referido navio está envolvido em tráfico ilícito, se não tiverem recebido resposta da Parte requerida ou se esta não puder confirmar nem infirmar a nacionalidade no prazo de quatro (4) horas a contar da receção do pedido verbal apresentado em conformidade com o artigo 63. A notificação pode ser retirada a todo o momento.
Sendo que os Estados parte do Acordo de São José têm usado a faculdade de escolher as alternativas 2 e 3 referidas no citado artigo 16.º, verificando-se que ... e ... escolheram a faculdade prevista no n.º 3 (consentimento tácito expiradas 4 horas).
XXXVII–Também existe, no mesmo sentido, o Acordo do Conselho da Europa, denominado Agreement on lllicit Traffic by Sea, implementing Article 17 of the United Nations Convention against lllicit Traffic in Narcotic DrugsPsychotropic Substances, em português Acordo sobre o Tráfico Ilícito por Mar, que aplica o artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópica elaborado em Estrasburgo no dia 31 de Janeiro de 1995, no qual se preceitua que (sublinhados e tradução nossos):
Article 14 - Exercise of preferential jurisdiction, em português Exercício da jurisdição preferencial 2- Para o efeito, notifica o Estado interveniente o mais rapidamente possível e, o mais tardar no prazo de catorze dias a contar da receção do resumo dos elementos de prova nos termos do artigo 13. Se o Estado de pavilhão não o fizer, considerar-se-á que renunciou ao exercício da sua jurisdição preferencial.
XXXVIII–E ainda encontramos o Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico Ilícito de Droga no Mar, assinado em Lisboa em 2 de Março de 1998, em conformidade com o artigo 17.º, n.º 9 da CV88 3 , no qual se preceitua que o Estado do pavilhão tem o direito de exercer a sua jurisdição, retirando à outra Parte a possibilidade de o fazer (art.º I.º, al. b)), mas nos casos em que não for possível obter a autorização para a intervenção no barco em tempo útil, podem praticar-se os actos previstos no art.º 4.º, n.º 2 (de perseguir, parar e abordar o navio, verificar os documentos, interrogar as pessoas que se encontrem a bordo e, se existirem fundadas suspeitas de infracção, inspecionar o navio e, se constatada, proceder à apreensão da droga, à detenção das pessoas presumivelmente infractoras e à condução do navio para o porto mais próximo ou mais adequado à sua imobilização... (cfr. art.º 5.º). (Publicado no DR I Série-A, de 28 de Janeiro de 2000)
XXXIX–Também ali se preceitua que Cada Estado mantém a sua jurisdição preferencial sobre os seus navios, podendo renunciar a ela a favor do Estado interveniente (art.º 7.º, n.º 1) e que Decorrido o prazo referido no número anterior (14 dias) sem que tenha sido comunicada alguma decisão, presume-se que o Estado do pavilhão renuncia ao exercício da sua jurisdição.
XL–Ou seja, está expressamente previsto nesse Tratado, sobre a repressão do tráfico ilícito de droga no mar, que quando um Estado não responde aos pedidos do outro Estado se pode presumir que o Estado do pavilhão renunciou ao exercício da sua jurisdição e que esta cabe, logicamente, ao Estado que actuou no mar e que requerera essa actuação.
Pelo que se pode concluir, em aplicação do disposto no mencionado artigo 31.º n.º 1, da CV sobre o direito dos tratados, que o incumprimento do dever de resposta por parte do Estado de bandeira (neste caso concreto, a ...), apesar dos diversos pedidos remetidos pelo Estado requerente, deverá ser interpretado no sentido da habilitação do Estado interveniente a agir (autorização tácita), pois só assim se cumpre a finalidade e o efeito útil do artigo 17.º, n.º 1, da CV88, que é o de reforçar a cooperação na repressão do tráfico de estupefacientes através do mar (também artigo 108.º da CNUDM).
XU–Acresce que essa falta de resposta, seja por desinteresse ou negligência, é ainda mais grave no contexto da União Europeia e da criação da Eurojust (artigo 85.º do TFUE), pelo que, por maioria de razão, pese embora o artigo 17.º da CV88 estabeleça um jogo de equilíbrio entre soberanias, se deve procurar realizar o fim da norma.
XUI–Por isso, apelando ao mencionado princípio da interpretação actualista/evolutiva dos Tratados, pode-se defender, como deveria ter sido feito no caso subjudice, que, quando a ... não respondeu se autorizava ou não a intervenção de Portugal na embarcação ... autorizou tacitamente que o país requerente exercesse os requeridos poderes de visita, inspeção, medidas cautelares e medidas de polícia subsequentes, sendo que o mesmo silêncio ou ausência de manifestação expressa de pretensão ao exercício da sua jurisdição preferencial, também deve ser interpretado no sentido de que a jurisdição é automaticamente atribuída ao Estado interveniente.
XLIII–Assim se entendendo, nenhum problema existe em considerar que, tendo a busca e apreensão à embarcação ocorrido já em território português, Portugal tinha, como exerceu na altura, jurisdição penal sobre a situação em causa.
XLIV–Acresce a isto tudo o facto de a ... nunca ter vindo alegar a existência de um qualquer conflito com Portugal ou manifestado qualquer pretensão de exercer a preferência de jurisdição.
XLV–No mencionado Tratado entre Portugal e Espanha prevê-se que os diferendos sobre a interpretação ou aplicação do mesmo serão resolvidos por meio de negociações directas entre os respectivos Ministérios da Justiça e dos Negócios Estrangeiros.
XLVI–Ou seja, a eventual diferença de interpretação ou aplicação do disposto no art.º 17.º entre ..., que não existiu, seria resolvida de acordo com o referido na Convenção, resultando dos princípios aplicáveis ao direito internacional público e do mar que essa diferença não poderia ter consequências a nível da aplicação, na altura, das leis internas, no caso de Portugal, que regem a competência para a aplicação da lei penal.
XLVII–A norma que exige a autorização situa-se na esfera das relações internacionais e não diz respeito às garantias dadas aos suspeitos, que são inteiramente acauteladas pelas normas de Direito interno, com as respetivas exigências de jurisdicionalidade, igualdade de armas e direito de defesa.
XLVIII–Contrariamente ao entendimento do Mm.ª JIC, as operações da Marinha de Guerra portuguesa, até a embarcação ter atracado em …, estavam legitimadas pela interpretação que fazemos do art.º 17.º da CV.
XLIX–A Policia Judiciária só intervém em terra, ou seja, quando a embarcação aporta e se dá, logo de seguida, cumprimento aos mandados de busca anteriormente emitidos pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, e posteriores apreensões, testes aos produtos ali encontrados com vista a estabelecer a sua natureza estupefaciente e, em caso positivo, proceder às apreensões, detenções em flagrante delito e constituições de arguido dos tripulantes.
L–E com a intervenção no mar alto as autoridades portuguesas (Marinha de Guerra), ao contrário do sustentado no despacho recorrido, comportaram-se como se tivessem obtido a autorização (trata-se da referida presunção de autorização atrás analisada), pelo que não existe qualquer ingerência na soberania do Estado … A qual nunca foi alegada
LI– Era este o correcto entendimento que o Mm? JIC deveria ter adoptado quanto à interpretação do silêncio da ... ao nada dizer sobre a requerida autorização.
LII–Tendo referida ser necessária uma resposta positiva do Estado do pavilhão, algo que, como atrás vimos, não é exigível se efectuada uma correcta interpretação do Direito dos Tratados, o Mm.º JIC equivocou-se e as consequências que retirou dessa errada interpretação terão de ser revogadas.
LIII–Por isso, ao contrário do entendimento sufragado no despacho recorrido, não foram violadas as regras de obtenção e produção de prova que conduziram à realização da busca à embarcação, realizada em território nacional, que foi efectuada de forma regular, não se verificando qualquer nulidade, com a consequência de ser válida a prova daí resultante.
LIV– Ao considerar que não foi cumprido o disposto no artigo 17º da Convenção das Nações Unidas e concluir pela violação absoluta de regras de obtenção e produção de prova violou o Meritíssimo Juiz de instrução o disposto nos artigos 49º b) da Lei 15/93 de 22.01, artigo 179 da Convenção das Nações Unidas e artigos 49 e 79 do Código Penal
Neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa proc.206/18.6JELSB.L2-5 de 08-06-2021, LV- publicado na www.dgsi.pt, no qual se refere a fls.29: Ou seja, qualquer hipotética invalidade daquela busca derivada da eventual circunstância de ter sido iniciada antes da autorização do Estado de bandeira, incidiria sobre um nulo resultado factual. Totalmente irrelevante, portanto.
LV–E sempre se dirá que a nulidade da prova obtida por métodos proibidos (artº 126º do Código de Processo Penal) tem como finalidade muito clara a protecção de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, particularmente os suspeitos ou acusados em processo criminal, como bem resulta da sua fonte constitucional, o nº 8 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
LVI–Ora, as normas daquele artº 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, no que respeita à autorização a conceder, ou não, para procedimento em navio seu por outro estado, visa proteger a soberania dos estados de pavilhão sobre os respectivos navios, ainda que na óptica do combate ao tráfico de estupefacientes, para a afirmar plenamente, por exemplo, na pretensão de ser o estado de bandeira a exercer a acção penal, ou por se tratar de entrega de droga controlada pelo mesmo.
LVII–A prova assim obtida nunca seria nula. Quando muito, a falta de autorização conduziria a diferendo entre estados, a dirimir pelos meios próprios, também previstos na mesma convenção.
Não há pois qualquer prova inválida a este propósito
LVIII– Sabendo que o princípio é o da exclusividade da jurisdição do Estado da bandeira, deve- se atender ao facto de que existe também a obrigação de cooperação entre os Estados no combate ao tráfico internacional de drogas cometido no mar (art.º 108.º da CNUDM, que foi operacionalizado pelo art.º 17.º da CV88).
LIX–Está em causa não só o interesse de qualquer dos Estados em punir quem comete crimes de tráfico de estupefacientes, mas todo um interesse geral da comunidade, dado que os produtos estupefacientes põem em causa a saúde pública de toda a comunidade global.
LX.–Uma vez que o Estado da bandeira não deu resposta ao pedido formulado pelas autoridades portuguesas, estando obrigado, cfr. decorre da CV88, a responder num prazo adequado, deve- se entender que o Estado da bandeira aceitou tacitamente a intervenção, sob pena de tal ausência de resposta paralisar o sistema instituído pelo art.º 17.º da CV88.
LXI–O silêncio nunca pode, pois, ser interpretado como recusa do pedido de intervenção.
LXII–O Estado da bandeira sabe que, ao não responder, o Estado requerente pode exercer a jurisdição sobre a situação (sendo que a ... nunca veio opor-se a tal).
LXIII–Na ausência de resposta sobre a jurisdição do Estado da bandeira existia uma alternativa, a jurisdição do Estado requerente, a qual foi adoptada.
LXIV–Acresce que, numa situação como a documentada nos autos, tendo Portugal cumprido o disposto no art.º 17.º da CV88, não poderia deixar de intervir na ausência de uma resposta do Estado da bandeira, pois estaria a violar o sistema introduzido no Direito do Mar pelas invocadas Convenções de combater/eliminar o tráfico de droga por via marítima.
LXV–Por todo o exposto, entende o Ministério Público que o Meritissimo Juiz de instrução ao considerar o silêncio do ... como não cumprimento do artigo 17º da CNU por parte das autoridades portuguesas, ilegitimidade/ilegalidade da abordagem, a não aplicabilidade da lei portuguesa consequentemente como prova proibida e invalidade das buscas, apreensões que se seguiram violou o disposto nos artigos 49,nº2 do artigo 5º, do Código Penal, artigos 6º,9º,20º/l, 125º do Código de Processo Penal
LXVI–O Meritissimo Juiz de instrução considerou nulidade insanável a busca à embarcação porque realizada sem a presença de defensor (art. 64º/ 1/ d) do CPP), (art.119º/ c) do CPP) e tendo aquele efeito de imprestabilidade da prova.
LXVII–A busca á embarcação ... teve lugar em … no dia ... de ... de 2022 conforme mandado do Meritíssimo Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa.
LXVIII–Tal como decorre do disposto no nº 2 do art. 174º do C. Processo Penal, é requisito do ordenamento ou da autorização da busca que existam indícios de que o arguido, outra pessoa que deva ser detida ou objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, se encontram em lugar reservado.
LXIX–Ora, a busca á embarcação ... tratou-se de uma diligência processual, em que não é obrigatória a presença do arguido, diligência essa legitimada pelo mandado que a autoriza independentemente das circunstâncias pessoais objectivas do arguido. Ou seja, a obrigatoriedade de assistência por defensor é prevista pelo legislador nos casos de particular vulnerabilidade do arguido, não estando as razões que determinam tal obrigatoriedade presentes num caso, como é o da busca a embarcação, em que a presença do arguido não é condicionante da sua realização e, mais importante, em que a necessidade da diligência foi previamente avaliada e fundamentada por Juiz.
LXX–De todo o modo, e contrariamente ao entendimento do Meritissimo Juiz, em tal diligência processual (realização de busca em cumprimento de mandado judicial) não existe a obrigatoriedade de o arguido estar presente e de, estando, ser acompanhado por defensor quando refere desconhecer a língua portuguesa.
LXXI–A busca em causa estava legitimada pelo mandado que a autorizava, independentemente das circunstâncias pessoais objectivas do arguido;
Neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa de 5/19.8ZCLSB-C.L1-9 de 15-06-2021 in www.dgsi.pt: (transcrição nossa)
LXXII–Estamos sim perante uma busca decorrente de um prévio Mandado Judicial para o efeito. O Meritissimo Juiz de instrução não questiona a legalidade da busca, na perspetiva de quem a ordenou ou realizou, mas da nulidade do ato processual que, no seu entender, integra a busca, da qual resultaram meios de obtenção de prova e, sendo o arguido estrangeiro e desconhecedor da língua portuguesa, sem que se mostrasse assistido no ato por defensor, entende que foi violada a exigência formal obrigatória enunciada no 649, n.º 1, alínea c), (relativo à obrigatoriedade de assistência por defensor), do Código de Processo Penal.
LXXIII–Conclui-se, pois, que a lei processual penal não exige a assistência de defensor e de intérprete a suspeito/arguido estrangeiro que não domine a língua portuguesa no decurso de busca realizada por iniciativa de órgão de polícia criminal, nos termos previstos no respetivo quadro legal (vide aqui o AC TRP 23/10/2019 in www.dgsi.pt) e muito menos quando a busca seja realizada com mandado judicial prévio (Vide, Acórdão do STJ de 15 de Dezembro de 1998, Manuel Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, pág. 437 e seguintes).
LXXIV–Não podemos deixar de referir, ainda que, o arguido poderia sempre exercer o contraditório em relação á efetivação da busca, em sede de primeiro interrogatório judicial o que nenhum deles o fez, nos presentes autos.
LXXV–Ao declarar a nulidade insanável da busca á embarcação por falta de defensor violou o Meritissimo Juiz de instrução os artigos artº 64 nº 1 al d) do C.P.P, o artigo 119°, alínea c) d, 176ºe 177º todos do Código de processo penal e artigo 322/3 da Constituição da República Portuguesa.
LXXVI–O Meritissimo Juiz de instrução considerou invalida a apreensão do produto estupefaciente e a perícia toxicológica á mesma, determinando a sua destruição nos termos do disposto no artigo 35º/l do Decreto Lei 15/93 de 22.1
LXXVII–Face à norma do artigo 35º (norma especial em relação ao artigo 109º, do Código Penal), não é pressuposto da declaração, como se verifica no regime geral de perda de objectos a favor do Estado decorrente do artigo 109º, nº 1, do Código Penal, que esses objectos, utilizados na prática de crime de tráfico de estupefacientes, ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes, sendo certo que neste caso existe o sério perigo da sua utilização caso seja restituído ao arguido.
LXXVIII–Partindo do artigo 109º do Código Penal, desde logo ressalta que o legislador exige para a declaração de perda dois pressupostos cumulativos: primeiro, um pressuposto formal de que os objetos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática do facto ilícito, (instrumentos); ou que tenham sido produzidos pelo facto ilícito, (produtos), e em segundo lugar, um pressuposto material relacionado com a perigosidade dos próprios objetos que pela sua natureza intrínseca devem mostrar-se vocacionados para a atividade criminosa.
LXXIX–Mais se dirá que atendendo á quantidade de produto estupefaciente apreendido (1231,28quilos) só através da embarcação apreendida tal seria possível de transportar, por mar.
Pelo que, o Meritissimo Juiz de instrução ao determinar a restituição da embarcação violou o disposto nos artigos 1099 do Código penal e 35º/l do DL 15/93 de 22.1
LXXX–No despacho de não pronuncia (4.) o Meritíssimo Juiz de instrução criminal, é referido que:
Para além do exposto, resulta ainda das informações do OPC (fls. 39-41, 148-171 e 176-184) que a embarcação seguia na direção (rumo) dos … , Já no ponto 9º, refere, o Meritíssimo Juiz de instrução que:
.... e não é cogitável que pudesse ter sido levada a efeito noutras circunstâncias [noto que inexiste nos autos qualquer evidência de que embarcação se dirigia a território nacional, mormente à Região Autónoma dos ... (apenas é feita uma referência neste sentido nas informações do OPC, em conversa informal mantida com os tripulantes (fls. 150), insuscetível de valoração em sede de julgamento - cfr. art. 356º/ 7 do CPP)].
LXXXI–Ora, estando o caso em apreço na fase de instrução, terá o Meritissimo Juiz de apreciar a prova que pode ser e foi valorada em sede de inquérito e não já a que poderá ser ou não valorada em sede de julgamento, antecipando-se assim, já ao coletivo de Juizes.
LXXXII–Na instrução a única atividade a desenvolver é a da comprovação judicial e esta tem por objecto, desde logo, o inquérito lato sensu.
- A comprovação judicial carece de ser despoletada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio ou arrimo a essa actividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público esgrimidas pelo arguido.
LXXXIII–Ora, a evidência de que a embarcação se dirigia para território português, foi valorada em sede de inquérito com referência às informações da Polícia Judiciária, não sendo Juiz do Julgamento não poderia ter feito a apreciação da valoração (ou não) do mesmo nessa sede.
LXXXIV–Assim violou o Meritíssimo Juiz de instrução o disposto no artigo no artigo 17º, 283º/l e 2, 308º todos do CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
LXXXV–Por todo o exposto, deve o despacho de não pronuncia ser substituído por despacho que pronuncie os arguidos os arguidos AA e BB pela prática, em co-autoria e em concurso real, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p.p. artigo 21º/1 e 24ºalinea c), e de um crime de adesão a associação criminosa, p.p. artigo 28º/2 do Decreto Lei 15/93 de 22 de janeiro dando-se por integralmente reproduzida a acusação pública deduzida para todos os legais efeitos e economia processual.
Vossas Excelências, porém, com mais elevado critério, farão, como sempre,
JUSTIÇA!”

O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a ........2023.

I.3–Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, veio o arguido BB responder ao recurso interposto pelo Mº Público, pugnando pela sua improcedência, e pela confirmação do despacho recorrido, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“CONCLUSÕES:
1– em ...-...-2023 o MM° Juiz de Instrução Criminal de ... decidiu e bem que: Impõe-se a conclusão pela violação absoluta das regras de obtenção e produção de prova que conduziram à realização da busca que assim padece de nulidade (art. 122/1 e 3 CPP)..abordagem ilegal à embarcação ..condução da embarcação com a carga e tripulantes a bordo ao porto de ... não consentidas por Lei ofendendo a soberania do Estado do Pavilhão....artº 356°/7 do CPP.: ”
“. A busca à embarcação sem defensor (art°64°l/d do CPP ..nulidade insanável (art. 119° c) do CPP)
“obrigatoriedade de interprete (art° 92°/6 do CPP)
“ a não pronuncia dos arguidos..pelos crimes p. e p. pelos artigos 21°-1, 24-c) e 28°-2 do Dec Lei 15/93 de 22/1. ”
2–Em ...-...-2023 o Ministério Publico recorreu alegando em resumo o seguinte:
“com a intervenção no mar alto as autoridades portuguesas ( Marinha de Guerra)...comportaram-se como se obtivessem obtido a autorização (trata-se de presunção de autorização) pelo que não existe qualquer ingerência na soberania do Estado ....
“...uma vez que o Estado da bandeira não deu resposta ao pedido formulado pelas autoridades portuguesas, estando obrigado conforme decorre da C88, a responder num prazo adequado, deve-se entender que o Estado da bandeira aceitou tacitamente a intervenção, sob pena de tal ausência de resposta paralisar o sistema instituído pelo art° 17° da CV88”
“...por todo o exposto, deve o despacho de não pronúncia ser substituído por despacho que pronuncie os arguidos AA e BB pela pratica em co-autoria e em concurso real de um crime de trafico de estupefacientes agravado, p e p. pelo artigo 21°/1 e 24° alínea c) e de um crime de adesão a associação criminosa p. p. pelo artigo 28°/2 do Decreto Lei 15/93 de 22 de janeiro.. ”- sublinhado da defesa)
3– o arguido BB entende que não assiste razão ao Ministério Publico e o processado é nulo; na verdade, o art°32°- 4da CRP estipula que “ toda a instrução é da competência de um Juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a pratica dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais todavia, o art0 263° do CPP determina que a “direcção do inquérito cabe ao Ministério Publico, assistido pelos órgãos de Policia criminal”, cabendo ao Juiz alguns actos de instrução; assim, o artº 263 do CPP contraria ostensivamente a Lei Fundamental!!! a Policia e o Ministério Publico não estão subordinados aos princípios da Independencia e da Isenção; a Policia, integrada na Administração Publica e o M. Publico, magistratura dependente e hierarquizada não oferecem as mesmas garantias que o Juiz de Instrução.
