Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 19-11-2024   Rejeitada a acusação imperfeita, o processo será remetido ao MP, para que este possa, querendo, proceder à reformulação da acusação nos termos do art. 122.º, ex vi do art. 4.º, ambos do CPP.
O efeito do despacho de rejeição da acusação com fundamento em alguma das três primeiras situações a que reporta o n.º 3 do art.º 311.º do CPP, que consiste, no seu conteúdo mínimo, em bloquear a sujeição da lide a julgamento com base no ato processual imperfeito, traduz-se ainda na consequente remessa do processo ao MP para que este possa (querendo) proceder à reformulação da acusação e à sua apresentação para julgamento sem o vício formal que a afetava, após a repetição dos atos processuais posteriores à acusação afetados pela sua rejeição.
Proc. 3/23.7P5LSB.L1 5ª Secção
Desembargadores:  Ester Pacheco do Santos - Alexandra Veiga - -
Sumário elaborado por Carolina Costa
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Processo n.º 3/23.7P5LSB.L1
Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No processo n.º 3/23.7P5LSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 14), a Mma. Juíza proferiu despacho no qual decidiu não receber a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos AAA, BBB, CCC e DDD, e determinou o arquivamento dos autos.
2. Recurso Ministério Público
Inconformado com aquela decisão, veio o Ministério Público interpor o presente
recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1. Os arguidos foram, nestes autos, acusados como “coautores de um crime de ofensa à integridade física no âmbito de espetáculo desportivo ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, p. e p. pelos artigos 14.º, nº 1, 26.º do Código Penal e 33.º, nº 1 da Lei n.° 39/2009, de 30 de julho” tendo ainda sido requerida a aplicação aos mesmos da “pena acessória de interdição de acesso a recintos desportivos, nos termos do disposto na al. a) do n.° 1 do art.° 35 da n.° 39/2009, de 30 de julho.”
2. Aquando do saneamento dos autos foi proferido despacho no qual foi decidido não receber a acusação deduzida por manifestamente infundada “ao abrigo do disposto no art. 311.°, n.°s 2, al. a), e 3, al. c), do Código de Processo Penal”, vez que a mesma não contém as disposições legais aplicáveis.
3. O presente recurso visa o despacho de rejeição da acusação com o qual não concordamos e bem ainda o destino dos autos.
4. Fundamenta a Mma. Juíza a sua decisão do seguinte modo: o art.º 33.º da Lei n.º 39/2009, de 30/07 “é aplicável apenas em conjugação com um dos seguintes artigos do Cód. Penal:
143º; 144º ou 145º. Sucede que nenhum destes consta do enquadramento jurídico-penal constante do despacho de acusação”, motivo pelo qual põe fim aos autos.
5. Uma vez que não houve instrução cabe ao juiz do julgamento o saneamento do processo escrutinando os autos para os efeitos do previsto no art.º 311.º do Código de Processo Penal.
6. O art.º 33.º do Lei n.º 39/2009, de 30/07, dispõe que: “1 - Quem praticar os factos descritos nos artigos 143.º, 144.º e 145.º do Código Penal, no âmbito do espetáculo desportivo, durante a deslocação para ou de espetáculo desportivo ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, é punido com a correspondente pena de prisão agravada em um quarto nos seus limites mínimo e máximo.
7. Assim, esse artigo remete expressamente para os artigos 143.º a 145.º do Código Penal.
8. Fazendo o artigo, o qual foi devidamente indicado na acusação, essa remissão deve entender-se que os referidos dispositivos fazem parte integrante do art.º 33.º da Lei n.º 39/2009, de 30/07), pelo que que nos parece não carecer de expressa indicação dos mesmos na acusação, sobretudo quando, neste caso, atentas as ofensas à integridade física em causa, não cabe especificar qualquer agravante.