4– o integral respeito pelas directivas constitucionais como as vertidas nos arts. 32° e 18° da Lei Fundamental impõem que a actividade de investigação e instrução criminal seja confiada aos Juizes; a forma mais perfeita de concretização pratica dos objectivos da Constituição da Republica é respeitar o que o Legislador Constituinte estatuiu no tocante às garantias a que deve obedecer o processo penal; o voto de vencido no Acórdão 7/87, de 9/2 do Tribunal Constitucional, do Senhor Juiz Conselheiro VITAL MOREIRA, diz muito da “incerteza e insegurança” trazida ao processo penal desde 1987:
“....Quanto ao artigo 263 °, não vejo como é que é possível contestar com êxito a sua (a meu ver, flagrante) inconstitucionalidade. Dispõe o artigo 32. ° n.0 4, da CRP que «toda a instrução é da competência de um juiz».
5– segundo a sábia lição do Voto de Vencido veio o Sr. Juiz Conselheiro a concluir que:
“.... Foi portanto reafirmada a regra do carácter jurisdicional da instrução.
Ora o presente CPP procede de novo a uma cisão da instrução em duas fases:
-uma, a que agora chama de «inquérito», que é, de novo, confiada ao MP e retirada portanto da competência judicial;
-outra, que agora detém em exclusivo o nome de «instrução», que continua confiada a um juiz.
Estruturalmente, voltou-se à situação pré-constitucional, definida no Decreto-Lei 35007. Ou seja: regressou-se a um sistema essencialmente idêntico àquele que a CRP quis abolir. Por isso, não pode ser mais flagrante a infracção à CRP que por essa via se efectua. E certo que o Código se guarda de considerar o tal «inquérito» como instrução, pretendendo, assim, solertemente, esquivar-se à condenação por inconstitucionalidade. Mas a «habilidade» é demasiado grosseira para merecer o sucesso com que o presente acórdão entendeu dever premiá-la...E óbvio, porém, que a Constituição não diz apenas isso e que cuidou de confiar a instrução - toda a instrução - directa e exclusivamente ao juiz (salvo delegação sua). Pode certamente discutir-se se a CRP quer ou não um certo modelo de processo venal.
O que é seguro é que ela não quis um certo modelo: justamente o que agora se reintroduz com este código. Sem dificuldade se admite que possa haver estimáveis argumentos a favor da reintrodução desse modelo. O que seguramente se exige num Estado constitucional é que tal não possa legislar-se enquanto a proibição constitucional não for afastada pelas vias apropriadas. Num Estado democrático-constitucional não há lugar para «revisões constitucionais antecipadas» por via de lei. Para efectuar as revisões constitucionais só valem as leis de revisão constitucional. As leis comuns, quando contrárias à CRP, essas devem ser declaradas inconstitucionais, para os devidos efeitos. Pelos motivos expostos, entendo que as disposições em causa não deveriam ter tido outra sorte. ”
No mesmo sentido se pronunciou na ocasião e em voto de vencido o Conselheiro Monteiro Diniz, com importantes contributos sobre génese e o enquadramento histórico do preceito, entendimento reiterado posteriormente no voto de vencido junto ao acórdão n° 23/90, publicado no Diário da República, II Série, n° 152, de 4 de Julho de 1990).
6– admitindo que os artigos 53°, n.°2, alínea b), e 263°, n.1, do C.P.P. não padecem de inconstitucionalidade, entende, contudo, o Arguido que a sujeição de alguém a uma investigação criminal depende de controle inicial do Juiz de Instrução Criminal. Nos termos do já citado artigo 32°, n.° 4, da C.R.P: “Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais. ”
7– a Diretiva 2016/343/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 9-3-2016, reforçou a necessidade de existir uma avaliação preliminar aquando da instauração de um processo criminal. Esta avaliação preliminar mais não é do que uma apreciação, por parte de um Juiz, sobre se a denúncia reúne requisitos mínimos para que uma pessoa possa ser investigada.
8– como resulta da Diretiva citada a instauração de um processo crime contra uma pessoa é claramente suscetível de afetar a sua presunção de inocência e, por isso, é necessário apurar se a mesma contém elementos que permitam com consistência instaurar um procedimento criminal. Basta atender que podem, desde logo, os órgãos de Polícia Criminal, sem mais, recolher informações sobre a vida pessoal das pessoas, juntarem as suas fotografias ao processo, os seus dados pessoais, apurarem quais os veículos que conduzem, quais os seguros que têm em seu nome, qual o seu património imobiliário, com quem são casados, entre muitas outras informações.
9– o caso subjudice é exemplo vivo do arrastamento ad nauseum da investigação....sob a habitual morosidade que a COUR EUROPEENNE censura e condena há muitos anos e que é objecto de opíparos discursos das mais Altas Excelências do Estado Português na abertura do ano judicial, repetidos todos os anos na sala plenária do S.T.J.
10– o inquérito e todo o processado é nulo por ausência do JIC na feitura e acompanhamento do mesmo ab initio pelo que os art°s 53°- 2- a) e 263º do CPP ostracizam o art° 32-4 da Lei Fundamental e o art° 6° - 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que deve ser declarado neste Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
11– entende, assim, o arguido BB que compete ao Juiz de Instrução, sob o artigo 32°, n.°4, da CRP, analisar a notícia do crime ou a denúncia efetuada com o intuito de apurar se a pessoa denunciada deve ou não ser alvo de um processo crime, com vista ao apuramento da responsabilidade criminal. Sendo certo que, sempre serão inconstitucionais os artigos 53°, n.°2-a) e 263° do CPP quando interpretados no sentido que:
“É ao Ministério Público que compete apreciar o seguimento a dar às denúncias, queixas e participações criminais;
Ou no sentido que:
“Recebida uma denúncia, queixa ou participação criminal contra pessoa determinada, não tem o juiz de instrução criminal que promover o prosseguimento a dar às mesmas. ”
Tais interpretações violam os artigos 32°, n.° 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa e 6o- 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
12– o interesse em agir consiste na necessidade de se usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção (vide A. Varela, in Manual do Processo Civil, 2a edição, pag. 179) Segundo tem vindo a ser entendido na jurisprudência, a falta desse pressuposto, ou seja, a falta de interesse em agir ou falta de interesse processual, constitui excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, conducente, como tal, à absolvição da instância (vide A. Geraldes in Temas da Reforma de Processo Civil, Io vol., 2a edição revista e ampliada, pag. 264 e ac. da RL de 12.03.92, in CJ, 92, II, 128); “
... há falta de interesse em agir quando, entre o objecto da acção e o pedido formulado não existe uma situação de conflitualidade sobre o direito, uma situação e incerteza objectiva e grave sobre o direito de que o autor se arroga.
13– perante o silencio do ... pode ou não pode o Ministério Publico substituir- se e requerer o prosseguimento da ação penal em …?-parece que não;
segundo o Princípio do Pavilhão ou da Bandeira (sinónimos), as embarcações e aeronaves são consideradas como extensões do território do país em que se acham matriculadas. Assim, quando a embarcação ou aeronave estiver em alto-mar ou no espaço aéreo acima do alto-mar, aplica-se a lei do país de sua bandeira.
14– o art. 4.° do Código Penal consagra o Princípio da Territorialidade na aplicação da lei penal no espaço, segundo o qual a legislação penal do Estado pune todas as infracções cometidas no seu território (definido no art. 5.° da CRP), cometidas por qualquer cidadão, entendendo-se Território Nacional com a extensão conferida pelo princípio corolário daquele, o chamado Princípio da Bandeira ou do Pavilhão, sendo recente o caso de alargamento da aplicação no espaço das leis penal e contra-ordenacional portuguesas a casos de ilícitos cometidos a bordo de aeronaves civis em voos comerciais, constante do DL 254/2003, de 18-10.
15– tal princípio é completado pela protecção dos interesses nacionais, da nacionalidade, da personalidade activa e da personalidade passiva - e da pluralidade da prática do crime, também designado por princípio da competência ou da aplicação universal ou princípio do direito mundial (sobre estas distinções cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 12.a ed., anotação aos arts. 4.° e 5. °, e Lopes Rocha, Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço, in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983, pág. 118ess.). Estes princípios mostram- se consagrados no art. 5.° do CP, prevendo-se os casos em que ainda é aplicável a lei penal portuguesa a factos cometidos fora do território nacional, com as restrições previstas no art. 6.°. A aplicação do princípio da territorialidade pressupõe resolvida a questão da sede do crime.
16– no Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, tradução espanhola, edições Bosch, 1981, de Santiago Mir Puig e Francisco Munoz Conde, no capítulo IV da Ia Parte, fls. 239 a 241, a propósito do lugar de comissão, expende este autor, a propósito do artigo 9o do Código Penal da então República Federal da Alemanha: “O lugar de comissão de um facto é decisivo para a questão de saber se o poder punitivo de determinado Estado se deve basear no princípio da territorialidade ou deve buscar-se outro ponto de conexão.
17– e a propósito de tentativa esclarece: “A tentativa entende-se cometida em território nacional quando o autor tiver atuado no estrangeiro mas o resultado deveria produzir-se em território nacional e inversamente”.
18–a teoria da ubiquidade foi defendida entre nós pelo Professor Figueiredo Dias no estudo La compétence des jurisdictions pénales portugaises pour les infractions commises à l' étranger, separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1966, p. 10 e segs. Cavaleiro Ferreira, segundo Apontamentos das Lições de Direito Penal proferidas ao 5o ano jurídico, edição da FDL, ano de 1972-1973, Fase. 15 e 16, p. 180/2, expendia:
“As posições que têm sido sustentadas acerca da determinação do lugar do delito são as mesmas que foram apresentadas quanto ao tempo do delito.
Segundo a doutrina da atividade, todo o delito é cometido no lugar em que se exerce a ação criminosa do delinquente.
19–segundo a teoria do evento, o delito deve considerar-se cometido no lugar onde se verificou o resultado danoso. Finalmente, a doutrina da ubiquidade afirma que o delito se poderá considerar cometido tanto num como no outro lugar ”.
Adiantava que, no que respeitava à competência internacional da lei portuguesa, havia sido seguida a doutrina da ubiquidade no artigo 46° e §§ do CPP.. Desde que qualquer elemento do crime fosse praticado em Portugal, toda a infração se devia considerar cometida em território português. E finalizava: “Com a adoção da doutrina da ubiquidade, o direito penal português é aplicável aos factos que se realizem só parcialmente em território nacional. Ainda que só a actividade, ou só o evento, ou só uma parte do evento, se tenha realizado em território nacional, a lei penal será sempre aplicável porque todo o crime se considera cometido em território nacional.
20– o mesmo Professor retoma o tema nas Lições de Direito Penal, Ed.Verbo, 1987,1, p. 26 a 31, dizendo: «O C. Penal del886 era omisso sobre a determinação do lugar do delito; a doutrina portuguesa então ponderou largamente a questão; intervieram no seu estudo e discussão com especial relevo os professores Henriques da Silva, Pedro Martins e Caeiro da Mata.
21– a questão foi resolvida pelo Cód. de Proc. Penal com base na opinião dominante e que foi a dos dois últimos autores citados, ou seja a chamada doutrina da “ubiquidade”». E que “a solução legislativa do art. 46° do CPP (de 1929) está fundamentalmente recolhida pelo art. 7o do (então) novo Cód. Penal”.
22– na jurisprudência, no acórdão do STJ, de 21-12-1983, in BMJ 332, 341, dizia-se: O atual Código Penal no seu artigo 7o consagra a teoria da ubiquidade quanto ao lugar do delito, em clara consonância com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o território nacional, anotando-se aí que a teoria da ubiquidade é a mais ampla concepção da sede do delito já que tem em conta o lugar, o processo de execução, o resultado e o efeito intermédio.
23– em anotação a este acórdão do STJ, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118°, p.17, escrevia o Professor Figueiredo Dias: «O art. 7° do CP consagra a chamada solução plurilateral ou da ubiquidade, em termos particularmente amplos e consonantes com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o território nacional. Basta, por isso, que a infração tenha com o território português qualquer dos elementos de conexão mencionados com aquele preceito - ação, nos crimes respetivos; a ação esperada nos casos de omissão; ou o resultado típico - para que deva concluir-se ter sido o crime praticado em Portugal...»
24– in casu nem o arguido AA nem o arguido BB revelaram o que iam fazer, onde, como quando, em dia e hora e para que local se dirigiam...
25– dos autos não resulta um só indício palpável de que o arguido BB tivesse a intenção de vir para Portugal. Não há elementos de que a embarcação se dirigisse a Portugal, a ... não respondeu a Portugal e não resulta dos autos qualquer ato ilícito praticado em Portugal !!!! assim,
26– o Ministério Publico de Portugal ou de ... NÃO TEM INTERESSE EM AGIR. O processado é NULO E DE NENHUM EFEITO impondo-se o ARQUIVAMENTO DOS AUTOS !!!!
27– à cautela e perante o argumento do MP que confunde o SILENCIO da ... com PRESUNÇÃO de AUTORIZAÇÃO há que recordar que o silencio do ... não gera ipso facto a presunção de autorização para o exercício da ação penal pelos OPC de Portugal !!!!. As ... não deram consentimento a Portugal e indicaram qual a entidade competente para responder ao pedido.
28– A Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas impõe incasu o seguinte no seu artigo 17o-7:
“Para os efeitos dos n.os 3 e 4 do presente artigo, as Partes respondem sem demora aos pedidos de outras Partes com vista a determinar se um navio arvorando o seu pavilhão está autorizado a fazê-lo, assim como aos pedidos de autorização formulados nos termos do n. 3. Cada Estudo designa, no momento em que se tornar Parte da presente Convenção, a autoridade ou, se for caso disso, as autoridades encarregadas de receber e de responder a esses pedidos. Essa designação será notificada pelo Secretário-Geral a todas as outras Partes no mês seguinte ao da designação.
29– o MP confirma na conclusão IV- f) e g) que as ... não são a entidade competente para dar seguimento à intenção de Portugal e indicando à Policia Lusitana qual é essa entidade e que o pedido foi reencaminhado à mesma- fls 33-34 havendo noticia de confirmação do recibo de leitura por parte desta em ...-...-2022-fls 38 e alega na alínea h) da Conclusão IV que não houve resposta das ....
30–segundo resulta do supra vertido parece que Portugal endereçou, mas mal, o pedido a entidade incompetente para dar a ambicionada autorização de intervenção na embarcação.
O envio errado do pedido de ação penal a entidade incompetente na embarcação traduz ipso facto uma PRESUNÇÃO DE AUTORIZAÇÃO????
O silêncio gera de per si PRESUNÇÃO de AUTORIZAÇÃO ?
31–o Ministério Publico não pode esquecer, como detentor da ação penal, os fins da perseguição penal; o processo penal deve ser uma ponte equilibrada entre o Estado Todo Poderoso e o cidadão arguido, mesquinho, indefeso, muitas vezes remetido para o silencio de uma jaula fria e húmida de 5m2. O processo penal não é sinónimo do aviso colocado na porta do Inferno: “lasciate ogni speramza voi ch ientrate” - Dante.
32– o processo penal tem regras nacionais e internacionais. Note-se que em ...-...-2022 Portugal através dos OPC/MP dirigiu pedido de intervenção / informação a entidade incompetente para intervir no ... com pavilhão da ... com erro nas comunicações conforme folhas ........27 e 28 dos autos.
33– em ...-...-2022 as autoridades da ... respondem que não são a entidade competente para dar seguimento ao pedido do MP.- fls 29; no dia seguinte informam Portugal que reencaminharam o pedido do MP /OPC para a entidade competente- fls 33 e 34.
34– até ...-...-2022 não houve resposta da ... nem autorização concedida in illo tempore
35– o Ministério Público presume que ocorreu autorização por parte da Polonia no silencio; ora, se o exercício do direito ao silêncio não gera presunção de culpabilidade para o acusado, ou sequer interpretado em prejuízo da defesa, como pode o silencio de um País soberano gerar de per si a autorização ????
O art°. 17° da Convenção de Viena quanto entendido como o é pelo MP que:
no silencio ou omissão de resposta por parte do Estado do pavilhão ao Estado requerente que dirigiu o pedido a entidade incompetente, se presume a autorização para intervenção e adoção de medida adequadas em relação a um navio viola os arts° 32° - 1 da Lei Fundamental, 6º- 1 e 8º da CEDH
36– Uma ultima questão: a detenção do arguido BB, entrega ao poder judicial e a manutenção em prisão preventiva por longos meses traduziu violação do art° 5o-1 e 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; foi preso numa jaula de 5m2 sem condições mínimas de dignidade humana, por longos meses, sem ver nem ser ouvido por um Juiz de Instrução após o primeiro interrogatório; só se pode concluir que Portugal ostracizou o art° 5o- 1 e 3 da CEDH; 
37– seria excelente se o MP e o JIC em Portugal recordasse de vez em quando a Convenção Europeia dos Direitos do Homem que é direito positivo Português sob o art° 8o. da Lei Fundamental: Everyone has the right to libertysecurity of person. No one shall be deprived of his liberty save in the following casesin accordance with a procedure prescribed by law: ...(c) the lawful arrestdetention of a person effected for the purpose ofbringing him before the competent legal authority on reasonable suspicion of having committed an offencewhen it is reasonably considered necessary to prevent his committing an offence orfleeing after having done ”
38– no “CASE OFMEDVEDYEVAND OTHERS v. FRANCE, no. 3394/03) os Senhores Juízes de Estrasburgo censuraram e condenaram a ... pela forma como os tripulantes de um barco com bandeira do Cambodja foram abordados e detidos- in https://hudoc.echr.coe.int/ MedvedyevOthers v. France [GC] (coe.int) Também Portugal foi condenado pelo E.C.H.R no “caso QING v. Portugal, app. 69861/11 pela aplicação da prisão preventiva de modo abusivo-
in....https://-----.----.---.---/---?i=...-...... e publicado no site de apoio à PGR: www.----.------------------.pt
39–deve ser declarado que a intervenção dos OPC abordagem, detenção a prisão preventiva do arguido BB violou o art°. 5o-1 e 3 da CEDH; Portugal não respeita a Convenção Europeia: basta ver as várias condenações no site de apoio à PGR: www.--------------------------------; só faltava agora não respeitar a Convenção de Viena e confundir omissão com autorização.... mas em Portugal, estado membro da União Europeia, tudo é possível....
EM SUMULA: deve ser rejeitado o recurso do MP e mantida a decisão proferida pelo Sr. JIC nos seu exactos termos, pois só assim se fará a Lídima JUSTIÇA!!!
À cautela:
a)-o art°. 17° da Convenção de Viena quanto entendido como o é pelo MP que:
“no silencio ou omissão de resposta por parte do Estado do pavilhão ao Estado requerente que dirigiu o pedido a entidade incompetente, se presume a autorização para intervenção e adoção de medida adequadas em relação a um navio..” viola os arts. 32o- 1 da Lei Fundamental, 6o- 1 e 8° da CEDH
b)- os artigos 53°, n.°2-a) e 263° do CPP quando interpretados no sentido que: “É ao Ministério Público que compete apreciar o seguimento a dar às denúncias, queixas e participações criminais; Ou no sentido que: “Recebida uma denúncia, queixa ou participação criminal contra pessoa determinada, não tem o juiz de instrução criminal que promover o prosseguimento a dar às mesmas. ” violam os artigos 32°, n.° 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa e 6o- 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Respondeu ainda o arguido AA, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“EM CONCLUSÃO
A
I
O Douto Acórdão do Tribunal a quo não merece qualquer censura de facto ou de direito sendo, aliás, um exemplo daquilo que é um efetivo exercício de uma Magistratura Judicial que deve sempre fazer cumprir a Lei e os Princípios Orientadores de um Estado de Direito.
II
O Recurso apresentado pelo Ministério Público configura nos termos daquilo que foi definido pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 2/2011 de 16/12/2010, publicado no DR I Série de 27 de Janeiro de 2011, um ato de deslealdade processual.
III
Como referiu o Senhor Juiz de Instrução Criminal na sua doutíssima decisão:
A este respeito e na senda das informações (e da posição) do OPC constante dos autos, o Ministério Público pugna que a atuação se mostra legal à luz do direito de visita a que alude o art.° 110° da Convenção sobre o Direito do mar.
IV
O Ministério Público após a abordagem à embarcação ... defendeu que a abordagem foi efetuada, não ao abrigo do artigo 17° da Convenção de Viena, mas sim ao abrigo de um Direito de Visita plasmado no artigo 110° da Convenção Sobre o Direito do Mar.
V
Agora, em sede de Recurso vem defender posição contrária aquela que assumiu, inclusive, em sede de instrução, defendendo a intervenção das autoridades ao abrigo do artigo 17° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, o que configura uma situação de deslealdade processual.
VI
Não deve, por isso, o Recurso do Ministério Público ser admitido.
B
No caso Sub Judice não estamos perante uma ilegalidade, estamos perante flagrantes ilegalidades.
VIII
Estando demonstrado que a marinha de guerra Portuguesa, com dois inspetores da Polícia Judiciária a bordo, saiu no dia ..2022 para efetuar a abordagem à embarcação ..., e que os mandados de busca só foram autorizados no dia ..2022, é evidente que, quando os mesmos fizeram a abordagem e a busca à embarcação não eram titulares do mandado de busca, pois, saíram da costa portuguesa sem que fossem titulares dos mesmos.
IX
A embarcação de guerra Portuguesa sai da costa no dia ..2022 e apenas no dia seguinte em ........2022, o OPC dirige às autoridades ..., por telecópia, o pedido de autorização de intervenção das autoridades portuguesas ao abrigo do art. 17° da Convenção de Viena, identificando cabalmente a embarcação (fis. 23-24);
X
Mas o descontrole era tanto que:
... ao que tudo indica, não é recebido nesse dia, nem no dia seguinte, por motivo de erro nas comunicações (fis. 25, 26, 27 e 28);
XI
A abordagem a um navio com pavilhão requer não só a autorização do Estado desse Pavilhão como, a Convenção confere ao próprio Estado, no caso de conceder autorização, a possibilidade de subordinar essa autorização à verificação de determinados pressupostos.
XII
No caso sub judice o ... não só não autorizou a abordagem à embarcação como nem sequer teve tempo de o fazer. É que, ainda antes de solicitarem qualquer pedido, as Autoridades Portuguesas já estavam a levar a cabo a abordagem da embarcação...
XIII
Vem o Ministério Público no seu recurso alegar que:
Ao contrário, o que vemos plasmado noutros instrumentos normativos internacionais nesta área é o facto de, como veremos mais à frente, na ausência de resposta do Estado da bandeira ao Estado requerente, este fica legitimado a intervir junto da embarcação suspeita.
XIV
Se dúvidas existissem quanto à impossibilidade do ... ter força de autorização, o n.° 7 do artigo 17° da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico Ilícito de Estupefacientes de 1988, afasta claramente esse sentido quando afirma que:
7– Para os efeitos dos n.os 3 e 4 do presente artigo, as Partes respondem sem demora aos pedidos de outras Partes com vista a determinar se um navio arvorando o seu pavilhão está autorizado a fazê-lo, assim como aos pedidos de autorização formulados nos termos do n.° 3. Cada Estado designa, no momento em que se tornar Parte da presente Convenção, a autoridade ou, se for caso disso, as autoridades encarregadas de receber e de responder a esses pedidos. Essa designação será notificada pelo Secretário-Geral a todas as outras Partes no mês seguinte ao da designação.
XV
O artigo 17°, da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico Ilícito de Estupefacientes de 1988, obriga a uma resposta expressa ao pedido de autorização.
XVI
Os argumentos aduzidos pelo Ministério Público mais não visam do que tentar escamotear o óbvio: a abordagem á embarcação ... de bandeira ..., efetuada pelas Autoridades Portuguesas, é ilegal e configura até nos termos do Artigo 101° da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, aprovada em 10 de dezembro de 1982, um ato de pirataria.
XVII
É manifesta a falta de procedência do Recurso apresentado pelo Ministério Público, nenhuma ilegalidade pode ser assacada à decisão proferida pelo Tribunal a quo.
C
XVIII
Vem o Ministério Público defender que para a busca, levada a cabo após o Recorrente, cidadão Holandês, ser constituído arguido, não era necessária a presença de defensor.
XIX
Como bem referiu o Tribunal a quo não é apenas imperativo legal nacional a presença de um defensor, quando está em causa um cidadão que não domine a língua portuguesa, esta é uma obrigação decorrente de normativos supra legais, aplicáveis diretamente no Ordenamento Jurídico de Acordo com o Artigo 8o da Constituição da República Portuguesa.
XX
A Diretiva n° 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22.10.201319, prevê, no art. 3°/ 1 e 2/ c), que os suspeitos e acusados devem ter acesso a um advogado sem demora injustificada, após a privação de Uberdade, o que não se verificou, mas tão somente dois dias depois, em ........2023.
XXI
Consagrou a respetiva Diretiva no seu Artigo 3o:
1.–Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos e acusados tenham direito de acesso a um advogado em tempo útil e de forma a permitir-lhes exercer de forma efetiva os seus direitos de defesa.
2.–Os suspeitos e acusados devem ter acesso a um advogado sem demora injustificada. Em qualquer caso os suspeitos ou acusados devem ter acesso a um advogado a partir dos seguintes momentos, conforme o que ocorrer primeiro:
a)-Antes de serem interrogados pela polícia ou por qualquer outra autoridade judiciai ou de aplicação da lei;
b)-Quando uma autoridade de investigação ou outra autoridade competente leve a cabo uma diligência de investigação ou de recolha de provas nos termos do n.o 3, alínea c);
c)-Sem demora injustificada, após a privação de liberdade;
d)-Caso tenham sido citados para comparecer perante um tribunal competente em matéria penai, em tempo útil antes de comparecerem perante esse tribunal.
3.–O direito de acesso a um advogado implica o seguinte:
a)-Os Estados-Membros garantem que o suspeito ou acusado tenha o direito de se encontrar em privado e de comunicar com o advogado que o representa, inclusive antes do interrogatório peia polícia ou por qualquer outra autoridade judiciai ou de aplicação da lei;
b)-Os Estados-Membros garantem que o suspeito ou acusado tenha o direito a que o seu advogado esteja presente e participe efetivamente nos interrogatórios. Tal participação fica sujeita aos procedimentos previstos na lei nacional, desde que tais procedimentos não prejudiquem o efetivo exercício e a essência dos direitos em causa. A participação do advogado no interrogatório deve ficar registada nos termos da lei do Estado-Membro em causa;
c)-Os Estados-Membros garantem que, no mínimo, o suspeito ou acusado tenha o direito a que o seu advogado esteja presente nas diligências de investigação ou de recolha de provas adiante indicadas, se tais diligências estiverem previstas na lei nacional aplicável e o suspeito ou acusado for obrigado ou autorizado a estar presente na diligência em causa:
i)- sessões de identificação,
ii)- acareações,
iii)- reconstituições da cena do crime.
XXII
Importa, ainda, ter presente, para o caso Sub Judice a DIRECTIVA 2010/64/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 20 de Outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, a qual estipula no artigo Io que:
1.–A presente directiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus.
2.–O direito a que se refere o n.o 1 é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infracção penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infracção, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.
3.–Caso a lei de um Estado-Membro determine que, no caso de infracções de menor gravidade, as sanções são impostas por uma autoridade que não é um tribunal competente em matéria penal e que a imposição dessa sanção é passível de recurso para um tribunal com essas características, a presente directiva só se aplica à acção que correr termos nesse tribunal na sequência do recurso.
4.–A presente directiva não afecta o direito nacional no que diz respeito à presença de um defensor legal durante todas as fases do processo penal, nem no que diz respeito ao direito de acesso dos suspeitos ou acusados aos documentos do referido processo.
XXIII
Ora, no caso Sub Judice, como bem anotou o Senhor Juiz de Instrução Criminal:
Noto que não estamos perante uma situação de falta de defensor a suspeito que ainda não havia sido constituído como arguido aquando da busca, pois esta teve lugar entre as 10:30 h e as 19:00h (cfr. Cit. Auto a fls. 62-65) e os coarguidos prestaram TIR, subsequentemente à constituição nessa qualidade, às 14:20h (coarguido AA) e às 16:20h (coarguido BB) desse mesmo dia (fls. 56 e 60), tendo sido detidos, ambos, às 12:00h (fls. 170).
XXIV
Sendo os Arguidos desconhecedores da Língua Portuguesa, não se encontrando no local um intérprete, e não se encontrando sequer o mandado de busca traduzido era imperioso que naquele ato processual os Arguidos estivessem acompanhados por defensor;
Constitui Nulidade insanável, nos termos do Artigo 119°, alínea c) do C.P.P., a falta do defensor do Arguido nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência, como era o caso da Busca levada a cabo. Assim, muito bem andou o Senhor Juiz de Instrução ao decidir como decidiu sobre esta concreta questão.
D
XXVI
No caso Sub judice a própria apreensão foi declarada ilegal, pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrária o Ministério Público não pode sequer considerar os referidos objetos apreendidos.
XXVII
Assim, como não tendo os Arguidos sido Pronunciados pela prática dos crimes pelos quais foram Acusados não se pode sequer considerar que cometeram os crimes que lhes eram imputados.
XXVIII
Não merece, portanto, igualmente, sobre esta matéria a Decisão proferida pelo Tribunal a quo qualquer censura.
E
XXIX
Os elementos do Departamento de Acções Especiais da Marinha de Guerra Portuguesa, detiveram os tripulantes, efetuaram uma busca à embarcação, assumiram o comando desta e desviaram-na para ....
XXX
O mandado de busca e apreensão, conforme resulta da data aposta no mesmo, apenas foi assinado no decurso do dia ... de ... de 2022, ou seja, após a busca ter sido iniciada.
XXXI
Conforme resulta da informação de fls. 39 dos autos, ... no dia ..., pelas 23h00, embarcaram no Navio da Marinha, que saiu da ilha de São CC, os Senhores DD e EE, Inspetores.
XXXII
Aquando da entrada na embarcação ... e nos camarotes dos Arguidos, não foi entregue aos mesmos qualquer cópia do mandado de busca e apreensão, pelo simples facto de que este não existia.
XXXIII
Aquando da entrada na embarcação ... e nos camarotes dos Arguidos, não tinha, ainda, sido emitido qualquer mandado de busca e apreensão e ou mandado de detenção.
XXXIV
Pelo que, não podem restar quaisquer dúvidas que a diligência levada a cabo configura, também por este motivo uma manifesta proibição de prova nos termos do artigo 126° do C.P.P.
XXXV
No caso sub judice a Lei Penal Portuguesa não pode ser aplicada aos factos em apreciação nos presentes autos para julgar o presente processo;
XXXVI
Os factos ilícitos investigados não foram praticados em território português, nem a bordo de navio português;
XXXVII
Por outro lado, o caso sub judice não se enquadra em nenhuma das exceções referidas no artigo 5o do C.P., não foi obtida a autorização ou o consentimento previsto no artigo 17° da Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas.
XXXVIII
A Lei Penal portuguesa é aplicável a factos praticados fora do território nacional quando praticados a bordo de navio contra o qual tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17° da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico Ilícito de Estupefacientes, o que não foi, manifesta mente o caso sub judice.
XXXIX
Tendo sido violado o artigo 17° da Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, não estão igualmente reunidos os pressupostos estabelecidos no artigo 49° do Decreto Lei n.°15/93, de 22 de janeiro.
XL
Assim, encontra-se o presente processo ferido de nulidade insanável, a qual foi arguida em devido tempo.
XLI
Sendo certo que sempre serão inconstitucionais os artigos 4o e 5o do Código penal, 49° do Decreto lei n.° 15/93, de 22 de janeiro, quando interpretados no sentido que:
Para efeitos da competência dos tribunais Portugueses, considera-se o local onde foi abordada ou para onde foi conduzida uma embarcação, pela Marinha Portuguesa.
Tal interpretação viola os artigos 2o, 18°, 20°, 32° e 203°, todos da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve improceder totalmente o Recurso apresentado pelo Ministério Público.
Ou caso assim não se entenda, o que não se concede, devem as Nulidades arguidas pelo Recorrente em Ia Instância e agora suscitadas em sede de contra-alegações ser julgadas procedentes por provadas com as legais consequências.
Assim decidindo farão V. Exas. a esperada
JUSTIÇA.

I.4–Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos [transcrição]:
“(…) 1–Inconformado com despacho de não pronúncia, pelo qual o M.º JIC recusou levar a julgamento dois cidadãos estrangeiros, detidos por intervenção da marinha de guerra portuguesa em alto mar (na ZEE), na posse de elevada quantidade de estupefacientes, vem o MP apelar a melhor justiça junto do Tribunal da Relação de Lisboa.
O M.º JIC entendeu que a abordagem inicial do navio pelas autoridades portuguesas não estava legitimada, por falta de autorização do Estado de pavilhão, daí resultando a insusceptibilidade de aplicação da legislação nacional e a nulidade de obtenção da prova. A tal interpretação, opôs o digno recorrente elaborada exegese dos textos internacionais aplicáveis, concluindo pela legalidade de intervenção da jurisdição nacional e que, por manifesto erro de direito, a decisão sindicada não pode subsistir.
2– Ao recurso responderam os arguidos, defendendo a bondade do despacho sindicado e pugnando pela rejeição do recurso.
A questão esgrimida pelo arguido AA de alegada deslealdade processual do MP, fica exaurida pela tese defendida pelo digno recorrente da legitimidade originária da intervenção da jurisdição nacional ao abrigo do princípio da competência universal.
Princípio este que arremata a questão do interesse em agir que faltaria ao MP e que o arguido BB enxerta na serôdia querela do Inquérito versus Instrução.
Igualmente não se vislumbra violação alguma da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Breves excertos ao acórdão citado (MedvedyevOthers v. France) demonstram a sua inaplicabilidade ao caso concreto, pois que detidos os arguidos a 13 de Junho, só a 26 de junho foram presentes às autoridades judiciais, conforme sublinhado e excerto que adiantamos:
“127.- The Court notes that the arrestdetention of the applicants began with the interception of the ship on the high seas on 13 June 2002. The applicants were not placed in police custody until 26 June 2002, after arriving in Brest. Before the Grand Chamber,for the first time since the proceedings began – which the Court can only find regrettable – the Government submitted substantiated information concerning the presentation of the applicants, at the end of the dar, to the investigating judges in charge of the case (see paragraph 19 above).
128.- The fact remains that the applicants were not brought before the investigating judges – who may certainly be described as “judge[s]other officer[s] authorised by law to exercise judicial power” within the meaning of Article 5 § 3 of the Convention – until thirteen days after their arrest”.
No mais, os arguidos apresentam questões bastamente esgrimidas nos autos e que s.m.o. nada de novo trazem à discussão.
3– O signatário revê-se por inteiro no bem elaborado recurso do MP, desde logo no que toca à legitimidade da intervenção de jurisdição portuguesas sobre uma embarcação de pavilhão estrangeiro, cometida ao tráfico de estupefacientes em alto mar.
Crê-se assim que o despacho sindicado faz errada interpretação das normas legais aplicáveis pelo que deve ser dada razão ao digno recorrente.
4– Apenas se aditaria à tese do recorrente, quanto à magna questão da liberdade de navegação em alto mar versus jurisdição nacional:
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) foi concluída em Viena em 1988 e iniciou vigência em Portugal em 3 de Março de 1992, que a ratificou em plena sintonia com o n.º 2 do art.º 5.º do CP: a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional que o Estado Português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional.
In casu, a abordagem das autoridades nacionais ao barco tripulado pelos arguidos ocorreu no interior da zona económica exclusiva portuguesa (ZEE), ao largo da Região Autónoma dos ....
Ora, segundo declaração do art.º 2.º, § 3.ª da Resolução 60-B/97 da AR, pela qual Portugal aprova a CNUDM, “…Portugal goza de direitos soberanos e de jurisdição sobre uma zona exclusiva económica de 200 milhas marítimas contadas desde a linha de base a partir da qual se mede a largura do mar territorial”.
A conclusão a tirar é a de que as águas incluídas na ZEE nacional, as águas territoriais e a plataforma continental são espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, de acordo aliás com o art.º 56.º n.º 1, c), da CNUDM e o art.º 5.º da CRP.
Acresce que (art.º 108.º n.º 1, CNUDM) “Todos os Estados devem cooperar para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas praticado por navios no alto mar com violação das convenções internacionais.”, norma a considerar a par da já citada previsão de extraterritorialidade e aplicação da lei penal portuguesa, art.º 5.º n.º 2, CP.
Se é verdade que o art.º 17.º CNUDM garante o direito de passagem pacífica pelo mar territorial, definindo o art.º 19.º da mesma Convenção que essa passagem será pacífica se não atentar contra a boa ordem e a segurança do Estado costeiro, o que no presente caso, como é evidente, não se verificava, já o n.º 2 desta norma adianta que a passagem do navio é prejudicial à boa ordem (alínea g)) se fizer o embarque ou o desembarque de qualquer produto em violação de leis e regulamentos aduaneiros, o que, por defeito, descreve a acção do barco tripulado pelos arguidos, dada a ilicitude da carga. O princípio de liberdade de navegação nos mares não é, portanto, como quase nenhum direito é hoje, um direito absoluto.
No sentido que vimos defendendo – legitimidade da intervenção da jurisdição nacional - decidiu já o Ac. STJ de 5 de Julho de 20071, que defendeu a aplicação da lei portuguesa a factos com relevância penal praticados por estrangeiros em território, marítimo ou continental sob jurisdição portuguesa, como é o caso.
Trata-se afinal do princípio da universalidade ou da aplicação universal, a que se obrigam os Estados enquanto sujeitos de direito internacional público.
O Ac. STJ que referimos encontra posteriormente eco no importante e bem fundado parecer de 31 de Agosto de 2018, (Processo n.º 1000981996) oriundo da PGR, emitido a propósito do assunto (apreensão de estupefacientes em alto mar) que ora nos ocupa, mas com o fim específico de analisar projecto de acordo marítimo com o Reino de Espanha.
Pela importância dos seus considerandos, transcrevemos a seguinte passagem, em tudo aplicável ao nosso caso22:
“Mas perguntar-se-á: poderá, de acordo com a ordem jurídica nacional e tendo em conta os princípios de direito público internacional, estender-se a jurisdição nacional a infracções cometidas no alto mar, por cidadãos estrangeiros, a bordo de navios estrangeiros?3 A resposta deverá ser afirmativa, mostrando-se tal competência compatível com o princípio da competência universal. A qual deriva da necessidade de garantir a segurança ou a intangibilidade de certos valores fundamentais a que cada Estado atribui igual importância. Tal princípio só se justifica, nacional e internacionalmente, quando o facto se dirige contra bens jurídicos de carácter supranacional, em cuja protecção existe um interesse comum a todos os Estados (p.e. tráfico de drogas, comércio de escravos, de mulheres e de publicações obscenas, luta contra a falsificação de moeda, protecção de cabos submarinos, protecção contra a pirataria aérea e terrorismo). Como se observou a este respeito, só em casos deste tipo se trata de solidariedade do mundo cultural face ao crime e, bem assim, da luta contra a criminalidade internacional perigosa, ideias que se podem justamente invocar para fundamento do princípio4.
Se atentarmos nas disposições constantes das convenções destinadas a combater os actos contra a segurança da aviação civil, encontramos regras semelhantes às indicadas relativamente à repressão de certos crimes no alto mar. O que não surpreende uma vez que uma aeronave em voo internacional utiliza um espaço aéreo em condições paralelas ao alto mar e, além disso, também os valores ou interesses a proteger atingem o escalão da supra-nacionalidade.
Desenvolvendo este princípio, o direito português esclarece quaisquer dúvidas, ao prescrever no nº 2 do artigo 5º do Código Penal: A lei penal portuguesa é ainda aplicável a quaisquer factos cometidos fora do território nacional que o Estado português assim se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional.”.
5– Isto é, Vnd.ºs Desembargadores, o alto mar não pode servir de valhacouto à gravíssima criminalidade que o cruza pacificamente, porque os princípios de jurisdição universal que assistem aos Estados, sujeitos de direito internacional público, lhes impõem, mais do que consentem55, actuação em nome do direito, quando estão em causa valores indiscutíveis de defesa da Ordem Internacional. Portugal comprometeu-se internacionalmente com o combate ao tráfico ilícito de estupefacientes, assinando em 13 de Dezembro de 1989, a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, ratificada em 03.12.1991, com início de vigência em 03.03.1992. Esta é a fonte última da legitimidade de actuação da jurisdição portuguesa no caso sub judice, em conjugação com o art.º 5.º n.º 2, CP.
Igualmente o art.º 29.º n.º 2, CRP reforça esta conclusão.
Ou, citando Manuel Cavaleiro de Ferreira6 , a propósito do n.º 2 do art.º 5.º CP, não havendo verdadeiramente uma legislação penal internacional, os interesses fundamentais da comunidade internacional são tutelados pela legislação penal de cada país, em obediência a princípios fundamentais do direito internacional. “Mas actualmente alarga-se a previsão, em tratados ou convenções internacionais, da incriminação de factos ofensivos de interesses fundamentais da comunidade internacional…São crimes desta natureza, a pirataria, escravatura, tráfico de mulheres e crianças, tráfico de estupefacientes…”.
Importa assim reafirmar a jurisdição e a responsabilidade dos Estados comprometidos com o cumprimento dos acordos internacionais a que se vincularam. É o caso de Portugal, o que legitima cabalmente o exercício da sua jurisdição penal na situação sub judice, donde a toda a boa razão que assiste ao MP no seu bem recortado recurso.
6– De seguida, o digno recorrente elabora sobre a segunda ordem de argumentos invocados pelo M.º JIC para justificar a não pronúncia, de natureza puramente processual penal e relativa à validade da busca propriamente dita, feita depois de apresado o navio, sua devolução e limites do conhecimento permitido ao JIC.
O signatário igualmente se revê nos considerandos do digno recorrente, aliás suportados por boa jurisprudência, pelo que pugna pela procedência do recurso, com a reversão do despacho do M.º JIC, que deve ser substituído por outro que pronuncie os arguidos e mantenha a apreensão do navio apreendido.
Não obstante, a final V.ªs Exas. melhor dirão.

Cumprida a notificação prevista no art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, veio o arguido BB responder, mantendo na íntegra as conclusões apresentadas na resposta ao recurso.
O arguido AA, notificado do Parecer emitido pelo Digníssimo Senhor Procurador Geral Adjunto a ele respondeu nos seguintes termos[transcrição]:
1º- O Senhor Procurador da República ex Coordenador do DIAP de Lisboa, Dr. FF, in coleção formação contínua, Direito penal e Processual Penal (2012-2015), Centro de Estudos Judiciários, dezembro de 2016, demonstra de forma cabal que a atuação levada a cabo nos presentes autos é manifestamente ilegal.
2o- Refere o Senhor Procurador, pág. 135, da referida coleção:
Na ausência de convenções bilaterais entre o Estado Costeiro e o Estado do pavilhão, impõe-se analisar o que decorre, a este respeito, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.° 60-B/97, de 3 de Abril, retificada peio Decreto do Presidente da República n.° 67- A/97, de 14/10:
Prescreve o art.° 2o da Parte II, Secção Ia da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar que:
A Soberania do Estado costeiro estende-se além do seu território e das suas águas interiores e, no caso de Estado arquipelágico, das suas águas arquipelágicas, a uma zona de mar adjacente designado pelo nome de mar territorial.
Esta soberania estende-se ao espaço sobrejacente ao mar territorial, bem como ao leito e ao subsolo deste mar.A soberania sobre o mar territorial é exercida de conformidade com a presente Convenção e as demais normas de direito internacional.
A largura do mar territorial foi fixada em 12 milhas marítimas.
Da análise da aludida Convenção resulta que apenas no art.° 27°, sobre o título Jurisdição penal a bordo de navio estrangeiro, se prevê que: A jurisdição penal do Estado costeiro não será exercida a bordo de navio estrangeiro que passe pelo mar territorial com o fim de deter qualquer pessoa ou de realizar qualquer investigação, com relação a infracção criminal cometida a bordo desse navio durante a sua passagem, salvo nos seguintes casos:
a.-Se a infracção criminal tiver consequências para o Estado costeiro;
(...)
d)- Se estas medidas forem necessárias para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas.