9. Importante, é que na acusação seja descrita a ofensa à saúde e ao corpo da pessoa e, caso se verifiquem no caso concreto, as consequências que possam enquadrar-se no art.º 144.º do Código Penal ou as circunstâncias que permitam concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente
10. Uma vez que da acusação constam os elementos essenciais ao tipo e não considerando nós, atenta a expressa remissão do art.º 33.º da denominada Lei n.º 39/2009, de 30/07, que o art.º 143.º do Código Penal tenha de ser indicado na acusação cumulativamente com aquele dispositivo, entendemos não ser de rejeitar a acusação devendo o despacho de rejeição ser substituído por outro que aceite a acusação e determine o prosseguimento dos autos.
11. Todavia, mesmo que assim não fosse e a acusação devesse ser rejeitada, sempre deveria ter sido determinada a devolução da mesma ao Ministério Público.
12. A Mma. Juíza rejeitou a acusação (nos termos do previsto no art.º 311.º, n.º 3 do Código de Processo Penal) e determinou o arquivamento dos presentes autos, ou seja, decidiu a não submissão dos factos descritos na mesma a julgamento, mesmo quando a conduta descrita na acusação preenche os elementos objetivos e subjetivos de um ilícito penal. Ilícito penal que, embora (no entender da Mma. Juíza) de modo deficiente, é o ilícito penal imputado na acusação.
13. De facto, estaríamos, neste caso, quanto muito, perante um mero vício formal da acusação previsto no art.º 311.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal, sendo possível de ser suprido com a renovação do despacho nos termos do art.º 122.º, n.º 2 do mesmo Código.
14. A rejeição de uma acusação pode ter diversos fundamentos conforme resulta das diversas alíneas do art.º 311.º, n.º 3, ou seja, pode a mesma ser considerada manifestamente infundada quando não contenha a identificação do arguido, a narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas que a fundamentam, ou quando os factos elencados não constituam crime.
15. Assim, podem os referidos motivos ser distinguidos entre motivos formais e matérias para a rejeição da acusação.
16. Nas alíneas a) a c) do n.º 3 desse artigo são elencadas causas de rejeição estritamente formais e apenas na hipótese da alínea d) do mesmo número estaríamos perante uma causa material de rejeição (vd. António Latas na anotação ao art.º 311.º, do Código de Processo Penal, in Comentário Judiciário ao Código de Processo Penal, Tomo IV, 2022, fls. 49 e ss).
17. No caso das causas de rejeição estritamente formais não existe motivo para afastar a possibilidade de reformulação da acusação devendo, por isso, a mesma ser devolvida ao Ministério Público para tal fim (neste sentido o mesmo autor citado).
18. De facto, o art.º 311.º do Código de Processo Penal nada dispõe sobre as consequências da rejeição da acusação por infundada nem quanto ao destino dos autos, sendo que, nenhuma das situações previstas no n.º 3 do art.º 311.° do Código de Processo Penal preenche o previsto no art.º 119.º do mesmo diploma.
19. Em conformidade, caso se verifique o preenchimento da previsão do art.º 311.º, n.º 3 alínea c) do Código de Processo Penal, deve a acusação ser devolvida ao Ministério Público para que possa reparar o vício, não devendo um vício meramente formal impedir a sujeição a julgamento dos factos aí descritos, sobretudo quando, como é o caso dos autos, os factos devidamente indiciados e descritos se subsumem a um ilícito penal de natureza pública.
20. Sendo a apreciação prevista no art.º 311.º, n.º 3 alínea c) do Código de Processo Penal uma apreciação sobre a forma, também não pode ser invocado o princípio ne bis in idem para impedir a reformulação da acusação.
21. De facto, a conduta do arguido e os factos descritos na acusação não foram sujeitos a apreciação sobre a existência ou não de ilícito penal, o julgador apenas apreciou a forma da acusação que lhe foi apresentada e apenas se pronunciou sobre os requisitos formais da mesma.
22. Aliás, em situações mais prementes, como seja o caso de falta de articulação de factos tanto a doutrina (veja-se a obra já citada) como o próprio TC têm vindo a entender que os autos devem ser devolvidos ao Ministério Público para que este possa reformular a sua acusação e remeter a mesma novamente à distribuição, ultrapassados que sejam os vícios de que poderia padecer.
23. Veja-se o Ac. do TC, n.º 246/2017 de 17-05-2017, in tribunalconstitucional.pt: “3. Em face do exposto, na improcedência do recurso, decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.”
24. Assim, caso se entenda que o modo de narração dos factos não esteja completo e a acusação seja rejeitada por infundada por tal facto (art.º 311.º, n.º 3 alínea b) do Código de Processo Penal), deve o despacho de rejeição determinar a devolução dos autos ao Ministério Público.
25. Por maioria de razão, quando estamos perante uma situação que encontra cabimento no art.º 311.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal, também devem os autos ser remetidos ao Ministério Público e não arquivados.
26. Embora inicialmente alguma jurisprudência pendesse no sentido contrário, atualmente será de entender que a consequência de uma acusação ser considerada infundada, pelo menos nos termos do previsto no art.º 311.º, n.º 3, alíneas a) a c) do Código de Processo Penal, não será o arquivamento dos autos, mas a devolução dos mesmos ao Ministério Público para que possa reformular a acusação elaborada, posição esta que vem prevalecendo.
27. É efetivamente esta, no nosso entender, a decisão mais adequada uma vez que o direito penal, tanto substantivo como processual, visa, no essencial garantir a salvaguarda dos bens jurídicos mais valiosos e assegurar a ordem e a paz social. Paralisar essa atividade por motivos meramente formais é deixar os ditos bens jurídicos desprotegidos sendo contrário ao fim último desse ramo do direito e à sua razão de ser.
28. Pelos motivos supra aduzidos entendemos que, a ser considerada a presente acusação infundada por não estarem indicadas todas as disposições legais (art.º 311.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal), sempre deverá determinar-se a devolução dos autos ao Ministério Público e nunca o seu arquivamento, sobretudo quando estamos perante uma conduta que deve ser reprimida penalmente independentemente da queixa dos titulares do direito violado pela danosidade que a mesma apresenta.
29. Em conformidade, requer-se que seja o despacho de rejeição da acusação revogado e substituído por outro que aceite a mesma determinando o prosseguimento dos presentes autos e a notificação do arguido para contestar nos termos do previsto no art.º 311.º-A do Código de Processo Penal.
30. Caso assim não se entenda, deverá o despacho que determinou o arquivamento dos autos ser revogado determinando-se a devolução destes autos ao Ministério Público para reformulação da acusação.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal concedendo provimento ao presente recurso e, em consequência, revogando o despacho recorrido substituindo-o por outro que determine o recebimento da acusação ou a devolução dos autos ao Ministério Público, V. Ex.as farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.
3. Os arguidos não apresentaram resposta.
4. Parecer
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de dever ser dado provimento ao recurso, mas por referência “à segunda ordem de argumentos que a digna recorrente apresenta, requerendo a devolução dos autos para corrigir a acusação (...).
O signatário revê-se na tese propugnada pela digna recorrente, que se socorre ainda de boa doutrina, defendendo que, a não haver ganho de causa com a primeira questão, deve então a acusação ser devolvida ao MP, para revisão e inclusão da menção a um dos artigos do CP que o art.° 33.° da Lei 39/2009 refere.”
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não foi apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, conforme as conclusões da respetiva motivação, cumpre apreciar e decidir a seguinte questão:
Ø Das consequência da violação pela acusação do disposto no art. 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. c), do CPP: rejeição versus reformulação.