2.–As disposições precedentes não afectam o direito do Estado costeiro de tomar as medidas autorizadas pelo seu direito interno, a fim de proceder a apresamento e investigações a bordo de navio estrangeiro que passe pelo seu mar territorial procedente de águas interiores.
3.–Nos casos previstos nos números 1 e 2, o Estado costeiro deverá, a pedido do capitão, notificar o representante diplomático ou o funcionário consular do Estado de bandeira antes de tomar quaisquer medidas, e facilitar o contacto entre esse representante ou funcionário e a tripulação do navio. Em caso de urgência, essa notificação poderá ser feita enquanto as medidas estiverem sendo tomadas.
4.–Ao considerar se devem ou não proceder a um apresamento e à forma de o executar, as autoridades locais devem ter em devida conta os interesses da navegação.
5.–Salvo em caso de aplicação das disposições da parte XII ou de infracção às leis e regulamentos adoptados de conformidade com a parte V, o Estado costeiro não poderá tomar qualquer medida a bordo de um navio estrangeiro que passe pelo seu mar territorial, para a detenção de uma pessoa ou para proceder a investigações relacionadas com qualquer infracção de carácter penal que tenha sido cometida antes de o navio ter entrado no seu mar territorial, se esse navio, procedente de um porto estrangeiro, se encontrar só de passagem pelo mar territorial sem entrar nas águas interiores.
Tenha-se presente que as disposições da parte XII estão relacionadas com a protecção e preservação do meio marinho enquanto que a parte V está relacionada com a Zona Económica Exclusiva regulada pelos art. °s 55° e ss, tutelando-se direitos de soberania relacionados com a exploração, aproveitamento, conservação e gestão de recursos naturais.
Trata-se de uma jurisdição específica, na qual não cabe, salvo no caso de existirem convenções bilaterais em contrário, a possibilidade de abordagem, no domínio do tráfico de drogas, ao invés do que sucede nos termos em que se encontra previsto no art.0 27° antes citado.
3º– Mas para que não restem quaisquer dúvidas sobre a flagrante ilegalidade cometida nos presentes autos, continua o mesmo Autor:
Finalmente, a regulamentação das situações ocorridas no Alto Mar estão previstas nos art°s 86° e ss. da aludida Convenção.
A liberdade do alto mar está prevista no art.° 87° da Convenção antes citada.
É certo que no art.° 108°, sob a epígrafe Tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, se prevê o seguinte:
1- Todos os Estados devem cooperar para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas praticado por navios no alto mar com violação das convenções internacionais.
2- Todo o Estado que tenha motivos sérios para acreditar que um navio arvorando a sua bandeira se dedica ao tráfico ilícito de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas poderá solicitar a cooperação de outros Estados para pôr fim a tal tráfico.
No entanto, a verdade é que a aludida Convenção no art.° 110° referindo-se ao direito de visita estipula que: Salvo nos casos em que os actos de ingerência são baseados em poderes conferidos por tratados, um navio de guerra que encontre no alto mar um navio estrangeiro que não goze de completa imunidade de conformidade com os artigos 95° e 96° não terá o direito de visita, a menos que exista motivo razoável para suspeitar que:
a.-O navio se dedica à pirataria;
b.-O navio se dedica ao tráfico de escravos;
c.-O navio é utilizado para efectuar transmissões não autorizadas e o Estado de bandeira do navio de guerra tem jurisdição nos termos do art° 109°;
Ou seja, no alto mar com excepção dos casos de tráfico de escravos, pirataria e da situação referida em c) vale a jurisdição do Estado do pavilhão da embarcação, não estando previsto, sequer, o direito de visita nos casos de suspeita de tráfico de estupefacientes.
Neste caso - isto é quando o crime é cometido fora do mar territorial nacional e na ausência de convenções bilaterais em contrário - apenas será lícita a intervenção das autoridades nacionais, pela forma antes referida, a bordo de tais embarcações e a aplicação da lei penal portuguesa, desde que Portugal tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no art.° 17° da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas de 1988 - cfr. art.° 49° do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
Assim, a intervenção a bordo do navio estrangeiro está dependente de autorização do Estado do pavilhão após integral cumprimento do disposto no citado art.° 17°, n.° s 4 a 11, da aludida Convenção ou do que resultar de outra qualquer convenção bilateral que no caso concreto, eventualmente, tenha sido celebrada entre ambos os Estados.
Daí que, predominando a vontade do Estado do pavilhão, sem a sua autorização, e na ausência de convenções bilaterais em contrário, nenhuma medida poderá ser adoptada contra o navio.
Acresce que, caso tais suspeitas se revelem infundadas e o navio visitado não tiver cometido qualquer acto que as justifique, esse navio deve ser indemnizado por qualquer perda ou dano que possa ter sofrido - cfr n.° 3 do art.° 110°.
Eis, em síntese, o que se me oferece dizer sobre o tema proposto.
4o- Termos em que é manifesta a falta de procedência do Recurso apresentado pelo Ministério Público.
5o- Aliás, estipula o Artigo 8o da Constituição da República Portuguesa:
1.–As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.
2.–As normas constantes de convenções internacionais reguiarmenie ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficiai e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
3.–As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.
6o- Portugal subscreveu a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.° 60-B/97, de 3 de Abril, rectificada pelo Decreto do Presidente da República n.° 67- A/97, de 14/10.
7o- Pelo que, sempre seria inconstitucional, o artigo 5o, n.° 2, do Código Penal, por violação do artigo 8o da CRP, quando interpretado no sentido de que: No âmbito do combate ao tráfico de estupefacientes, fora do mar territorial nacional, e na ausência de convenções bilaterais em contrário, será lícita a intervenção das autoridades nacionais a bordo de embarcação estrangeira sem que exista autorização do Estado de Pavilhão da Embarcação, nos termos do art.° 17° da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas de 1988.
8o- Ora, salvo o devido respeito, que é muito, aquilo que o Digníssimo Senhor Procurador Geral Adjunto pretende é fazer tábua rasa daquilo que está acordado internacionalmente.
9o- Pretende o Ministério Público depois de, aparentemente, passar a ter intervenção direta na Governação de um País, criar, igualmente, incidentes diplomáticos que sujeitem Portugal a um enxovalho ainda maior?
E que seja considerando um Estado que é tudo menos de Direito e onde as normas e tratados internacionais não são para cumprir?
10º- De facto, como poderá Portugal justificar perante a sua congénere ... que, violando o artigo 17° da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico de produtos estupefacientes, abordou e pirateou uma embarcação daquele País sem a sua autorização?
11º- Com o devido respeito, a decisão proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura de facto ou de direito, o senhor Juiz de instrução não poderia pactuar com as graves violações cometidas nos presentes autos, pois, mais importante do que um qualquer processo é a defesa de um verdadeiro Estado de Direito.
Pelo que, julgando improcedente o Recurso apresentado pelo Ministério Público farão V. Exas. a esperada JUSTIÇA.”

I.5.–Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
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II–FUNDAMENTAÇÃO
II.1–Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ7], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal8.
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a decidir são:
•Do cumprimento das regras estabelecidas no art. 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, em face do silêncio do ... e subsequente validade das buscas efetuadas e da prova obtida através das mesmas (questão da nulidade de prova obtida por métodos proibidos).
•Da nulidade insanável da busca à embarcação – por ter sido realizada sem a presença do defensor dos arguidos.
•Da violação do art. 109º do Código Penal e 35º da lei nº 15/93 de 22.01, na ordem de restituição da embarcação ao arguido.
•Da violação pelo Mmº Juiz de instrução criminal do disposto no art. 17º, 283º, nº 3 e 308º, todos do Código de Processo Penal, ao apreciar e desconsiderar a informação policial obtida por conversa informal mantida com os tripulantes, quanto ao destino da embarcação.

Com relevo importa recordar o despacho de acusação deduzido nos autos e o despacho de não pronúncia nele proferidos:
A ........2023 foi proferido o seguinte despacho de acusação:
“Em processo penal comum e para julgamento perante Tribunal Colectivo, o Ministério Público profere acusação contra:
Arguidos:
AA, de ora em diante AA, nascido a ... de ... de 1988, natural de ..., filho de GG e de HH, residente em ....
Sujeito a prisão preventiva à ordem dos presentes autos desde ... de ... de 2022.
BB, de ora em diante BB, nascido a ... de ... de 1960, natural de ..., filho de BB e de II, residente em ....
Sujeito a prisão preventiva à ordem dos presentes autos desde ... de ... de 2022.
1.º
Os arguidos AA e BB, juntamente com outros indivíduos cuja identidade e paradeiro não se conseguiu descortinar, fazem parte de um grupo organizado que se dedica à importação e transporte, desde a ... para a ..., com entrada através de Portugal, de cocaína em pó, com vista à sua venda a terceiros e tendo por objectivo o lucro resultante de tal actividade.
2.º
Para o efeito, os arguidos conceberam, naquele grupo, um plano para lhes permitir introduzir, na ... e com passagem pelos …..., de uma embarcação com cerca de uma tonelada de cocaína.
3.º
Em execução desse intento comum, o arguido AA adquiriu a embarcação catamaran “...”, modelo 40052, com 11,97 metros de comprimento e 7,25 metros de largura, número de casco FR-.....---.---, que detivera com o nome “...”; em ... de ... de 2022 a embarcação foi colocada no mar, seguindo para o ..., onde deu entrada nos portos de ... e de ..., já com o nome “...”, e também registada em nome do arguido AA; seguindo depois para ..., a ... de ... de 2022.
4.º
Perdeu-se então o rasto à embarcação, que não deu entrada em qualquer porto para reabastecimento, tendo entretanto os arguidos escondido ou feito esconder na embarcação cerca de uma tonelada de cocaína; até que foi informado, através da rede policial internacional “MAOC(N)” que os arguidos se estavam a dirigir para os ....
5.º
A ... de ... de 2022 a Marinha Portuguesa localizou a embarcação, rumo aos ..., com danos junto à escotilha a vante de bombordo, sem bandeira do país de origem, sem sinal de radiofrequência “AIS”, por desligado pelos arguidos, para não serem descobertos, e sem o nome visível na amura da proa, nas coordenadas 37.01´55´´N 034.22’42´´0 - pelo que foi abordada, pelas 04:10h., tendo os arguidos como únicos tripulantes.
6.º
Foi solicitado aos arguidos - que tinham passaportes sem quaisquer entradas no ano de ... - pelos elementos da Marinha que a embarcação seguisse para ..., a fim de serem fiscalizados, ao que os arguidos acederam, conduzindo a mesma para a Marina antiga desta cidade, onde atracaram a ... de ... de 2022. Dia em que a Polícia Judiciária entrou na embarcação e iniciou uma busca, da qual resultou a apreensão, designadamente, de cerca de uma tonelada de cocaína cloridrato.
7.º
Com efeito, buscada a embarcação, naquele dia, verificou-se que a mesma era constituída por um convés externo onde tinha a roda do leme, uma cabine com o posto de comando, a sala principal com cozinha e acomodações nos cascos a bombordo e estibordo; no casco a bombordo existia um camarote utilizado pelo arguido BB, e um camarote utilizado para arrumos, enquanto que no casco a estibordo existia uma camarote utilizado pelo arguido AA, e outro camarote para arrumos.
8.º
Prosseguindo a busca, foram encontradas, dissimulados na parte inferior da estrutura do camarote utilizado para arrumos situado avante no casco a bombordo, trezentas e cinquenta e quatro embalagens, cada uma com cerca de um quilo, contendo cocaína.
Dissimuladas no interior dos painéis frontais da cabine, foram contadas setecentas e dezasseis outras embalagens, cada uma também com cerca de um quilo, contendo cocaína, que também foram apreendidas; ainda foram apreendidas mais cinco embalagens, com cerca de um quilo cada, aquando da chegada ao cofre forte da Polícia Judiciária, após recontagem.
Assim, os arguidos detiveram, guardaram e fizeram transitar na embarcação 1075 embalagens de cocaína, com cerca de um quilo cada, com o peso bruto total de 1231,286 quilos; embalagens que, assim como a embarcação, foram apreendidas.
9.º
Recebido o relatório do Laboratório de Polícia Científica, datado de ... de ... de 2023, de fls. 546/7, que aqui se dá por reproduzido, verificou-se que o grau de pureza da cocaína variava entre os 83,5/prct. e 86,9 /prct., a saber:
325 placas tinham o grau de pureza de 86,9 /prct., davam para 1416565 doses individuais, e pesavam 326021.969 gramas;
136 placas tinham o grau de pureza de 84,8 /prct., davam para 574499 doses individuais, e pesavam 135485.106 gramas;
448 placas tinham o grau de pureza de 84,8 /prct., davam para 574499 doses individuais, e pesavam 451206.495 gramas;
165 placas tinham o grau de pureza de 83,9 /prct., davam para 695804 doses individuais, e pesavam 165865.172 gramas;
1 placa tinha o grau de pureza de 83,5 /prct., dava para 4201 doses individuais, e pesava 1006.400 gramas.
10.º
Junto à consola da cabine da embarcação, ainda foram encontrados e apreendidos:
a)- um telemóvel satélite I------9..., com o I--- ..., tendo um cartão Iridium n.º ..., e um papel manuscrito;
b)- Um ipad Apple, n.º de série D----------C;
c)- uma caixa com software de cartografia do ano de ...;
d)- um receptor de GPS portátil, marca “...”, modelo G..-..;
e)- outro receptor de GPS portátil, da mesma marca, modelo GPS 78s;
f)- cinco embalagens da ...;
g)- uma mochila preta da ..., do arguido AA, contendo o registo da embarcação ... em nome deste arguido, um cartão de plástico também relativo à mesma embarcação, uma embalagem da ... com um cartão relativo ao telemóvel ..., com o pin 0000 e o puk 0......8, uma embalagem com um dispositivo electrónico da marca “...”, e uma capa cinzenta com documentos, papéis manuscritos e cartões de visita.
11.º
No camarote de estibordo a ré, utilizado pelo arguido AA, foi encontrada e apreendida uma bolsa preta da marca “...”, contendo 3.150 euros em notas, destinados ao pagamento das despesas do transporte do produto estupefaciente, um telemóvel “...” com o I--- ....2/4...9, com um cartão SIM da ... n.º 8......................-.2 VFNL, e um cartão correspondente ao certificado de registo da embarcação “...”, com o n.º de registo P--000---.
12.º
No camarote de bombordo a ré, utilizado pelo arguido BB, foi encontrada uma bolsa para transporte no ombro, com 7935 euros em dinheiro, destinados ao pagamento das despesas com o transporte do produto estupefaciente, um telemóvel marca ... com os I--- ... e ..., e outro telemóvel da marca ... sem IMEI visível, pertença do mesmo arguido.
13.º
As doses de cocaína referidas no artigo 9.º desta acusação, dado o grau de pureza, ainda seriam misturadas, vulgo “cortadas”, com outras substâncias antes da sua venda ao consumidor final; eram destinadas a venda a terceiros, visando obter, ante o preço básico de 40 euros por grama, quantia não inferior a 30 milhões de euros.
14.º
Os arguidos agiram do modo descrito a troco do recebimento de quantia em dinheiro que não foi possível apurar; conheciam perfeitamente a natureza estupefaciente da cocaína que detiveram, guardaram e transportaram, e foi em conjugação de esforços e em execução de plano previamente delineado que agiram do modo descrito; e contribuíram, na parte que lhes competia, para a prática do crime, agindo sempre com consciência da sua integração no grupo criminoso e de que as respectivas tarefas eram indispensáveis à prossecução dos objectivos do grupo a que aderiram, fazendo-os seus.
15.º
Agiram de comum acordo, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a respetiva conduta era proibida e punível por lei penal.
16.º
Os arguidos aquando da sua detenção detinham quantias em dinheiro entregues por outros membros da organização criminosa em cujo âmbito actuavam, para fazerem face às despesas da viagem, pelo que quer tais quantias, quer a embarcação “...” foram produto e meio da prática da actividade de tráfico de estupefacientes descrita.

Em face do exposto os arguidos AA e BB incorreram na prática, em co-autoria material, forma consumada e concurso efectivo, de um crime de adesão a associação criminosa, previsto e punido pelo art. 28.º, n. 2, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, e de um crime de tráfico estupefacientes, agravado, pp no art. 21.º, n. 1, e 24.º, al. c), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B anexa àquele diploma.
Prova:
Testemunhal:
Funcionários da Polícia Judiciária:
1.- DD, Inspector (... – Lisboa);
2.- EE, Inspector (... – Lisboa);
3.- JJ, Inspector (... ...);
4.- KK, Inspector (... ...);
5.- LL, Especialista polícia científica – ... ....
Pericial:
Exame do Laboratório de Polícia Científica n.º ...-BTX, de fls. 546/7.
Documental:
Auto de notícia de fls. 1 a 6;
Informação da localização da embarcação pela Força Aérea e Marinha;
Constituição como arguidos a fls. 54/5 e fls. 58/9;
Auto de busca e apreensão de fls. 62 a 65;
Auto de apreensão da embarcação, de fls. 66;
Auto de pesagem e despistagem de fls. 67/8;
Relatório do exame à embarcação de fls. 69 a 91, também com indicação dos locais onde tinha sido ocultada a cocaína;
Termo de juntada de fls. 92/3;
Documentos apreendidos ao arguido AA, fls. 95 a 123, e respectiva tradução, a fls. 617 e segs;
Planta da embarcação, fls. 124;
Fotografias de telefones, mochila do arguido AA, documentos e
dinheiro apreendido, fls. 125 a 131;
Cópias dos passaportes dos arguidos, fls. 132 a 146;
Auto de notícia de detenção em flagrante delito, fls. 149 a 171;
Auto de pesagem e despistagem de fls. 222;
Auto de apreensão de mais cinco embalagens, de fls. 223;
Guia de depósito de objectos, fls. 236;
Relatório aos aparelhos apreendidos, fls. 601 a 606 e fls. 610 a 615 e CD´s apensos, e apreciação judicial.
A ........2023 foi proferida a decisão de não pronúncia de que foi interposto o presente recurso com o seguinte teor:
“Vêm os coarguidos AA (Doravante apenas indicado como “coarguido AA” por melhor facilidade de exposição). e BB (Doravante apenas indicado como “coarguido BB” por melhor facilidade de exposição) requerer a abertura da instrução, inconformados que se mostram com a acusação pública deduzida em ........2023, que lhes imputa a prática, em coautoria e em concurso real, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts. 21º/ 1 e 24º/ c), e de um crime de adesão a associação criminosa, p. e p. pelo art. 28º/ 2, todos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, assente, em suma, nos seguintes fundamentos:
- nulidade processual por violação da obrigatoriedade de defensor quanto da prestação do TIR;
- nulidade processual por violação da obrigatoriedade de defensor quanto da realização da busca e apreensão e por não ter havido intervenção de intérprete/tradução em neerlandês do correspondente auto;
- nulidade da acusação por não conter, de modo suficiente, a narração dos factos concretos suscetíveis de integrar a circunstância agravante do crime de tráfico de estupefacientes e, bem assim, os elementos típicos do crime de adesão a associação criminosa;
- ilegalidade/ proibição de prova resultante da busca e apreensão, em si mesma e enquanto método de obtenção de prova, na sequência da abordagem e interceção da embarcação, porquanto as autoridades portuguesas não foram autorizadas pelo Estado de pavilhão a tomar as medidas previstas no art. 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, nem existe outra norma legitimadora para o efeito;
- pelo mesmo motivo, inaplicabilidade da Lei nacional e incompetência do Tribunal;
- nulidade da detenção dos coarguidos e nulidade da busca à embarcação e das correspondentes apreensões pois: (i) não foi autorizada a intervenção da Marinha de Guerra portuguesa, cuja abordagem à embarcação configura um verdadeiro assalto ou ato de pirataria, nem esta tem competência material para o efeito; (ii) quando do início da realização da busca à embarcação inexistia o devido mandado de busca e apreensão (e que, por conseguinte, não foi entregue aos coarguidos), pois somente foi assinado posteriormente); (iii) e, no seguimento da detenção, foi excedido o prazo máximo legal de apresentação dos coarguidos a interrogatório judicial, o que acarreta a nulidade do ato processual; e
- nulidade dos documentos redigidos em língua estrangeira.
Declarada aberta a instrução, teve lugar a prática do ato de instrução
admitido, qual seja o interrogatório do coarguido AA, seguido do debate instrutório com respeito pelas formalidades legais
O Tribunal é competente para o conhecimento e decisão sobre a instrução (sem prejuízo da questão também suscitada pelos coarguidos nesta fase processual da incompetência do Tribunal).
Inexistem nulidades, ilegitimidades ou exceções, para além daquelas arguidas pelos coarguidos neste domínio, de que cumpra conhecer.

Questão prévia:
No debate instrutório, o Ministério Público, a título de questão prejudicial, pronunciou-se no sentido de não ser conhecida na presente decisão instrutória a questão, ainda pendente de decisão em sede recursiva, da ilegalidade da prova e da incompetência do Tribunal, por violação do disposto no art. 17º da cit. Convenção, com fundamento, essencialmente, de se evitar a possibilidade de prolação de decisões contraditórias (entre o Tribunal superior ou entre este Juízo e o Tribunal superior)
Todavia, os efeitos de tal decisão pelo Tribunal ad quem, no âmbito do recurso pendente, respeitam à pretensão recursiva de revogação da medida de coação vigente, sendo que, nesta fase processual, o conhecimento da questão tem por finalidade a decisão instrutória, e por objetivo o despacho de não pronúncia, ante o objeto do processo já fixado e delimitado na/ pela acusação pública, ou seja, o âmbito é bastante mais alargado, não podendo valer aquele postulado.
E mesmo que assim não se considerasse, a questão foi (também) suscitada na instrução pelo coarguido AA, que nunca antes a carreou para os autos, não podendo assim ficar dependente do desfecho de uma lide recursiva que lhe é alheia, sendo ainda certo que a lei processual penal estabelece a regra da retirada de consequências impostas a todos os arguidos, na decisão instrutória, até mesmo quando algum não requeira a instrução [art. 307º/ 4 do Código de Processo Penal (CPP)].
Nada obsta, portanto, ao conhecimento da questão (aliás, impõe-se).

Inexistem ou quaisquer questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.

1.
A presente instrução, no que ao caso interessa, visa comprovação judicial da dedução da acusação pública em ordem a submeter a causa a julgamento [art. 286º/1 e 287º/ 1/ a), ambos do Código de Processo Penal (CPP)].
2.
Começo, por ordem lógica e cronológica, pelo conhecimento das questões relativas à legalidade da abordagem da embarcação, seguida da detenção dos coarguidos e da realização da busca e apreensão. E, de entre estas, pela magna questão da alegada violação do disposto no art. 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas e correlativas consequências jurídicas, a respeito do que defendem os coarguidos que as autoridades nacionais agiram sem a imprescindível autorização do Estado de pavilhão para tomar as medidas previstas no art. 17º da Convenção de Viena, sabendo que se tratava da embarcação denominada ..., veleiro do tipo catamarã, de pavilhão ..., não havendo, de seu turno, qualquer outro fundamento legal, que não este, suscetível de legitimar as ocorridas abordagem, busca e detenção em alto mar e condução ao porto de .... Vejamos (pontos 3. a 9.).
3.
A propósito da preocupação global do combate ao tráfico de droga internacional, afirmada, desde logo, no art. 108º/ 1 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10.12.1982 (Convenção concluída em Montego Bay, em 10.12.1982, aprovada para ratificação na ordem jurídica interna pela Resolução da Assembleia da República nº 60-B/97, de 6 de setembro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 67-A/97, de 14 de outubro, doravante apenas indicada como “Convenção sobre o Direito do Mar” por melhor facilidade de exposição), releva, no plano internacional, a cit. Convenção de Viena, cujo art. 17º, sob a epígrafe “Tráfico ilícito por mar”, dispõe, no que à questão releva, o seguinte:
«1- As Partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar (…).
10 Convenção concluída em Viena, em 20.12.1988, aprovada para ratificação na ordem jurídica interna pela Resolução da Assembleia da República nº 29/91, de 6 de setembro, ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 45/91, dessa data, e publicada no DR I-A, nº 205, também dessa data, doravante apenas indicada como “Convenção de Viena” por melhor facilidade de exposição.
3- A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio no uso da liberdade de navegação de acordo com o direito internacional e que arvore o pavilhão ou tenha matrícula de uma outra Parte é utilizado para o tráfico ilícito, pode notificar desse facto o Estado do pavilhão e solicitar a confirmação da matrícula; se esta for confirmada, pode solicitar ao Estado do pavilhão autorização para adoptar as medidas adequadas em relação a esse navio.
4- De acordo com o n.º 3 ou com os tratados em vigor entre as Partes ou com qualquer outro acordo ou protocolo por elas celebrado, o Estado do pavilhão pode autorizar o Estado requerente a, inter alia:
a)- Ter acesso ao navio;
b)- Inspeccionar o navio;
c)- Se se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito, adoptar medidas adequadas em relação ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo.
5- Quando uma medida é adoptada de acordo com o presente artigo, as Partes interessadas devem ter devidamente em conta a necessidade de não pôr em perigo a segurança da vida no mar nem do navio ou da carga e de não prejudicar os interesses comerciais e jurídicos do Estado do pavilhão ou de qualquer outro Estado interessado (…).
7- Para os efeitos dos n.os 3 e 4 do presente artigo, as Partes respondem sem demora aos pedidos de outras Partes com vista a determinar se um navio arvorando o seu pavilhão está autorizado a fazê-lo, assim como aos pedidos de autorização formulados nos termos do n.º 3. Cada Estado designa, no momento em que se tornar Parte da presente Convenção, a autoridade ou, se for caso disso, as autoridades encarregadas de receber e de responder a esses pedidos. Essa designação será notificada pelo Secretário-Geral a todas as outras Partes no mês seguinte ao da designação.
8- A Parte que tiver adoptado qualquer das medidas previstas no presente artigo informa de imediato o Estado do pavilhão dos resultados dessa medida (…).
10- As medidas adoptadas nos termos do n.º 4 do presente artigo só são aplicáveis por navios de guerra ou aeronaves militares ou quaisquer outros navios ou aeronaves devidamente assinalados e indentificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e autorizados para esse fim (…)»
A liberdade do alto mar (mare liberum) encontra-se prevista no art. 87º da Convenção sobre o Direito do Mar, em termos de se mostrar “aberto a todos os Estados, quer costeiros quer sem litoral”.
Por seu turno, o princípio da lei do pavilhão rege o direito do mar e da navegação. No alto mar os navios encontram-se sujeitos à jurisdição exclusiva do Estado do pavilhão (art. 92º/ 1 da Convenção sobre o Direito do Mar). Contudo, a atuação das embarcações que ali naveguem tem como limite os interesses dos outros Estados e da Comunidade Internacional, mormente ao nível da repressão ao tráfico de estupefacientes, tendo por isso merecido a atenção das Nações Unidas. Daí a solução do cit. art. 17º, balanceando a dialética entre – singularmente – a soberania do Estado do pavilhão, por um lado, e – globalmente – o interesse no combate ao tráfico de estupefacientes, por outro lado.
Por sua vez, ao contrário dos poderes do Estado no domínio do mar territorial (vide, por exemplo, o art. 27º/ 1/ d) da Convenção sobre o Direito do Mar), na zona económica exclusiva (ZEE) apenas é permitido o exercício de direitos de soberania e jurisdição voltados essencialmente para a exploração, conservação, utilização e gestão dos recursos naturais (arts. 55º e ss. da Convenção sobre o Direito do Mar), ou seja, “encontram-se em relação directa com os direitos de raiz económica que a comunidade internacional lhe reconhece” (Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 17.08.1997 -Parecer nº 122/1996, de 17.08.1997, integralmente disponível em www.dgsi.pt sob o nº convencional PGRP00000928). Daí que, por exemplo, ao abrigo do direito nacional, o direito de visita só pode ser exercido nas circunstâncias a que alude o art. 16º/ 1/ c) da Lei nº 34/2006, de 28 de julho (diploma que “Determina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar”).
Ou seja, o regime previsto para a ZEE “não é aplicável ás águas em si, mas sim aos recursos económicos nela existentes e atividades direta ou indiretamente relacionadas”, pelo que, contrariamente ao mar territorial, “o Estado costeiro apenas possui soberania sobre os recursos aí existentes, ou seja, não existe territorialização” não gozando por isso de regime diferenciado, em matéria de tráfico de estupefacientes, daquele previsto para o alto mar (vide o Ac. TRL de 07.12.2021 - Processo 693/20.2T8AGH, do Juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo - no qual intervim como Juiz Adjunto - relatado pelo Senhor Juiz Desembargador Vieira Lamim, cuja publicação desconheço.)e o Ac. TRL de 08.06.2021 - Processo nº 206/18.6JELSB.L2-5, relatado pelo Senhor Juiz Desembargador Manuel Advínculo Sequeira, integralmente disponível em www.dgsi.pt.).
Assim sendo, e em suma, o mecanismo previsto no art. 17º da Convenção de Viena pode – e deve – ser observado caso a embarcação do Estado do pavilhão se encontre quer no alto mar, quer na ZEE de outro Estado Parte da Convenção (porque fora de matéria do estrito campo económico consubstanciado no regime jurídico aplicável a esta por força das normas de soberania nacional).
4.
Feito este enquadramento, eis o que se passou no caso dos autos:
- em ........2022, as autoridades policiais portuguesas têm conhecimento da forte suspeita do transporte de substâncias estupefacientes por um veleiro do tipo catamarã, denominado ..., que ostenta o pavilhão da ..., vindo de algures da ... e de regresso à ..., e que estaria próximo dos ... (fls. 1), e de características melhor assinaladas na informação descritiva e fotográfica a fls. 5-6;
- em ........2022, o OPC (Polícia Judiciária) sinaliza internamente a necessidade de realização de busca à embarcação ... (fls. 2-4), o que é proposto ao Ministério Público (fls. 8-10);
- em ........2022, dois Senhores Inspetores da Polícia Judiciária embarcam no navio da Marinha de Guerra Portuguesa, com partida de …, com vista à abordagem da embarcação (fls. 39);
- em ........2022, o OPC dirige às autoridades ..., por telecópia, o pedido de autorização de intervenção das autoridades portuguesas ao abrigo do art. 17º da Convenção de Viena, identificando cabalmente a embarcação (fls. 23-24), que, ao que tudo indica, não é recebido nesse dia, nem no dia seguinte, por motivo de erro nas comunicações (fls. 25, 26, 27 e 28);
- em ........2022, às 11:25h., OPC dirige às autoridades ..., por correio eletrónico, tal pedido de autorização de intervenção das autoridades portuguesas ao abrigo do art. 17º da Convenção de Viena, identificando cabalmente a embarcação (fls. 30-30v.);
- em ........2022, às 14:40h., as autoridades ... respondem, por correio eletrónico, confirmando que a embarcação tem o pavilhão da ... e informam que está registada em nome do coarguido AA e, bem assim, que não são a entidade competente/ autorizada para dar seguimento à solicitação no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena (fls. 29);
- em ........2022, o Ministério Público promove, de entre o mais, a realização da busca à embarcação (fls. 11-14);
- em ........2022, o Juiz de Instrução Criminal competente autoriza a realização de busca à embarcação, identificando-a cabalmente (fls. 16-17):
- em ........2022, pelas 04:17h., a Marinha procede à abordagem da embarcação, nas coordenadas 37.01' 55' , N 034.22'42 O, sita na ZEE, que havia desligado o equipamento que emite o sinal de AIS (equipamento destinado a identificar a presença de outras embarcações nas proximidades, permitindo também a identificação da embarcação que emite tal sinal), encontrando-se ambos os coarguidos, como tripulantes, no seu interior, embarcação esta que veio a ser conduzida ao porto de ..., onde chegou no dia ........2023, pelas 10:20h. (fls. 39-41, 50, 51, 148-170);
- em ........2022, às 8:48h., as autoridades ... respondem novamente, por correio eletrónico, a pedido do mesmo jaez encaminhado por outra entidade, reiterando que não são a entidade competente/ autorizada para dar seguimento à solicitação no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena (fls. 31-32);
- em ........2022, às 13:03h., as autoridades ... respondem novamente, por correio eletrónico, reiterando que não são a entidade competente/ autorizada para dar seguimento à solicitação no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena, indicando qual é essa entidade e informando que o pedido foi reencaminhado à mesma (fls. 33-34), havendo notícia de conformação do recibo de leitura, por parte desta, no dia ........2022 (fls. 38);
- não houve resposta positiva (autorização), pelas autoridades ..., à solicitação de tomada de medidas no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena.
Saliento que a tradução dos acima referidos documentos em língua inglesa se encontra a fls. 641 e ss.
Para além do exposto, resulta ainda das informações do OPC (fls. 39-41, 148-171 e 176-184) que a embarcação seguia na direção (rumo) dos ...; que não tinha hasteada qualquer pavilhão nem tinha o nome inscrito na parte da frente do casco, apesar das exigências para este tipo de veleiro (fls. 92); e que foi comunicado aos coarguidos, que anuíram, que iriam ser acompanhados sob escolta até ..., tendo sido cooperantes no comando da embarcação, dados de factos estes, todavia, expressamente negados nos RAI.
5.
Ora, feita esta resenha factual, é evidente, como muito bem referem os coarguidos nos RAI, que as autoridades portuguesas tinham a forte suspeita, desde o momento inicial, de que:(i) a embarcação ..., do Estado do pavilhão da ..., e com as demais características apuradas, servia de meio para o transporte internacional de substâncias estupefacientes; (ii) de que navegava próximo da Região Autónoma dos ... e qual a estimada localização; (iii) de que a ... é Estado Parte na Convenção de Viena; (iv) de que a intervenção do Estado português, para a tomada de medidas ao abrigo do cit. art. 17º da Convenção de Viena, carecia de autorização do Estado ... (e, precisamente por isso, foi solicitada); (v) e de que essa autorização, embora solicitada, não havia sido concedida e por que razões. E, não obstante, as autoridades portuguesas não se coibiram de abordar a embarcação e de tomarem as medidas cautelares que entenderam, incluindo a determinação do encaminhamento até ao porto de ..., após a confirmação de que se tratava do veleiro tipo catamarã em questão.
Ora, o cumprimento do art. 17º não se basta com o pedido de solicitação do Estado requerente, carecendo igualmente de uma resposta positiva pelo Estado do pavilhão (não bastando, naturalmente, o silêncio/ falta de resposta), salvo se, efetivamente, estivermos perante uma embarcação sem nacionalidade ou apátrida (não sendo possível, nestas situações, por inexistência de Estado do pavilhão, qualquer autorização, conforme se cuida no caso decidido pelo TRL no Ac. de 26.10.2021 - Processo nº 18/20.7JELSB.L1-5, relatado pelo Senhor Juiz Desembargador Jorge Gonçalves, integralmente disponível em www.dgsi.pt.).
No caso dos autos, sabendo-se que a tomada de medidas ao abrigo do cit. art. 17º da Convenção de Viena carece de autorização do Estado do pavilhão - independentemente de a autoridade concreta do Estado ... competente constar, ou não, da atualização da listagem de contactos pública para o efeito - Vide https://www.-----.---/---------/----------/..._........._2..._2_-----.pdf, mais concretamente a p. 171.- [noto que a própria autoridade convocada inicialmente esclareceu, no dia ........2022 (portanto, em momento anterior ao da abordagem da embarcação pela Marinha de Guerra), não ser competente/ autorizada para dar seguimento à solicitação no âmbito do art. 17º da Convenção (cabendo essa designação, exclusivamente, a cada Estado Parte – cfr. segunda parte do art. 17º/ 7 da Convenção de Viena)] –, e que essa autorização não foi concedida, a vexata quaestio consiste em saber se a intervenção das autoridades portugueses, ainda assim, está legitimada, ou não, por outra(s) norma(s) legal(ais).
A este respeito, e na senda das informações (e da posição) do OPC constantes dos autos, o Ministério Público pugna que a atuação se mostra legal à luz do direito de visita a que alude o art. 110º da Convenção sobre o Direito do Mar.
Salvo o devido respeito pela opinião contrária, trata-se, todavia, de um manifesto artifício para procurar contornar aquela falta de autorização do ..., por duas ordens de razão: por um lado, a figura do direito de visita não está prevista em matéria de combate e repressão ao tráfico de estupefacientes (e foi este, e não outro, o fundamento de abordagem da embarcação); por outro lado, pese embora a embarcação, na ocasião em que foi intercetada, pudesse encontrar-se sem a bandeira hasteada e sem a designação visível e regular, talqualmente o referenciado pelo OPC (sem prejuízo da oposição, não sustentada, do coarguido AA no RAI e, diante de mim, nas declarações que prestou nesta fase de instrução, não sendo credível, contudo, que os elementos da Marinha houvessem deliberadamente retirado e dado descaminho à bandeira hasteada…), certo é que não “exista motivo razoável para suspeitar que (…) O navio não tem nacionalidade”, tal como exige o art. 110º/ 1/ d) da Convenção (cfr., no direito interno, os arts. 16º/ 1/ c) e 18º/ b), ambos da cit. Lei nº 34/2006)... pelo contrário: exista a forte suspeita – isso sim – de que se tratava da dita embarcação ..., com as características e o pavilhão já conhecidos (fora sinalizada anteriormente e toda a operação fora direcionada no sentido da abordagem desta, e não de outra, embarcação, e na véspera, ........2022, a confirmação do pavilhão fora comunicada pelas autoridades ...), avistada pela Marinha “com as mesmas características da embarcação suspeita”, havendo “um alto grau de certeza (Leia-se, probabilidade, pois na certeza não há margem para graus) de que poderia tratar-se da embarcação suspeita nos autos” (fls. 149). Ou seja, a ação da Marinha estava direcionada, desde o primeiro momento, para a abordagem desta embarcação, em concreto, atentas as fortes suspeitas do transporte de substâncias estupefacientes, o que convoca, não o direito de visita, mas sim – precisamente – as medidas do art. 17º da Convenção de Viena (vide, concretamente, o nº 4).
Ademais, muito embora o cit. art. 108º da Convenção estabeleça o princípio da cooperação entre os Estados “para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas praticado por navios no alto mar em violação das convenções internacionais”, não o faz estender às situações de que cura o direito de visita no art. 110º… Conforme se refere no cit. Parecer do Conselho Consultivo da PGR, “(…) o direito de visita, permitido no artigo 110º a qualquer navio de guerra no alto mar por suspeitas sérias de (…) navio (…) sem nacionalidade - não está consagrado para a luta contra o tráfico de estupefacientes. Conforme se escreveu na Informação-Parecer n.º 50/87, poderá mesmo dizer-se que muito pouco ou nada se acrescenta através daquele artigo 108º - para além de uma especial preocupação pelo tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas no alto mar - ao princípio da bandeira ou pavilhão que, de um modo geral, é reconhecido aos Estados para punirem as infracções cometidas a bordo dos navios que arvorem o seu pavilhão, cometidas por nacionais ou estrangeiros, ainda que no alto mar (cfr. o artigo 4º, alínea b), do Código Penal)”. Deste modo, a despeito do princípio da lei de pavilhão, o direito de visita reveste cariz excecional e apenas para nas situações ali previstas, e não outras.
Não encontro qualquer justificação, pois, para tal arrogado exercício do direito de visita de forma a alcançar um resultado que só seria legítimo através do cit. art. 17º da Convenção de Viena ou, eventualmente, ao abrigo de um acordo bilateral com a ..., nem tal é aceitável.
7.
Mas mesmo que assim não entendesse, ou seja, ainda que considerasse legítima a intervenção das autoridades portuguesas ao abrigo do direito de visita, o exame a bordo do navio somente é suscetível de ter lugar se, verificados os papéis de bordo, as suspeitas (portanto, de se tratar de um navio sem nacionalidade) persistirem (art. 110º/ 2 da Convenção), o que manifestamente não sucedeu no caso dos autos pois logo ali se constatou que, efetivamente, se tratava da embarcação ... em questão (fls. 177), tendo a pertinente documentação, de resto, sido posteriormente apreendida para os autos. Portanto, a determinação de condução da embarcação ao porto de ... (seja através da colaboração dos coarguidos no comando da embarcação, seja pelos próprios elementos da Marinha, como o coarguido AA referiu nas suas declarações), a partir daquele momento, não encontra arrimo legal (nem a embarcação era apátrida, nem tinha a mesma nacionalidade do Estado de execução, pelo que não há base de afirmação da jurisdição portuguesa). Reitero sem pretender ser repetitivo: o direito de visita não está pensado nem previsto para o combate ao tráfico de estupefacientes. Destarte, as operações que se seguiram até a embarcação ter atracado no porto de ... (tal qual como se estivessem legitimadas pelo art. 17º/ 4 da Convenção de Viena) carecem de suporte legal.
Em suma, ainda que entendesse que o direito de visita fora validamente exercido quando da abordagem da embarcação, o conjunto de medidas que se seguiram nele não encontram arrimo ante a conclusão, logo ali alcançada, de que, afinal, não se verificavam os necessários pressupostos legais que a justificaram (inexistência de nacionalidade), porque, efetivamente, se tratava da embarcação ..., já sinalizada, de pavilhão ... (confirmado pelo Estado do pavilhão). Nesse momento impunha-se, obrigatoriamente, a obtenção de uma resposta positiva à solicitação realizada junto das autoridades ... competentes (não me cabendo pronunciar sobre se terão sido utilizados meios de contactos expeditos e diligentes), e, só após a resposta positiva, podia o OCP aceder à embarcação e podiam ser levadas a efeito as medidas solicitadas e autorizadas (conforme se decidiu no cit. Ac. TRL de 07.12.2021).
O direito de visita não pode, pois, suprir a falta de autorização para a tomada de medidas no âmbito e nos termos do art. 17º da Convenção de Viena. E as autoridades portuguesas comportaram-se como se houvessem obtido tal autorização (isto é, o procedimento levado a efeito é precisamente aquele que resultaria da aplicação do art. 17º), consubstanciando, assim, uma ingerência não consentida na soberania do Estado ....
8.
É certo que a busca à embarcação, já em território nacional, foi precedida de despacho judicial que a determinou. Mas nesse momento, e desde a abordagem da Marinha de Guerra, os coarguidos já não tinham a livre disponibilidade da embarcação (e conteúdo). E o despacho tem como pressuposto, inexoravelmente, que a intervenção das autoridades portuguesas, a montante, estivesse legitimada. Não se encontrando a embarcação em águas territoriais, mas sim na ZEE, a busca só poderia ter lugar por força e no seguimento da legalidade das operações cobertas pelo art. 17º da Convenção de Viena.
Ao que acresce ser condição de aplicação da Lei penal portuguesa (art. 49º/ b) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro– vide o cit. Ac. TRL de 08.06.2021) que, deste modo, encontra um vazio legal.
9.
Impõe-se, pois, a conclusão pela violação absoluta de regras de obtenção e produção de prova que conduziram à realização da busca, que, assim, padece de nulidade (art. 122º/ 1 e 3 do CPP), tornando proibida a prova dali resultante (a violação daquelas regras determina a reafirmação contrafáctica através da proibição de valoração), precisamente porque teve lugar em sequência de uma abordagem ilegal à embarcação, ou, mesmo que assim não se considerasse, de medidas de condução da embarcação, com a carga e os tripulantes a bordo, ao porto de ... não consentidas por Lei, ofendendo a soberania do Estado do Pavilhão, e não é cogitável que pudesse ter sido levada a efeito noutras circunstâncias [noto que inexiste nos autos qualquer evidência de que embarcação se dirigia a território nacional, mormente à Região Autónoma dos ... (apenas é feita uma referência neste sentido nas informações do OPC, em “conversa informal mantida com os tripulantes” (fls. 150), insuscetível de valoração em sede de julgamento – cfr. art. 356º/ 7 do CPP)].