2. Despacho recorrido
Para o que importa, é do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição parcial):
Vem imputada aos arguidos a prática do crime previsto no art. 33º, nº1, da Lei 39/2009, de 30 de Julho. Sucede que esse normativo é aplicável apenas em conjugação com um dos seguintes artigos do Cód. Penal: 143º; 144º ou 145º. Sucede que nenhum destes consta do enquadramento jurídico-penal constante do despacho de acusação.
Neste quadro, por não conter as disposições legais aplicáveis, a acusação é manifestamente infundada.
Pelo exposto e ao abrigo do disposto no art. 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. c), do Código de Processo Penal, não recebo a acusação Pública.
Notifique.
Oportunamente, arquive.
3. Elementos relevantes
É do seguinte teor a acusação pública proferida nos autos (transcrição parcial):
No dia 15 de janeiro de 2023, cerca das 18H00, no estádio da Luz, sito na avenida Eusébio Ferreira da Silva, em Lisboa, realizou-se o jogo de futebol, a contar para a 16.ª jornada da 1.ª Liga Portuguesa, que opôs as equipas de futebol profissional do Sport Lisboa e Benfica SAD e o Sporting Clube de Portugal SAD.
Findo o jogo, por volta das 20H03, enquanto aguardavam a ordem da autoridade policial para poderem abandonar a bancada disponibilizado pelo clube anfitrião, EEE, “líder” do grupo organizado de adeptos “Diretivo XXII” envolveu-se numa altercação com alguns elementos do subgrupo do grupo organizado de adeptos “Juventude Leonina”, denominado “Sporting Youth”, que foi prontamente sanada por outros adeptos que ali se encontravam.
Após, alguns membros do referido subgrupo “Sporting Youth”, entre os quais, os arguidos AAA, BBB, CCC e DDD retiraram-se, da bancada, para onde regressaram por volta das 20H07.
Uma vez, ali os arguidos e pelo menos mais um elemento do referido subgrupo, dirigiram-se de novo a EEE e desferiram-lhe inúmeros socos e pontapés em várias partes do corpo, assim como empurrões, que o fizeram cair por terra.
Nessa ocasião, alguns assistentes de recinto desportivo (ARD) e elementos da Unidade Metropolitana de Informações Desportivas da PSP, que ali se encontravam, intervieram e retiraram o ofendido da bancada.
Em consequência direta e necessária das condutas dos arguidos e do referido indivíduo de identidade não apurada, o ofendido EEE sofreu alteração da sua sensibilidade (dor)
Os arguidos e o referido indivíduo agiram de comum acordo e no propósito de ofenderem o corpo e a saúde do ofendido, bem sabendo que se encontravam no interior de um recinto desportivo onde decorria um evento da mesma natureza, o que conseguiram.
Os arguidos agiram de forma livre deliberada e conscientemente, bem sabendo da sua reprovabilidade em termos penais.
Pelo exposto constituíram-se os arguidos AAA, BBB, CCC e DDD, como coautores de um crime de ofensa à integridade física no âmbito de espetáculo desportivo ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, p. e p. pelos artigos 14.º, nº1, 26.º do Código Penal e 33.º, nº 1 da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.
Devem os arguidos ser condenados na pena acessória de interdição de acesso a recintos desportivos, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 35 da n.º 39/2009, de 30 de julho.
4. Apreciando
Formula o Digno recorrente pretensão no sentido de fazer introduzir em juízo a peça acusatória objeto de rejeição, por considerar que os factos ali vertidos consubstanciam um ilícito penal e os elementos subjetivos e objetivos do art.º 33.º da L. 39/2009 estão presentes.
Em alternativa, e caos assim não se considere, pretende que se determine a devolução dos autos ao Ministério Público para reformulação da acusação.
Vejamos.
A acusação foi rejeitada ao abrigo do disposto no art. 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. c), do CPP, por então se ter entendido que a mesma não continha as disposições legais aplicáveis, ou seja, por se bastar com a referência ao crime previsto no art. 33.º, n.º 1, da Lei 39/2009, de 30 de julho, quando esse normativo apenas é aplicável em conjugação com um dos seguintes artigos do Cód. Penal: 143.º, 144.º ou 145.º.