10.
Ademais, a busca à embarcação teve lugar sem a presença de defensor que, no caso, é obrigatória em razão do desconhecimento pelos coarguidos da língua portuguesa, dado de facto este facilmente percetível às autoridades policiais (art. 64º/ 1/ d) do CPP), consubstanciando uma nulidade insanável (art.119º/ c) do CPP) e tendo aquele efeito de imprestabilidade da prova.
Noto que não estamos perante uma situação de falta de defensor a suspeito que ainda não havia sido constituído como coarguido aquando da busca (vide, a título de exemplo, o Ac. TRL de 23.04.2020 – processo nº 18/20.7JELSB-B.l1-9, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Calheiros da Gama, integralmente disponível in www.dgsi.pt - , pois esta teve lugar entre as 10:30h. e as 19:00h (cfr. cit. auto a fls. 62-65) e os coarguidos prestaram TIR, subsequentemente à constituição nessa qualidade, às 14:20h. (coarguido AA) e às 16:20h. (coarguido BB) desse mesmo dia (fls. 56 e 60), tendo sido detidos, ambos, às 12:00h. (fls. 170).
Mas, ainda assim, a Diretiva nº 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22.10.2013 (Relativa ao “direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares”) , prevê, no art. 3º/ 1 e 2/ c), que os “suspeitos e acusados devem ter acesso a um advogado sem demora injustificada”, “após a privação de liberdade”, o que não se verificou, mas tão somente dois dias depois, em ........2023 (Refªs 53735644 e 53735643, a fls. 195 e 196). Pelo que, mesmo admitindo-se que a busca pudesse ter sido iniciada antes da constituição de arguido e nomeação de defensor, devia ter sido interrompida, necessariamente, quando da detenção daqueles, a fim de assegurar a nomeação e presença do defensor no ato. Saliento, por fim, que embora a cit. norma de Direito da União Europeia não tenha sido transposta para o ordenamento jurídico interno, não deixa por isso de ter efeito direto vertical ascendente, porquanto se mostra clara, precisa e incondicional e, bem assim, se mostra estabelecida em benefício do particular (e não do Estado), ou seja, é suficientemente operacional para funcionar como critério normativo de solução num caso concreto (vide, de entre muitos, o Ac. do TJUE Van Gend & Loos, de 1963, integralmente disponível em https://------.------.--/------------/..?...=.....:.....-J...., verdadeiro leading case sobre o princípio do efeito direto).
Pelo mesmo assinalado motivo, também se verifica a nulidade insanável por violação da obrigatoriedade de defensor quando da prestação do TIR, pelos coarguidos, embora esta tenha por efeito, apenas, a sua repetição, por não contender com a prova (art. 122º/ 2 e 3 do CPP).
12.
A proibição de prova resultante da busca e apreensões, e correlativa exclusão de valoração, abrange, necessariamente, por que dali diretamente decorrente (e, como referi, sem se cogitar outra forma legal de obtenção da prova), os seguintes elementos elencados na acusação: o auto de pesagem e despistagem e o relatório pericial de toxicologia (umbilicalmente relacionado com o produto estupefaciente apreendido), a planta e o relatório de exame à embarcação, a reportagem fotográfica de bens apreendidos, a cópia dos passaportes dos coarguidos, o auto de detenção em flagrante delito, a guia de depósito de objetos e o relatório aos aparelhos apreendidos (art. 122º/ 3 do CPP).
Consequentemente, a prova sobrante ali elencada é, clara e manifestamente, insuficiente para a demonstração dos factos narrados no libelo acusatório e integradores dos tipos de crime pelos quais os coarguidos vêm acusados (mostrando-se prejudicada a questão de saber se os factos são suscetíveis de preencher o tipo de crime de adesão a associação criminosa e, bem assim, a circunstância agravante do crime de tráfico de estupefacientes), pelo que, sem necessidade de aduzir quaisquer outras considerações (atenta a evidência da conclusão), impõe-se a não pronuncia dos mesmos (arts. 308º/ 1 do CPP), não sendo devidas custas processuais (arts. 513º/ 1 e 514º/ 1, ambos do CPP).
13.
Sem embargo do exposto, não acompanho o entendimento dos coarguidos quanto às demais questões suscitadas a propósito da detenção/ busca e apreensão, inexistindo os apontados vícios.
Concisamente:
a)-a busca não se iniciou quando da abordagem à embarcação (........2022), mas sim às 10:30h. do dia ........2022 (cfr. auto de busca e apreensão a fls. 62 e ss.), data posterior, por conseguinte, à data da emissão do mandado judicial (........2022);
b)-a busca foi realizada pelo OPC, após a chegada da embarcação ao porto de ..., e não por forças da Marinha que não atuaram como órgão de polícia criminal (cit. Ac. TRL de 26.10.2021), mas sim no âmbito da competência própria para a prevenção e repressão do narcotráfico na ZEE, nos termos dos arts. 1º e 6º/ 2/ k) do Decreto- Lei nº 43/2002, de 2 de março (vide o cit. Ac. TRL de 08.06.2021 e, bem assim, o Ac. TRL de 16.02.2022 (Processo nº 308/21.1JELSB-C.L1-3, relatado pela Senhora Juiz Desembargadora Graça Santos Silva, integralmente disponível em www.dgsi.pt.);
c)-a obrigatoriedade de intérprete respeita à intervenção processual – ativa, leia-se – de quem não conheça ou domine a língua portuguesa, e não quanto à tradução de notificação do mandado de busca, constando do mesmo, de resto, que os coarguidos foram esclarecidos acerca do respetivo teor em língua inglesa, não sendo, por isso, um ato necessário (art. 92º/ 6 do CPP);
d)-embora os coarguidos tenham ficado privados da sua liberdade de circulação e de livre disposição das suas pessoas desde o momento em que foram intercetados na embarcação (........2022) até à apresentação a primeiro interrogatório judicial (........2023), concorrem circunstâncias mais do que justificativas para que não tivesse sido possível cumprir o prazo legal máximo de 48 horas previsto no art. 254º/ 1/ a) do CPP (o cumprimento afigura-se completamente irrealista atenta a distância de costa e a conatural demora do seu apresamento e condução para território nacional), o que respeita a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (vide, numa situação semelhante, o cit. Ac. TRL de 23.04.2020), sendo certo que, devida e regulamente representados por Ilustres Defensores naquele ato, não arguiram nenhum vício a este respeito (art. 120º/ 3/ a) do CPP);
e)- este Tribunal é competente à luz da Lei processual penal (art. 20º/1 do CPP); e
f)- a falta de tradução de documentos em língua estrangeira é sanável a todo o tempo, sendo o vício de cariz procedimental, não consubstanciando prova proibida (art. 125º do CPP).
A não pronúncia dos coarguidos importa a imediata extinção da medida de coação vigente de prisão preventiva aplicada a cada um dos coarguidos (cujas decisões de aplicação e reexame se basearam na legalidade da prova) e, consequentemente, a imediata libertação dos mesmos (art. 212º/ 1/ b) e 213º/ 2, ambos do CPP).
Nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 109º/ 1 e 2 do CP e dos arts. 35º/ 1, 2 e 3 e 62º/ 6, ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro (ou, subsidiariamente, em caso de inaplicabilidade da lei penal portuguesa, à luz do princípio internacional em matéria de combate ao tráfico de estupefacientes), a substância estupefaciente deverá ser declarada perdida a favor do Estado e destruída.
Todos os demais objetos e valores, cuja apreensão deixa de relevar, deverão ser restituídos aos coarguidos.

Em face do exposto:
- não pronuncio os coarguidos AA e BB pela prática dos imputados crimes de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts. 21º/ 1 e 24º/ c), e de adesão a associação criminosa, p. e p. pelo art. 28º/ 2, todos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro;
- julgo verificada a nulidade do ato processual de tomada de termo de identidade e residência (TIR) e, consequentemente, determino a sujeição dos coarguidos AA e BB a (novo) TIR, de imediato;
- revogo e julgo extinta, com efeitos imediatos, a medida de coação de prisão preventiva aplicada a cada um dos coarguidos AA e BB;
- declaro as substâncias estupefacientes perdidas a favor do Estado e a correspondente destruição;
- determino a restituição aos coarguidos AA e BB de todos os demais objetos e valores apreendidos.
Restitua os coarguidos AA e BB à liberdade.
Sem custas processuais.
Comunique, de imediato, ao Tribunal da Relação de Lisboa (por referência ao apenso “A”).
Notifique.
Após o trânsito em julgado desta decisão instrutória, notifique os coarguidos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 186º/ 3 do CPP.”

II.–1-Apreciação dos recursos
Questão Prévia:
Veio o arguido BB na resposta ao recurso suscitar a questão da nulidade do processo ab initio, por entender que compete ao juiz de instrução criminal sob o art. 32º, nº 4 a notícia do crime ou a denúncia efetuada com o intuito de apurar se a pessoa denunciada deve ou não ser alvo de processo crime. Suscitando a questão da constitucionalidade dos arts. 53º, nº 2 al. a) e 263º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido que “É ao Ministério Público que compete apreciar o seguimento a dará às denuncias, queixas e participações criminais ou no sentido que “recebida uma denúncia, queixa ou participação criminal contra pessoa determinada, não tem o juiz de instrução que promover o prosseguimento a dar às mesmas.
Tais interpretações violam os artigos 32º, nº 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa e art. 6º, nº 1 da Convenção dos Direitos do Homem.
Como se salienta no Acórdão do STJ de 22.09.20219 “No nosso sistema, o objeto do recurso ordinário é o reexame da decisão recorrida, das questões julgadas na decisão recorrida ou que o tribunal ad quem deveria, por imposição normativa, ter conhecido e decidido, constituindo apenas um remédio processual que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões sobre matérias e questões já submetidas e objeto de decisão do tribunal de que se recorre. No julgamento do recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas, que tenham já sido objeto de decisão anterior pelo tribunal a quo. Sendo que as conclusões da motivação delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento oficioso das questões que o tribunal ad quem possa conhecer.
É enfatizado pela doutrina[1] e está estabilizado na jurisprudência deste Supremo Tribunal que “os recursos destinam-se ao reexame das questões submetidas ao julgamento do tribunal recorrido. O tribunal de recurso aprecia e conhece de questões já conhecidas pelo tribunal recorrido e não de questões que antes não tenham sido submetidas à apreciação deste tribunal – o tribunal de recurso reaprecia o concretamente já decidido, não profere decisões novas[2]”.
Entre muitos no mesmo sentido, no acórdão de 13.03.2019, reafirmou-se e decidiu-se que “os recursos destinam-se ao reexame das questões submetidas ao julgamento do tribunal recorrido e não de questões que antes não tenham sido submetidas à apreciação deste tribunal, não sendo lícito invocar no recurso questões que não tenham sido suscitadas nem resolvidas na decisão de que se recorre, sendo de rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos dos arts. 420.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 2, do CPP”.
No acórdão de 20.12.2006, expendeu-se: “I — É entendimento constante do STJ sobre a natureza e função processual do recurso o de que este não pode ter como objeto a decisão de questões novas, constituindo apenas um remédio processual que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objeto de decisão do tribunal de que se recorre: em fórmula impressiva, no recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas que tenham já sido objeto de decisão anterior pelo tribunal a quo e que um interessado pretende ver reapreciadas.”10.
Por sua vez, no acórdão de 02.02.2006 – 3ª sec.ª -, entendeu-se que “o recurso apresenta manifesta falta de fundamento se o recorrente suscita no recurso para o supremo Tribunal de Justiça questões relativas à determinação da medida da pena que não submeteu à consideração do Tribunal da Relação”.
Como escrevem Helena Mourão e Paulo Pinto Albuquerque11 “A metodologia da cognição dos recursos ordinários em processo penal é a seguinte:
Delimitação objetiva do âmbito do recurso. As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensam os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objeto da discussão no Tribunal de recurso. (…)
A delimitação do âmbito do recurso não prejudica o dever de o Tribunal conhecer oficiosamente das nulidades que afetem o recorrente.
A delimitação não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.”
Acresce que em Processo Penal não está prevista, nem é admissível a figura do recurso subordinado em matéria penal (o art. 404º apenas prevê a figura do recurso subordinado em matéria civil).
Afirmando tais autores12 “O Código de Processo Penal não prevê o recurso subordinado em matéria penal e nem mesmo o recurso subordinado do arguido em relação a recurso do Ministério Público (acórdão do STJ de 30.11.1993, in CJ, Acs. Do STJ, I, 3, 253) o que não é inconstitucional (Acórdão do TC nº 284/2006)”.
Ora, a questão em apreço não constitui qualquer nulidade insanável que houvesse de ser conhecida oficiosamente, atento o princípio da tipicidade estabelecido no art. 119º do Código de Processo Penal.
Na verdade, o arguido BB, veio, em sede de resposta ao recurso, introduzir questão que não havia sido suscitada por si ou por qualquer outro sujeito processual ao longo de todo o processo, isto apesar de ter recorrido do despacho que lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva e de ter requerido a abertura da instrução (nem tal questão surge de qualquer outro requerimento formulado no processo).
E veio ainda levantar a questão de que a detenção do arguido BB, entrega ao poder judicial e a manutenção em prisão preventiva por longos meses traduziu violação do art° 5º-1 e 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; foi preso numa jaula de 5m2 sem condições mínimas de dignidade humana, por longos meses, sem ver nem ser ouvido por um Juiz de Instrução após o primeiro interrogatório; só se pode concluir que Portugal ostracizou o art° 5º- 1 e 3 da CEDH; 
Ora, no recurso interposto pelo Ministério Público e ao qual o arguido responde não é colocada qualquer questão, que sustente, também, neste conspecto a resposta apresentada .
Cremos assim, que não sendo admissível a interposição de recurso subordinado em matéria penal por parte do arguido em relação a recurso do Ministério Público, também não é possível utilizar o exercício do direito de resposta a recurso para fazer introduzir questões novas que não estão incluídas nas conclusões do recurso que – como acima referido – delimitam o poder de cognição do Tribunal de recurso.
O mesmo se dirá relativamente à questão da constitucionalidade da interpretação dos arts. 53º, nº 2 al. a) e 263º do Código de Processo Penal, uma vez que tal matéria não foi suscitada em momento prévio pelo arguido, e foi apresentada na resposta ao recurso apresentado suscitando ex novo questão que não havia colocado ao longo do processo.
Deste modo, porque as questões suscitadas extravasam o âmbito da resposta ao recurso e no Processo Penal Português não é admissível a figura do recurso subordinado e, bem assim, porque a questão desconformidade da interpretação dos arts. 53º, nº 2 al. a) e 263º do Código de Processo Penal ao art. 32º, nº 4 da CRP, não foi antes invocada, nem constitui objeto do recurso interposto pelo Ministério Público, entende-se não conhecer das mesmas.
II.–1.2-Da violação do princípio da Lealdade processual
Entendem o recorrente MM que o recurso interposto pelo Ministério Público configura naquilo que foi definido pelo Acórdão de fixação de jurisprudência nº 2/2011, publicado no DR. Iª Série se 27.01.2011 um ato de deslealdade processual, devendo o recurso apresentado ser rejeitado.
Fixou o acórdão do supremo Tribunal de Justiça 2/2011 de 16.12.2023, a seguinte jurisprudência: “Em face das disposições conjugadas dos artigos 48° a 53º, e 401, do Código de Processo Penal o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo”.
Invoca o recorrente para o efeito que o Ministério Publico ao longo do inquérito e na instrução defendeu que a intervenção inicial junto da embarcação estava a coberto do disposto no art. 110º da Convenção sobre o Direito do mar e agora vem defender em sede de recurso que a intervenção ocorreu por via do disposto no art. 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.
Cremos que a jurisprudência fixada no mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2011 não é sobreponível à situação em apreço nos autos.
Não temos dúvidas que o princípio da lealdade Processual é como se refere no supracitado Acórdão de fixação e jurisprudência um “princípio fundamental do processo penal convocado e válido para todos os intervenientes”.
Porém, em nenhum momento anterior o Ministério Publico defendeu que a abordagem à embarcação “...” não estava sustentada, em normativos internacionais, e nunca defendeu igualmente que Portugal não fosse competente para conhecer dos factos, sempre tendo defendido tal posição com o direito de visita previsto no art. 110º da Convenção Sobre o Direito do mar, mas também invocando os pedidos efetuados ao abrigo do art. 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e outras Substâncias Psicotrópicas.
Veja-se a posição expressa nos autos pelo Mº Público na resposta apresentada ao recurso interposto pelo arguido BB a ........2023 ( refª …) onde nas respetivas conclusões escreveu o seguinte:
“5.- Mais pretende o recorrente que o Tribunal é incompetente em razão do território, por violação do art. 17.° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas de 1988; mas sem razão.
6.- Com efeito, resulta dos autos que a Polícia Judiciária teve conhecimento que a embarcação tripulada pelos arguidos esteve bastante tempo em reparações na doca seca de ..., então ostentando o nome “...”; em ... de ... de 2022 foi colocada no mar, seguindo para o ..., onde deu entrada nos portos de ... e de ..., já com o nome “...”, seguindo depois para ..., a ... de ... de 2022. Perdeu-se então o rasto à embarcação, que não deu entrada em qualquer porto para reabastecimento, embora constasse que se tinha dirigido para a .... Até que se soube que estava a dirigir-se aos ..., através de informações recebidas da MAOC(N), mantendo o nome “...”, e bandeira da ..., sendo suspeita de transportar produto estupefaciente.
7.-A Polícia Judiciária encetou contactos com as autoridades ..., em cumprimento do art. 17.° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas de 1988, mas sem sucesso; em ... de ... de 2022 a Marinha Portuguesa localizou a embarcação, rumo aos ..., sem sinal de AIS, por desligado pelos arguidos, para não serem descobertos, nas coordenadas 37.01'55N 034.22’420, que foi abordada, pelas 04:1 Oh., não tendo pavilhão arvorado, e ao abrigo do art. 110.°, n. 1, al. d) da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; tendo o arguido recorrente como um dos dois tripulantes. Foi solicitado pelos elementos da Marinha que a embarcação seguisse para ..., a fim de ser buscada, ao que os arguidos acederam, conduzindo a mesma para o respectivo porto, onde a Polícia Judiciária entrou na embarcação e iniciou a busca, com apreensão de cerca de uma tonelada de cocaína, o que motivou a detenção dos arguidos.
8.-Assim, o crime de actividade em causa foi praticado em Portugal, havendo indícios incertos que a embarcação terá transitado por mares da ..., sem aportar, e indícios certos que a embarcação transitou por portos de Portugal continental e dirigia-se para os ... quando foi abordada pela Marinha, sem sinal e sem pavilhão hasteado, já havendo suspeitas, pela Polícia Judiciária, da prática de um crime de tráfico de estupefacientes; o que foi confirmado após busca no porto de ..., autorizada por Juiz de Instrução Criminal, pelo que a pretendida invalidade não tem razão de ser, considerando ademais o disposto nos arts. 19.°, n. 3, e 20.°, n. 1, do Código de Processo Penal, não tendo assim tido lugar qualquer incompetência territorial. (…)”.
E também no douto parecer nesse apenso elaborado pelo Exmo. Procurador Geral Adjunto nesse mesmo recurso que conclui igualmente pela aplicabilidade da lei penal Portuguesa e pela competência dos Tribunais Portugueses.
Temos pois, que embora invocando igualmente o disposto no art. 110º da convenção sobre o Direito do mar o Ministério Publico invocou também as diligências efetuadas ao abrigo do disposto no art. 17º da convenção de Viena contra o Tráfico ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, e outros normativos legais.
Mas, mais importante é que, independentemente dos argumentos invocados, o Ministério Público sempre defendeu a legalidade da intervenção da Marinha Portuguesa junto da embarcação, a aplicabilidade da lei Portuguesa aos factos em apreço, bem como a validade dos subsequentes atos processuais praticados, tendo, aliás, deduzido acusação Pública onde imputa aos arguidos a factualidade entendida pertinente e onde qualifica os respetivos factos, partindo, precisamente da posição que assumiu nos autos de que o Estado Português estava legitimado para intervir.
Assim, porque na situação presente inexistiu qualquer oscilação em sentido contrário por parte do Ministério Publico relativamente à sua pretensão de tutela judicial, não ocorreu qualquer violação do princípio da lealdade, no sentido preconizado pelo acórdão de fixação de Jurisprudência nº 2/2011 de 16.12.2011, pelo que improcede a pretensão do recorrente de – com este argumento - obter a rejeição do recurso.
II.–1.3-Da competência internacional do Tribunal recorrido - do cumprimento do disposto no art. 17º da Convenção de Viena relativa ao tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.
Alega o Ministério Público a competência dos Tribunais portugueses e em concreto do Tribunal recorrido para conhecer dos presentes autos com a invocação de que foi dado cumprimento ao disposto no art. 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e substâncias psicotrópicas, aberta para assinatura em 21.02.1988, porquanto enviou o pedido para a entidade designada pelo art. 17º. nº 7 da referida convenção e o ... apesar de aí se prever que os Estados respondem sem demora aos pedidos formulados nada fez, não manifestando qualquer vontade de exercer a sua jurisdição preferencial.
Relativamente ao lugar da prática do facto estabelece o art. 7º do Código Penal no seu nº 1 que “ o facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido.
Já no que concerne à aplicabilidade da lei penal Portuguesa estabelece o art. 4º do mesmo Código Penal que “Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados:
a)- Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou
b)- A bordo de navios ou aeronaves portugueses”.
No entanto, este princípio da territorialidade sofre a exceção prevista no art. 49º do DL nº 15/93 de 22.01 - com relevância na situação em apreço uma vez que nos autos se imputava na acusação deduzida nos autos aos arguidos recorrentes, além do mais, a prática de um crime de tráfico de estupefacientes - que estabelece que “Para efeitos do presente diploma, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional:
a)- Quando praticados por estrangeiros, desde que o agente se encontre em Portugal e não seja extraditado;
b)- Quando praticados a bordo de navio contra o qual Portugal tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988.
Tendo em conta os dados constantes dos autos (cf. cota de fls. 50 e 51, fls. 149 e art. 5º da acusação pública que havia sido deduzida nos autos) a embarcação foi localizada pela Marinha Portuguesa nas coordenadas 37.0155N -034.2242O .
Vejamos então se este crime foi ou não cometido em território português.
O art. 5º da Constituição da República Portuguesa sob a epígrafe (Território) define no seguinte:
“1.- Portugal abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos ... e da Madeira.
2.- A lei define a extensão e o limite das águas territoriais, a zona económica exclusiva e os direitos de Portugal aos fundos marinhos contíguos.
3.- O Estado não aliena qualquer parte do território português ou os direitos de soberania que sobre ele exerce, sem prejuízo de rectificação de fronteiras.”
Considerando as coordenadas acima referidas concluímos que a abordagem foi efetuada como efetivamente se afirma no despacho recorrido na Zona Económica Exclusiva – de ora em diante identificada como ZEE - (art. 55º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (de ora em diante CNUDM), assinada em Montego Bay a 10 de dezembro de 1982 e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 60-B/97 e ratificada pelo Presidente da República pelo decreto do Presidente da República nº 60-B/97 de 14 de outubro.
Nesta resolução entendeu Portugal no respetivo art. 2º formular as seguintes declarações relativas à mencionada convenção constando do parágrafo terceiro do referido artigo 2º o seguinte:
“3)- De acordo com as disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, Portugal goza de direitos soberanos e de jurisdição sobre uma zona económica exclusiva de 200 milhas marítimas contadas desde a linha de base a partir da qual se mede a largura do mar territorial;”
Com relevo para a questão em apreço importa ainda chamar à colação o disposto do DL 42/2003 de 2 de Março e que criou o Sistema de Autoridade Marítima (SAM), em cujo preambulo se realça: “As novas realidades e os novos desafios que se apresentam à segurança marítima, acompanhados pela evolução da regulamentação técnica internacional, comunitária e nacional, fizeram incidir a atenção dos Estados em matéria de segurança marítima, em geral, e de protecção do ecossistema marinho, em particular. Estas circunstâncias determinaram, ao longo do tempo, a necessidade de aperfeiçoamento e desenvolvimento dos conhecimentos e competências técnicas dirigidas, prioritariamente, ao combate à criminalidade por via marítima e ao tráfico de estupefacientes, à salvaguarda da vida humana no mar e à defesa e preservação do meio marinho.
E no respetivo art. 4º se estabelece – em consonância com o disposto no art. 5º da Constituição da República Portuguesa – sob a epígrafe “Espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional” o seguinte:
“1- Para efeitos do disposto no presente diploma, consideram-se «espaços marítimos sob soberania nacional» as águas interiores, o mar territorial e a plataforma continental.
2- A Zona Económica Exclusiva (ZEE) é considerada espaço marítimo sob jurisdição nacional, onde se exercem os poderes do Estado no quadro da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.”
E no art. 6º sob a epígrafe “Atribuições” prevê-se que o SAM tem por fim garantir o cumprimento da lei nos espaços marítimos sob jurisdição nacional, no âmbito dos parâmetros de atuação permitidos pelo direito internacional e demais legislação em vigor. E na al. k) do nº 2 deste artigo estabelece-se que
para além de outras que lhe sejam cometidas por lei, “são atribuições do SAM a prevenção e repressão da criminalidade, nomeadamente no que concerne ao combate ao narcotráfico, ao terrorismo e à pirataria”.
Com relevo também o disposto no art. 92º da (Convenção da Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) que estabelece no seu nº 1 que os navios devem navegar sob a bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excecionais previstos em tratados internacionais ou na presente Convenção devem submeter-se, no alto mar, à jurisdição exclusiva desse Estado.
Por fim ainda o disposto no art. 108º da mesma CNUDM que estabelece que “Todos os Estados devem cooperar para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas praticado por navios no alto mar com violação das convenções internacionais.
2- Todo o Estado que tenha motivos sérios para acreditar que um navio arvorando a sua bandeira se dedica ao tráfico ilícito de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas poderá solicitar a cooperação de outros Estados para pôr fim a tal tráfico”.
Partindo destes dados e elementos normativos temos posições divergentes na Jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre se a ZEE deve ou não considerar-se território nacional, para efeitos do exercício da jurisdição penal (art. 4º do Código Penal).
Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e 05.07.200713 defendeu-se que a abordagem efetuada a embarcação na ZEE ocorre ainda em território nacional por se tratar de espaço Marítimo sob Soberania Nacional, e em sentido contrário o Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 08.06.2021 onde se se defende que a ZEE não integra o território nacional, tal como tradicionalmente este é entendido, defendendo que nesta os Estados costeiros exercem soberania e jurisdição nos termos previstos na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, especialmente o nº 1 do seu artº 56º, traduzidas no direito a explorar, gerir e conservar os recursos naturais aí existentes, vivos e não vivos, das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo, incluindo a exploração e aproveitamento dos recursos energéticos renováveis, a partir do vento, das ondas e das correntes marinhas”.
Este parece ser o entendimento a seguir e também o mais coerente com o disposto na Lei nº 34/2006 de 28 de julho e muito concretamente no seu art. 16º.
Seguindo, pois, este último entendimento então cumpre chamar à colação o disposto no art. 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas (de ora em diante designada Convenção de Viena), aprovado pela resolução da Assembleia da República nº 29/91 de 06.09 e ratificada por decreto do Presidente da República nº 45/91 de 06.09, que estabelece o seguinte:
“Tráfico ilícito por mar
1- As Partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar.
2- A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio com o seu pavilhão, ou sem qualquer pavilhão ou matrícula, é utilizado para o tráfico ilícito, pode solicitar auxílio às outras Partes a fim de pôr termo a essa utilização. As Partes assim solicitadas prestam essa assistência no limite dos meios de que dispõem.
3- A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio no uso da liberdade de navegação de acordo com o direito internacional e que arvore o pavilhão ou tenha matrícula de uma outra Parte é utilizado para o tráfico ilícito, pode notificar desse facto o Estado do pavilhão e solicitar a confirmação da matrícula; se esta for confirmada, pode solicitar ao Estado do pavilhão autorização para adoptar as medidas adequadas em relação a esse navio.
4- De acordo com o n.º 3 ou com os tratados em vigor entre as Partes ou com qualquer outro acordo ou protocolo por elas celebrado, o Estado do pavilhão pode autorizar o Estado requerente a, inter alia:
a)- Ter acesso ao navio;
b)- Inspeccionar o navio;
c)- Se se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito, adoptar medidas adequadas em relação ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo.
5-Quando uma medida é adotada de acordo com o presente artigo, as Partes interessadas devem ter devidamente em conta a necessidade de não pôr em perigo a segurança da vida no mar nem do navio ou da carga e de não prejudicar os interesses comerciais e jurídicos do Estado do pavilhão ou de qualquer outro Estado interessado.
6-O Estado do pavilhão pode, em conformidade com as obrigações previstas no n.º 1 do presente artigo, subordinar a sua autorização a condições que sejam acordadas entre o referido Estado e a Parte requerente, incluindo condições relativas à responsabilidade.
7-Para os efeitos dos n.os 3 e 4 do presente artigo, as Partes respondem sem demora aos pedidos de outras Partes com vista a determinar se um navio arvorando o seu pavilhão está autorizado a fazê-lo, assim como aos pedidos de autorização formulados nos termos do n.º 3. Cada Estado designa, no momento em que se tornar Parte da presente Convenção, a autoridade ou, se for caso disso, as autoridades encarregadas de receber e de responder a esses pedidos. Essa designação será notificada pelo Secretário-Geral a todas as outras Partes no mês seguinte ao da designação.
8-A Parte que tiver adoptado qualquer das medidas previstas no presente artigo informa de imediato o Estado do pavilhão dos resultados dessa medida.
9-As Partes devem considerar a possibilidade de celebrar acordos ou protocolos bilaterais ou regionais com vista a dar aplicação às disposições do presente artigo ou a reforçar a sua eficácia.
10-As medidas adoptadas nos termos do n.º 4 do presente artigo só são aplicáveis por navios de guerra ou aeronaves militares ou quaisquer outros navios ou aeronaves devidamente assinalados e indentificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e autorizados para esse fim.
11-Qualquer medida adoptada nos termos do presente artigo terá devidamente em conta a necessidade de não interferir nos direitos e obrigações dos Estados costeiros ou no exercício da respectiva competência, de acordo com o direito internacional do mar, nem de afectar esses direitos, obrigações ou competências”.
Defendeu o Mmº juiz de instrução que o cumprimento do disposto no art. 17º desta convenção não se basta com o pedido de solicitação do Estado requerente, não bastando o silêncio, falta de resposta para a intervenção. Afirmando ainda “No caso dos autos, sabendo-se que a tomada de medidas ao abrigo do cit. art. 17º da Convenção de Viena carece de autorização do Estado do pavilhão - independentemente de a autoridade concreta do Estado ... competente constar, ou não, da atualização da listagem de contactos pública para o efeito [noto que a própria autoridade convocada inicialmente esclareceu, no dia ........2022 (portanto, em momento anterior ao da abordagem da embarcação pela Marinha de Guerra), não ser competente/ autorizada para dar seguimento à solicitação no âmbito do art. 17º da Convenção (cabendo essa designação, exclusivamente, a cada Estado Parte – cfr. segunda parte do art. 17º/ 7 da Convenção de Viena)] –, e que essa autorização não foi concedida, a vexata quaestio consiste em saber se a intervenção das autoridades portugueses, ainda assim, está legitimada, ou não, por outra(s) norma(s) legal(ais).”
Vejamos então a tramitação desencadeada pelas autoridades Portuguesas com vista ao cumprimento do disposto no art. 17º da citada Convenção de Viena.
- em ........2022, as autoridades policiais portuguesas têm conhecimento da forte suspeita do transporte de substâncias estupefacientes por um veleiro do tipo catamarã, denominado ..., que ostenta o pavilhão da ..., vindo de algures da ... e de regresso à ..., e que estaria próximo dos Açores (fls. 1), e de características melhor assinaladas na informação descritiva e fotográfica a fls. 5-6;
- em ........2022, o OPC (Polícia Judiciária) sinaliza internamente a necessidade de realização de busca à embarcação ... (fls. 2-4), o que é proposto ao Ministério Público (fls. 8-10);
- em ........2022, pelas 16h40m o OPC dirige às autoridades ... e muito concretamente ... - por telecópia, o pedido de autorização de intervenção das autoridades portuguesas ao abrigo do art. 17º da Convenção de Viena, identificando cabalmente a embarcação (fls. 23-24), que, não foi recebido por a comunicação ter sido recusada segundo transparece da informação de fls. 25 por o respetivo dispositivo recetor ter a memória cheia o que impediu o recebimento da mensagem em causa, o mesmo tendo ocorrido na tentativa de envio de nova mensagem pelas 16h47m do mesmo dia ........2022 e pelas 10.14, 11.14, 11.18, 11.21 e 11.28 do dia ........2022.
É então enviado a ........2022 pelas 11h25m um email ao cuidado de “Deputy Commander in Chief of the ... Col. Pioetr STASIAK” ao qual é dada resposta nesse mesmo dia ... de ... de 2022, pelas 14h40m as autoridades ... confirmando que a embarcação está registada na ... e que o dono da mesma é um cidadão …, mais concretamente o arguido AA (cf. fls. 29).
Nesse mesmo documento refere que o “...” não é a autoridade com autorização para autorizar as atividades requeridas (fls. 29).
A ........2022 as autoridades ... respondem, novamente reiterando que não são a autoridade competente/autorizada para dar seguimento ao solicitado no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena (fls. 31 e 32).
Nesse mesmo dia pelas 14h23m informam que o ... não é a autoridade competente e que essa autoridade seria o ... a quem foi emitido idêntico pedido, sem que tivesse sido obtida qualquer resposta (fls. 38).
Cumpre relembrar que nos termos do disposto no nº 7 do art. 17º da Convenção de Viena, cabe ao Estado designar no momento em que se torna parte da convenção a autoridade ou autoridades encarregadas de receber e de responder a esses pedidos, essa designação é notificada a todas as partes no mês seguinte ao da notificação.
Ora, de acordo o Diretório das Autoridades Nacionais Competentes no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena contra o Tráfico de Produtos Estupefacientes e outras Substâncias Psicotrópicas (CNA), em vigor à data dos factos em apreço consta, relativamente à ...:
“Article 17.7 of 1988 Drug Convention (Illicit traffic by sea of narcotic drugs), Article 13.2 of UNTOC Protocol (Trafficking in firearms)
National Police Headquarters
Central Bureau of Investigation - Drug Division



Phone: ...
Fax: (48) ...
Languages: English
Office hours: 08:15 - 16:15, GMT +1
CONTENT OF REQUESTS
Name of the ship, routetime of arrival to …, kindquantity of drugs, personal particulars of individuals involvedname of requesting agency.”
(CF. ww.-----.---/---------/--------/.....-------./...-....-2...-...-.2_-.pdf - ..k - ....-..-..).
Isto é, o Estado português dirigiu o pedido à autoridade que nos termos do art. 17º, nº 7 da Convenção de Viena havia sido indicada pela ..., como sendo a Autoridade Competente na matéria.
É certo que em emails subsequente, face à insistência do Estado português veio a ... a referir que o Ministério da Justiça não seria também competente para o efeito e que o seria o Gabinete da Cooperação Internacional do Ministério da Saúde ..., que interpelado nada disse.
Ora, tendo a ... assinado a Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, sem reservas ou declarações e tendo indicado nos termos do nº 7 determinada autoridade como sendo a competente para os efeitos do art. 17º da mesma convenção, não pode pretender que eventual designação que tenha feito internamente e que não haja sido comunicada a todas as outras partes pelo Secretário-Geral, como foi o caso, seja operante.
Na verdade, de acordo com as informações conhecidas das autoridades portuguesas e constantes do UNDOC ( United Nations Office of DrugsCrime Directory of Comptent National Authorities - CNA) não havia conhecimento para as restantes partes contratantes dessas alegadas mudanças, desconhecendo-se até se o referido Gabinete de Cooperação Internacional do Ministério da Saúde ... havia ou não aceitado tais competências, sendo certo que não constava do referido diretório como autoridade competente e não havia sido comunicada como tal ou, pelo menos, não havia ainda sido comunicado às restantes partes contratantes, e, assim, não pode assacar-se-lhe qualquer legitimidade para autorizar ou negar o que quer que seja no âmbito do art. 17º da Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Produtos Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas.
Deste modo, temos que a ..., enquanto Estado de bandeira, não cumpriu as suas obrigações convencionais, como, aliás, lhe era imposto pelo art. 94º nº 1 e nº 7 parte final da CNUDM, e pelo art. 108º da mesma convenção que lhe impunha o dever de cooperação no combate ao tráfico internacional de drogas cometido no mar.
A posição das autoridades ... de afirmar que a autoridade quer consta do Diretório CNA da UNDOC não é competente e a mera indicação de outras entidades que não constam como tendo sido comunicadas ao Secretário- Geral e notificadas às restantes partes contratantes, e o subsequente silêncio, fazem com que o pedido ou a notificação da ... para os procedimentos previstos no art. 17º da dita convenção esbarre em razões de ordem interna, não permitindo que as autoridades Portuguesas possam efetivamente requerer a autorização a quem de Direito – ,bem como a de cumprir o dever a que se obrigou, por via do art. 3º, nº 1 al. c) ponto iv) da Convenção de Viena e o art. 5º, nº 2 do Código Penal.
Isto é, quem incumpriu a convenção de Viena foi a ... que tinha obrigação de autorizar ou não os atos pretendidos pelas autoridades Portuguesas. Ora, tendo em conta as respostas que foram sendo obtidas quanto à incompetência das autoridades constantes do Diretório CNA da UNDOC e, por fim, a completa ausência de resposta da ultima entidade indicada (até hoje não resulta dos autos qualquer resposta) temos que entender que a ... se desinteressou de exercer qualquer jurisdição sobre a embarcação em causa, pelo que nada mais restava às autoridades portuguesas do que atuar, como efetivamente o fizeram, dando cumprimento além do mais ao disposto no art. 108º da CNUDM.
Como refere o Ministério Público no recurso apresentado esta tem sido a posição que em subsequentes acordos vem sendo tomada ali se salientando entre outros o acordo do Conselho da Europa “Agreement on illicit Traffic by sea, implementing Article 17 of the United Nations against Illicit Traffic inn Narcotic DrugsPsychotropic Substances”, designadamente os seus arts. 7º, 13º e 14º que apontam precisamente no sentido da ausência de resposta do Estado Pavilhão em determinado prazo implica a renúncia ao exercício da jurisdição preferencial do Estado do pavilhão.
Neste sentido ainda Marta Chantal Ribeiro, 14 quando escreve “requer-se igualmente diligência - o cumprimento do “dever fazer” – ao Estado do pavilhão, na obrigação que lhe é imposta de responder sem demora aos pedidos dos outros Estados, o que pressupõe o cumprimento do dever prévio de designar a autoridade ou autoridades encarregadas de receber e responder pronta e eficazmente a tais pedidos (art. 17º, nº 7 da CV88, a indiferença ou inércia do Estado do pavilhão face ao que lhe é exigido, materializadas no silêncio deverão ser equivalentes a uma autorização tácita à intervenção a bordo e renúncia tácita ao exercício da jurisdição preferencial”.
Deste modo, cremos que as operações da Marinha de Guerra portuguesa na abordagem da embarcação ... e poderes de visita, inspeção medidas cautelares e medidas de polícia subsequente são legitimas, pois que exercidas no âmbito de competência própria para a prevenção e repressão do Narcotráfico na ZEE (art. 1º e 6º, nº 2 al. k) do DL 43/2002 de 2 de março, já acima referido) e a intervenção do Estado português respeita o disposto no art. 5º, nº 2 do Código Penal e 49º do DL 15/93 de 22 de janeiro e o art. 6º do DL 43/2002 de 02.03 e 18º al. b), 19º e 20º da Lei nº 34/2006 de 28.07 e 108º da CNUDM.
E não se vislumbra que esta posição que aqui adotamos constitua uma qualquer violação do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, pois tendo o ... incumprido as suas obrigações convencionais e inexistindo à data uma autoridade responsável nos termos do disposto no nº 7 do art. 17º da Convenção de Viena contra o Tráfico de Produtos Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas (pois que a autoridade constante do Diretório se arrogava incompetente) e mantendo posterior silêncio face à legitimas interpelações que lhe foram feitas - não pode essa Convenção incumprida pelo Estado de bandeira ser o sustentáculo de uma incompetência do Estado Português.
Não se entende também que a posição assumida da competência nos termos exarados viole o disposto no art. 2º, 18º e 203º da Constituição da República, pois que não ocorreu qualquer violação da força jurídica dos preceitos constitucionais em matéria de direitos liberdades e garantias ou da independência dos Tribunais. Da mesma forma a posição ora defendida, relativamente à atuação do ... e do assumir da competência pelo Estado Português, não é também violadora dos arts 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa, isto é do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva e das garantias de defesa do arguido ou do art. 6º nº 1 da CEDH isto é do direito a um processo equitativo, ou ainda do 8º da CEDH, do direito ao respeito pela vida privada e familiar, na medida em que uma eventual violação de normas internacionais seria uma questão a resolver entre os Estados - no caso Portugal e a ..., e não teria consequência ao nível da aplicação das normas internas portuguesas que regem a competência para a aplicação da lei penal e que a atribuam ao Estado português, como é o caso.
Como bem se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, relatado pelo Sr. Desembargador Manuel Advínculo Sequeira “E sempre se dirá que a nulidade da prova obtida por métodos proibidos (artº 126º do Código de Processo Penal) tem como finalidade muito clara a protecção de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, particularmente os suspeitos ou acusados em processo criminal, como bem resulta da sua fonte constitucional, o nº 8 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.”
Ora, as normas daquele artº 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, no que respeita à autorização a conceder, ou não, para procedimento em navio seu por outro estado, visa proteger a soberania dos estados de pavilhão sobre os respectivos navios, ainda que na óptica do combate ao tráfico de estupefacientes, para a afirmar plenamente, por exemplo, na pretensão de ser o estado de bandeira a exercer a acção penal, ou por se tratar de entrega de droga controlada pelo mesmo.
A prova assim obtida nunca seria nula. Quando muito, a falta de autorização conduziria a diferendo entre estados, a dirimir pelos meios próprios, também previstos na mesma convenção.
Não há pois qualquer prova inválida a este propósito”.
Será, pois, de revogar, neste segmento, o despacho recorrido e considerar que a busca realizada no ... a ........2023 não ocorreu com violação absoluta das regras de obtenção e produção de prova e é, sob esta perspetiva, válida.
II.–1.4-Da violação do disposto no art. 17º, 283º/1 e 2 e 308º do Código de Processo Penal.
Neste contexto vem ainda o Ministério Publico invocar a violação do disposto nos arts. 17º, 283º/1 e 2 e 308º do Código de Processo Penal.
Entende o Ministério Público que o Mmº Juiz de instrução extravasou as suas competências quando afirmou que não poderia valorar uma conversa informal havida entre o OPC e os tripulantes (ora arguidos) acerca do destino do ... (e muito concretamente que se dirigia à Região Autónoma dos Açores), por esta não ter validade em julgamento.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.05.2018: As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva, nesta fase processual a lei «… não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.» Ou seja, «Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação.». Cfr. “Curso de Processo Penal” , Editorial Verbo, 1994, vol. III , páginas 179 a 182 .
Não pode olvidar-se que a análise da prova em instrução é diferente daquela que é efetuada em audiência de julgamento.
A título de exemplo o Juiz de Instrução analisa os depoimentos prestados em inquérito e na fase de julgamento estes apenas poderão ser valorados em determinadas circunstâncias (nomeadamente no âmbito da leitura que deles nos termos do art. 356º, nº 2 e 3 do Código de Processo Penal possa ser efetuada).