Porém, entende o Digno recorrente que tal não colide com a suficiência da acusação pública, porque os factos ali vertidos consubstanciam um ilícito penal e os elementos subjetivos e objetivos do art.º 33.º da Lei 39/2009 estão presentes.
Ora, independentemente da “bondade” dessa afirmação, certo é que o art. 33.º da Lei 39/2009 permite a imputação (e condenação) do agente por um de três crimes que, protegendo o mesmo bem jurídico, contemplam penas radicalmente diferentes.
Porque assim é, não pode a acusação ser totalmente omissa a este respeito, uma vez que lhe assiste o poder/dever de qualificar juridicamente os factos que pretende introduzir em juízo.
Precisamente porque a al. c) do n.º 3 do art. 311.º do CPP prevê a rejeição da acusação quando falte a indicação das disposições legais aplicáveis, o que é manifestamente o caso dos autos, bem andou o juiz a quo ao não receber a acusação pública.
Coisa diversa é a decisão quanto ao arquivamento dos autos, que desde já adiantamos não subscrever.
É que em causa está uma rejeição de natureza estritamente formal – a acusação considera-se manifestamente infundada se não indicar as disposições legais aplicáveis -, logo, ultrapassável, sem que justifique a extinção do respetivo procedimento criminal e o arquivamento do processo.
Não vemos, pois, qualquer reserva à reformulação da acusação, nos termos pugnados pelo Digno recorrente em segunda linha, sobretudo, como bem observa, “quando estamos perante uma conduta que deve ser reprimida penalmente independentemente da queixa dos titulares do direito violado pela danosidade que a mesma apresenta”.
Para além do mais, no caso concreto, tal procedimento pode ter lugar sem que se coloque em causa, ou sequer em perspetiva, qualquer direito processualmente relevante do arguido, ou seja, tal como refere António Latas em comentário ao artigo 311.º do CPP (in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, setembro 2022, pág. 50, nota § 42) , “(...) só quando princípios ou direitos conflituantes imponham o contrário, a sujeição do facto iniciado a julgamento não deve ser impedida por meros vícios de forma ultrapassáveis.”
Ainda citando António Latas (in op. cit. p. 53, nota § 52), “(...), o efeito do despacho de rejeição da acusação com fundamento em alguma das três primeiras situações a que reporta o n.º 3, que consiste, no seu conteúdo mínimo, em bloquear a sujeição da lide a julgamento com base no ato processual imperfeito, traduz-se ainda na consequente remessa do processo ao MP para que este possa (querendo) proceder à reformulação da acusação e à sua apresentação para julgamento sem o vício formal que a afetava, após a repetição dos atos processuais posteriores à acusação afetados pela sua rejeição (...)”.
Melhor dizendo, “rejeitada a acusação imperfeita (...), o processo será remetido ao MP (...), para que este possa, querendo, proceder à reformulação da acusação nos termos do art. 122.º, ex vi do art. 4.º (...)” (in op. cit. p. 53, nota § 55).
Desta feita, tem cabimento a pretensão do Ministério Público, no segmento respeitante à revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que determine devolução dos autos ao Ministério Público para reformulação da acusação.
Em suma, é procedente o recurso, impondo-se a revogação do despacho recorrido.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando, em consequência, o despacho recorrido na parte que determinou o arquivamento dos autos e, em sua substituição, ordenar a remessa do processo ao Ministério Público, para que este possa, querendo, proceder à reformulação da acusação nos termos do art. 122.º, ex vi do art. 4.º, ambos do Código de Processo Penal, concretamente, para inclusão da menção a um dos artigos do Código Penal que o art. 33.º da Lei 39/2009 refere.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 19 de novembro de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Alexandra Veiga
Pedro José Esteves de Brito