Verificando os autos vemos que deles resulta a fls. 5 que na Informação proveniente da “Maritime AnalysisOperations Centre (Narcotics)”[MAOC(N)] consta que “de acordo com informação veiculada no seio do MAOC (N), foi assinalada uma embarcação tipo catamarã, Klara, a efetuar a travessia transatlântica em direção a Portugal.”
Mais constando que “segundo informação partilhada pelos parceiros MAOC-N, esta embarcação deverá chegar na próxima semana perto da zona dos Açores”.
Consta depois a fls. 150 que “Em conversa informal mantida com os tripulantes” (…) “ referiram estar, de momento, rumo ao arquipélago dos Açores, não tendo , no entanto especificado a que ilha se dirigiam.”
Defendeu o Mmo. Juiz de instrução que não poderia valorar tais declarações por estas não serem válidas em julgamento ali escrevendo após concluir que a abordagem da Marinha Portuguesa não havia sido lícita “Impõe-se, pois, a conclusão pela violação absoluta de regras de obtenção e produção de prova que conduziram à realização da busca, que, assim, padece de nulidade (art. 122º/ 1 e 3 do CPP), tornando proibida a prova dali resultante (a violação daquelas regras determina a reafirmação contrafáctica através da proibição de valoração), precisamente porque teve lugar em sequência de uma abordagem ilegal à embarcação, ou, mesmo que assim não se considerasse, de medidas de condução da embarcação, com a carga e os tripulantes a bordo, ao porto de ... não consentidas por Lei, ofendendo a soberania do Estado do Pavilhão, e não é cogitável que pudesse ter sido levada a efeito noutras circunstâncias [noto que inexiste nos autos qualquer evidência de que embarcação se dirigia a território nacional, mormente à Região Autónoma dos ... (apenas é feita uma referência neste sentido nas informações do OPC, em “conversa informal mantida com os tripulantes” (fls. 150), insuscetível de valoração em sede de julgamento – cfr. art. 356º/ 7 do CPP)].
Cumpre em primeira linha referir que da informação da [MAOC(N)] constava que a embarcação ... se dirigia a Portugal (cf. as referidas fls. 5), elemento que não foi obtido a partir de quaisquer declarações dos tripulantes.
Acresce que nem todas as declarações prestadas pelos suspeitos perante os OPC, denominadas de conversas informais, serão sem mais um meio de prova nulo.
Veja-se a título de exemplo o Acórdão do TRE de 04.06.2013, ou ainda o Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 22.06.201715 onde se escreve: “II- As forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser constituídos arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, desde que não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição. E, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que qualquer declaração daquele que já deveria ter sido constituído como arguido não pode ser utilizada como prova.
III-Face ao ordenamento português, o simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido. Se ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiam dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.
IV-Por isso a proibição de “conversas informais” só deve abranger afirmações posteriores à constituição de arguido e nunca antes da sua constituição pois ai nem existem propriamente “conversas informais”, mas sim afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso. E este é, no ordenamento processual penal português, uma testemunha.
V-Assim, a questão centra-se, no caso de situações de fronteira, na distinção a fazer entre as figuras de “suspeito” e “arguido”. Este goza de direitos, aquele é testemunha. O arguido goza do direito ao silêncio, o suspeito não.
VI- Logo a constituição formal de arguido constitui a “linha de fronteira” da admissibilidade da reprodução em audiência de julgamento das ditas “conversas informais”, sendo que a partir daquele momento as declarações só têm valor de prova quando prestadas em atos mencionados na lei, considerando-se sem carácter probatório todas as demais provas que foram recolhidas informalmente, em conversas ou em atos sem previsão ou legitimação legal.
VII-As afirmações produzidas nesta fase preliminar por qualquer pessoa abordada no decurso de operação policial, seja ela, suspeito ou potencial testemunha do crime, não traduzem “declarações” strictu sensu para efeitos processuais, já que não existe, ainda, verdadeiramente um processo penal a correr os seus termos. São diligências de aquisição e conservação de prova, lícitas, dada a sua conformidade com o comando legal prescrito no art. 249º do CPP, não sendo, por isso, proibido o seu relato em audiência”.
Mas independentemente da questão da sua validade/nulidade em julgamento o certo é que o Meritíssimo Juiz de instrução não está ainda nessa fase e desconhece que posição vão os arguidos assumir na mesma, o que além do mais poderá ser relevante, mesmo na perspetiva de quem – como o Mmº Juiz a quo – considera nulas tais declarações.
Assim, parece-nos que efetivamente o Mmº juiz terá feito um juízo que extravasa o âmbito do que se lhe é pedido na fase de instrução.
De todo o modo, sempre se dirá que esta questão, em face da posição que acima assumimos se mostra ultrapassada, verificando-se, além do mais, que os tripulantes do ... não se opuseram a serem acompanhados sob escolta até à ilha de ..., tendo conduzido a embarcação até esse destino.
II.–1.5-Da nulidade insanável da busca à embarcação porque realizada sem a presença de defensor – art. 64º, nº 1 al. d) e 119º, al. c) ambos do Código de Processo Penal.
No despacho recorrido conclui o Mmª Juiz de Instrução que “ademais a busca à embarcação teve lugar sem a presença de defensor que, no caso, é obrigatória em razão do desconhecimento pelos coarguidos da língua portuguesa, dado de facto este facilmente percetível às autoridades policiais (art. 64º/1/d)do CPP), consubstanciando uma nulidade insanável (art. 119º/c)do Código de Processo Penal e tendo aquele efeito de imprestabilidade da prova”.
O artigo 64.º, nº 1, alínea d), do CPP, estabelece que “É obrigatória a assistência do defensor em qualquer ato processual, à exceição da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída”.
Na situação em apreço nos autos a busca teve lugar a ........2022, em cumprimento do mandado de busca emitido pelo Mmª Juiz de instrução Criminal do TCIC de Lisboa.
Tal iniciou-se pelas 10h30m e teve o seu termo pelas 19 horas, tendo os arguido sido detidos pelas 12 horas quando foi verificada a existência de estupefaciente tendo prestado o respetivo TIR respetivamente o arguido AA pelas 14h20m e pelas 16h20m o arguido BB.
Vemos pois que a busca começou em momento em que os ora arguidos eram apenas suspeitos, tendo prosseguido já após a sua constituição nessa qualidade.
Nos termos do disposto no art. 176º do Código de Processo Penal “Antes de se proceder a busca, é entregue, salvo nos casos do n.º 5 do artigo 174.º, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga.
2- Faltando as pessoas referidas no número anterior, a cópia é, sempre que possível, entregue a um parente, a um vizinho, ao porteiro ou a alguém que o substitua.
3- Juntamente com a busca ou durante ela pode proceder-se a revista de pessoas que se encontrem no lugar, se quem ordenar ou efetuar a busca tiver razões para presumir que se verificam os pressupostos do n.º 1 do artigo 174.º Pode igualmente proceder-se como se dispõe no artigo 173.º”
Vejamos então:
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.10.201916 “ O Código de Processo Penal permite e realização de revistas de suspeitos e buscas nos locais onde se encontrem, mesmo antes da abertura do inquérito, sem estarem autorizadas ou ordenadas pela autoridade competente, quando seja iminente a fuga e haja fundada razão para crer que neles se ocultam objetos relacionados com o crime ou suscetíveis de servirem de prova e que de outra forma poderiam perder-se.
II- Podem ter lugar mesmo antes de ser aberto um inquérito, o que exclui a sua natureza de ato processual.
III- Não tendo a busca a natureza de ato processual, torna inaplicável a exigência de assistência por defensor no decurso da realização de uma busca domiciliária, nessas circunstâncias.
IV- Igualmente não se exige a nomeação de defensor a arguido estrangeiro, que não domine a língua portuguesa, nessa diligência”.
Aí se argumenta” o arguido não questiona a legalidade da busca, na perspetiva de quem a ordenou ou realizou, mas da nulidade do ato processual que, no seu entender, integra a busca, da qual resultaram meios de obtenção de prova e, sendo o arguido estrangeiro e desconhecedor da língua portuguesa, sem que se mostrasse assistido no ato por defensor, nem por intérprete, entende que foi violada a exigência formal obrigatória enunciada nos artigos 92º, n.º 2 (quanto à exigência de intérprete) e 64º, n.º 1, alínea c), (relativo à obrigatoriedade de assistência por defensor), ambos do Código de Processo Penal.
No entanto, contrariamente à tese do recorrente, as formalidades da busca domiciliária encontram-se tipificadas nos artigos 176º e 177º do Código de Processo Penal, não constando das mesmas a exigência de assistência por defensor, nem de intérprete.
Uma busca domiciliária não configura um ato processual, tanto mais que a lei processual penal é clara ao admitir as diligências de revista e busca efetuadas por órgão de polícia criminal, enquanto medidas cautelares urgentes admitidas no artigo 251.º, n.º 1, alínea a) do Código Processo Penal, que permite a realização de revistas de suspeitos e buscas nos locais onde se encontrem, mesmo antes da abertura do inquérito, sem estarem autorizadas ou ordenadas pela autoridade competente, quando seja iminente a fuga e haja fundada razão para crer que neles se ocultam objetos relacionados com o crime ou suscetíveis de servirem de prova e que de outra forma poderiam perder-se. Podendo ter lugar antes mesmo de ser aberto um inquérito, tal exclui a sua natureza de ato processual que, por definição, pressupõe um processo.
Não tendo a busca a natureza de “ato processual”, tal conclusão torna inaplicável a exigência de assistência por defensor no decurso da realização de uma busca domiciliária, por não se verificar o pressuposto enunciado “ab initio” na alínea d) do nº 1 do artigo 64º do Código de Processo Penal.
A lei processual penal apenas prevê a possibilidade de nomeação de defensor ao arguido, a pedido do tribunal ou do arguido (artigo 64º, nº 2, do Código de Processo Penal), sempre que as conveniências do caso revelarem a necessidade ou a conveniência do arguido ser assistido – o que não sucedeu no caso em apreço -.
(…)
Não havendo lugar a qualquer intervenção processual do arguido recorrente no decurso da efetivação da busca, percebe-se, imediatamente, a razão pela qual a lei processual penal não exige a presença de defensor, nem de intérprete, podendo o arguido exercer o contraditório em relação à efetivação da busca, já assistido por defensor e intérprete, no decurso do primeiro interrogatório judicial – tal como o fez “.
Também neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.12.2017 e deste Tribunal da Relação de Lisboa de 15.06.202117.
Em idêntico sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.02.201918 onde se escreve: “No que toca à nomeação de intérprete não pode haver equívoco: decorre expressamente do art. 120º nº 2 al. c) do CPP que só há nulidade quando falte nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considerar obrigatória. Ora, nos termos do art. 92º nº 2 do CPP só se nomeia intérprete quando o arguido, desconhecedor da língua portuguesa, houver de intervir no processo. Pois bem, evidentemente que na realização de buscas e apreensões realizadas em cumprimento de mandados do juiz de instrução e de magistrado do Ministério Público o arguido não tem qualquer intervenção, nem tem de ter intervenção. As buscas fundadas em mandados de magistrado realizam-se, naturalmente, à revelia e independentemente de qualquer vontade, declaração, ato ou intervenção do arguido. E, em decorrência, não é obrigatória a nomeação de qualquer intérprete.
(…)
O que se disse supra vale, mutatis mutandis, para a obrigatoriedade de assistência por defensor durante as buscas realizadas. E assim porque a norma do art. 64º nº 1 al. d) do CPP —É obrigatória a assistência do defensor (...) em qualquer acto processual (...) sempre que o arguido for (...) desconhecedor da língua portuguesa (...)— só pode ser interpretada no sentido de que a assistência de defensor ao arguido que não fala português é obrigatória nos atos processuais em que o arguido deva ter intervenção[6]. Uma vez que, como se disse já, as buscas sustentadas em mandados são atos processuais independentes de qualquer intervenção do visado ou do arguido (antes se realizam à sua revelia e independentemente da sua vontade ou qualquer participação), evidentemente que inexiste qualquer obrigatoriedade processual de, no seu decurso, haver assistência por defensor.
E contra o que acaba de dizer-se não convence o disposto no art. 176º do CPP (formalidades da busca), quando dispõe que antes de se proceder a busca é entregue, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga. Desde logo, aquela norma não impõe a obrigatoriedade de comparência de defensor (exigência que é conditio sine qua non da nulidade prevista no art. 119º al. c) do CPP).
Concordamos com o entendimento preconizado nestes doutos acórdãos e, consequentemente, entendemos que a busca levada a cabo na embarcação ... (em execução dos mandados de buscas emitidos pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa que avaliou e decidiu pela verificação dos respetivos pressupostos), não tendo a natureza de ato processual “qua tale”, pois que nela não é demandada a intervenção processual do arguido e consequentemente não exige a assistência por defensor, “por não se verificar o pressuposto enunciado “ab initio” na alínea d) do nº 1 do artigo 64º do Código de Processo Penal”.19
Invoca ainda o Mmº Juiz de Instrução o estabelecido na Diretiva 2013/48/EU do Parlamento e do Conselho de 22 de outubro 2013 e nomeadamente do disposto no art. 3º nº 1 e 2 al. c) da mesma diretiva que prevê:
“1.–Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos e acusados tenham direito de acesso a um advogado em tempo útil e de forma a permitir-lhes exercer de forma efetiva os seus direitos de defesa. 2. Os suspeitos e acusados devem ter acesso a um advogado sem demora injustificada. Em qualquer caso, os suspeitos ou acusados devem ter acesso a um advogado a partir dos seguintes momentos, conforme o que ocorrer primeiro:
a)- Antes de serem interrogados pela polícia ou por qualquer outra autoridade judicial ou de aplicação da lei;
b)- (…)
c)- Sem demora injustificada, após a privação de liberdade.”
A Diretiva invocada pelo tribunal recorrido foi transposta através da Lei nº 52/2023 de 28, que relativamente à questão em apreço, isto é, à nomeação de defensor introduziu a seguinte alteração ao nº 5 do art. 58º do Código de Processo Penal.
Previa-se antes da entrada em vigor desta nova redação: “5- A constituição de arguido implica a entrega, sempre que possível no próprio acto, de documento de que constem a identificação do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º”, passando agora a ter a seguinte redação “5- A constituição de arguido implica a entrega, sempre que possível no próprio ato ou sem demora injustificada, de documento de que constem a identificação do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º” (sublinhado e negrito nosso).
Defende o Mmº Juiz a quo que esta expressão sem demora injustificada, implicaria a imediata nomeação aos arguidos de defensor no momento em que estes foram detidos e não apenas no dia ..., entendendo que essa nomeação apenas a 8 de agosto inquina a busca efetuada.
Como acima já deixamos expresso é nosso entendimento que as formalidades da busca não impõem a presença de defensor, e não é a circunstância de ter ocorrido entretanto a detenção dos arguidos que tornará a presença de defensor uma exigência para a sua concretização.
Cumpre ainda fazer notar, que salvo melhor opinião, o Mmº Juiz a quo interpreta a expressão “sem demora injustificada” com o significando de imediatamente, pois só assim se compreende que afirme que, por via do estabelecido na Diretiva em apreço e agora no nº 5 do art. 58º do Código de Processo Penal, a busca deveria ter sido sustada, quando os arguidos foram detidos a fim de assegurar a presença de defensor na mesma.
Cumpre ainda salientar que a detenção dos arguidos ocorreu pelas 12 horas do dia ........2022, sábado, e que efetivamente a nomeação de defensor apenas ocorreu no dia ........2023, isto é na segunda-feira seguinte, mas sempre antes de qualquer um dos arguidos ter sido presente a primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
Aos arguidos porque cidadãos … e aparentemente desconhecedores da língua portuguesa foram comunicados os respetivos direitos e deveres (previstos no art. 61º do Código de Processo Penal) aquando da sua constituição como arguido na sua língua materna (cf. 54 e 55 e 58 e 59 dos autos) na qual se fez constar expressamente o direito de constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor oficioso e a sua detenção foi devidamente comunicada à embaixada do … em Lisboa (como consta de fls. 174)
Acresce que, como consta de fls. 170 aos arguidos foi-lhes dada a possibilidade de contactarem um familiar ou pessoa de sua confiança, por forma a comunicar a sua situação de detidos e ambos optaram por o fazer após serem presentes a interrogatório judicial.
Ora, não sendo a nomeação de defensor obrigatória para a realização da busca cremos que a circunstância de não ter sido de imediato nomeado um ilustre defensor, após a detenção dos arguidos, mas apenas na segunda-feira-seguinte, a determinação da Mmª Juiz de Instrução (fls. 198), em nada afeta a aludida busca, que aliás já se tinha iniciado em momento prévio à sua constituição como tal.
Na verdade, a expressão “sem demora injustificada” não tem o sentido de imediatamente, e, no caso, dado ter sido operada a nomeação dentro do prazo previsto no art. 254º do Código de Processo Penal, e tendo em conta que o dia 6 se tratou de um sábado, não vemos que tenha havido demora injustificada, e consequentemente qualquer nulidade e muito menos insanável, sendo certo que, nunca essa demora teria como consequência tornar inválida uma busca ordenada por Juiz de Instrução Criminal como acima se referiu.
Deste modo, impõe-se igualmente revogar o despacho recorrido neste segmento e consequentemente ter por válida a busca realizada à embarcação ... na execução dos mandados de detenção emitidos pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal do TCIC, quer não está abrangida por qualquer nulidade insanável, sendo válida e, consequentemente, válidas também as apreensões e os seguintes elementos elencados na acusação, como sejam o auto de pesagem e despistagem e o relatório pericial de toxicologia, a planta e o relatório de exame à embarcação, a reportagem fotográfica de bens apreendidos a cópia dos passaportes dos arguidos, o auto de detenção em flagrante delito a guia de depósito de objetos e o relatório dos aparelhos apreendidos.
Assim, a consequência será a devolução dos autos à primeira instância para que no pressuposto ora estabelecido da validade da abordagem da Marinha Portuguesa à embarcação ... e da subsequente busca levada a cabo no ..., possam ser apreciadas as restantes questões submetidas a apreciação e ponderados os indícios recolhidos e sua suficiência para a comprovação da decisão de acusar efetuada pelo Ministério Público.
No que concerne ao levantamento da apreensão da embarcação ... e seu destino, designadamente a decisão de devolução da mesma aos arguidos esta foi tomada no pressuposto do despacho de não pronúncia proferido.
Deste modo, impondo-se que os autos baixem à 1ª instância para que aí sejam ponderados os indícios recolhidos e tendo em conta que a decisão da sua devolução pelo Mmº Juiz de Instrução resultou da conclusão pela não pronúncia dos arguidos que se mostra agora prejudicada em face da necessidade de nova análise dos elementos de prova disponíveis, mostra-se prejudicado o conhecimento de tal questão.
Havia ainda o arguido AA, requerido que - na hipótese de procedência do recurso do Mº Público -se julgassem procedentes as nulidades arguidas em primeira instância com as legais consequências (conclusão XL e conclusão final)
Em face da decisão ora tomada os autos voltarão à 1ª instância onde deverão ser apreciadas todas as questões suscitadas que porventura tenham ficado prejudicadas pela posição previamente assumida pelo Mmº Juiz de Instrução, cabendo-lhe proferir decisão sobre as nulidades que hajam sido invocadas e não a este Tribunal de 2ª instância, só assim se garantindo o duplo grau de jurisdição que, no caso constitui também garantia de defesa do arguido.

III–Decisório:
Em face de todo o exposto acordam os Juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
1.–Julgar procedente o recurso interposto pelo Mº Público e consequentemente julgar válida e da abordagem da Marinha Portuguesa à embarcação ... e a subsequente busca levada a cabo no ..., e consequentemente válidas também as apreensões e os seguintes elementos elencados na acusação, como sejam o auto de pesagem e despistagem e o relatório pericial de toxicologia, a planta e o relatório de exame à embarcação, a reportagem fotográfica de bens apreendidos a cópia dos passaportes dos arguidos, o auto de detenção em flagrante delito a guia de depósito de objetos e o relatório dos aparelhos apreendidos e, assim, determinar que os autos baixem à 1º Instância para que neste pressuposto posam ser apreciadas as restantes questões submetidas nos requerimentos de abertura de instrução e ponderados os indícios recolhidos e sua suficiência ou não para a comprovação da decisão de acusar efetuada pelo Ministério Público.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 6 de fevereiro de 2024
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
Os Juízes Desembargadores
Sandra Ferreira
Mafalda Sequinho dos Santos
Manuel José Ramos da Fonseca
1.Com solução divergente veja-se o Ac. TRL 206/18.6JELSB.L2-5.
2.Passagem originária de um outro Parecer PGR, o Parecer PGRP00000928
3.Repare-se que este é precisamente um dos thema decidendum que importa aqui dilucidar
4.Referencia, naturalmente, ao princípio da competência universal
5.Dicotomia bem trabalhada no recurso em apreço, “impor” versus “consentir”
6.In Lições de Direito Penal, Verbo, 1987, pág. 30
7.Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
8.Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
9.Disponível in www.dgsi.pt.
10.Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção dos Direitos Humanos, p. 590.
11.ob cit. P. 598.
12.Disponível in www.dgsi.pt.
13.A repressão do tráfico de droga a bordo de embarcações estrangeiras no alto mar: subsídios para a interpretação do dever de resposta “sem demora” do Estado do pavilhão à luz do direito internacional, in Revista do Ministério Público , nº 176, p.73 e ss..
14.Ambos disponíveis in www.dgsi.pt
15.Disponível in www.dgsi.pt.
16.Disponível in www.dgsi.pt..
17.Igualmente disponível in ww.dgsi.pt.
18.Neste Sentido ainda Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, p. 735 e 736, onde se escreve relativamente a busca ordenadas por despacho de Juiz: O despacho judicial pressupõe que já foi ponderada a necessidade da diligência probatória (independentemente da vulnerabilidade do visado ou já sopesando esse facto), não existindo motivos para a assistência.