Quando os progenitores dos menores são reconhecidamente incapazes de assegurar os cuidados básicos necessários às crianças e não se mostram permeáveis á mudança, apesar da longa intervenção de que beneficiaram, entende-se que a medida de apoio junto dos pais, prevista no artigo 35°, n.° 1, alínea a), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo não se mostra adequada a afastar as menores da situação de perigo em que se encontram para a sua saúde, bem-estar, desenvolvimento integral e educação.
Proc. 87/12.3TBNRD 6ª Secção
Desembargadores: Fátima Galante - Teresa Soares - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
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APELAÇÃO N° 87/12.3TBNRD.Ll
6ª Secção
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I - RELATÓRIO
As menores I… e V…, nascidas a 6-11-2005 e 18-01-2012, respetivamente, filhas de J… e de M…, foram sinalizadas em 2012 na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens do N…, que já acompanhava o irmão mais velho das menores, por falta de prestação de cuidados básicos de higiene e deficiências ao nível dos cuidados alimentares.
Dada a falta de adesão da progenitora o processo foi remetido para o extinto Tribunal da Comarca do N…, sendo firmado em 25-10-2012 acordo de promoção e proteção de aplicação de medida de apoio junto dos pais.
A referida medida foi sendo sucessivamente prorrogada, porquanto apesar dos acompanhamentos disponibilizados aos progenitores as crianças continuaram a ser negligenciadas ao nível da higiene pessoa! e das roupas e da alimentação, e bem assim da sua supervisão, mantendo a progenitora as práticas educacionais punitivas, e ambos os pais falta de limpeza e de organização da habitação.
A EMAT face à resistência dos progenitores à intervenção dos serviços sociais e reduzindo potencial de mudança, emitiu parecer no sentido da substituição da medida de apoio junto dos pais, peia medida de acolhimento residencial. Os progenitores manifestaram oposição à aplicação de qualquer medida que implique a saída de casa das filhas.
Realizou-se o debate judicial com intervenção dos Srs. Juizes sociais, por força do disposto nos artigos 62.° e 114.°, n.°5, al. a), da LPCJP, tendo sido documentadas as declarações prestadas.
Foi, então proferido acórdão que decidiu aplicar às menores I…, nascida a 6-] 1-2005, e V…, nascida a 18-01-2012, pelo período de um ano, a medida de apoio junto de familiar, no caso junto da tia paterna M…, nos termos dos artigos 35.0, n.° 1, al b), da LPCJP.
Recorre o progenitor J… do decidido, tendo para o efeito, apresentado, no essencial, as seguintes conclusões:
1. Deverá ser revogada a douta sentença na parte em que substitui a medida de promoção e protecção aplicada junto dos progenitores das menores Í… e V… pela medida de promoção e protecção junto da tia paterna.
2. Com a douta sentença não se demonstra que as menores se encontrem em situação que integre o conceito de perigo presente no artigo 3.°, n.° 2 da LPCJP.
3. As menores têm vindo a apresentar melhorias significativas, tendo ajudado as medidas que têm vindo a ser aplicadas, estando as mesmas neste momento inseridas quer no seio familiar como escolar, existindo ainda uma vigilância e apoios da Segurança Social.
4. É de concluir, portanto, que foi esgotado o objecto deste processo, tendo sido atingidos os objectivos de inserção das menores que já não estão em situação de perigo.
Contra-alegou o M°P°, para, no essencial, concluir pela manutenção da sentença recorrida.
Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste tribunal (arts. 684°, n° 3 e 690°, n° 1 do CPC), pelo que fundamentalmente importa decidir se existe fundamento para, revogando a sentença, alterar a medida de protecção nos termos pretendidos pelo Recorrente.
II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1.– I…. nascida a 6-11-2005, e V…. nascida a 18-01-2012, são filhas J… e de M….
2.- Foram sinalizadas em 2012 à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens do N…, que já acompanhava o irmão mais velho das menores, por falta de prestação de cuidados básicos de higiene e deficiências ao nível dos cuidados alimentares.
3.- Dada a falta de adesão da progenitora, o processo foi remetido para o extinto Tribunal da Comarca do N…, sendo firmado em 25-10-2012 acordo de promoção e proteção, no âmbito do qual foi aplicada às menores, pelo período de 6 meses, a medida de apoio junto dos pais, que se comprometeram a promover a frequência e assiduidade escolar da menor Iris, a providenciar por urna alimentação adequada à menor V…, com exclusão do leite de vaca, e a aceitar a supervisão das técnicas do IDSA.
4.- A referida medida foi sendo sucessivamente prorrogada, por se constatar manterem-se as problemáticas associadas à falta de organização doméstica. negligência no que respeita aos cuidados básicos de vestuário, de higiene e alimentação das menores I… e V…, e também ao nível do acompanhamento escolar.
5.- Por estar excedido o prazo de duração máxima da medida de apoio junto dos pais, em 4-09-2015 o tribunal realizou novas diligências instrutórias e nova conferência, no âmbito da qual foi firmado novo acordo de promoção e proteção de aplicação de medida dc apoio junto dos pais, pelo período de 6 meses, fixando-se obrigações aos pais de prestação dos cuidados de alimentação, vestuário, saúde e educação às menores, concretizando-se que deviam tudo fazer para garantir a limpeza e organização da casa e das roupas das filhas, aceitar a intervenção da equipa de integração familiar, fazer comparecer a filha íris ao acompanhamento psicológico e a filha Vitória às sessões da equipa de intervenção precoce, e a progenitora sujeitar-se a acompanhamento psicológico para avaliação do seu problema dc ansiedade.
6.- A menor I… frequenta o 3° ano de escolaridade e beneficia dc apoio escolar, por ter dificuldades de aprendizagem, decorrentes de falta de estimulação e do fraco acompanhamento escolar.
7.- As menores são levadas pelo progenitor à escola, o qual passa o dia no café ou fechado na oficia de sua casa. A progenitora sai de casa muito cedo e mesmo quando não está em formação ou a trabalhar passa pouco tempo em casa.
8.- As menores apesar de terem passado a ser assíduas à escola, continuam a ai comparecer sem higiene pessoal e nas roupas. É frequente a madrinha da menor V…. Sra. M…, que reside nas proximidades da escola. ser chamada para ir buscar a menor I… à escola c fazer-lhe a higiene pessoal, por esta aí comparecer a cheirar a urina, com pediculose e roupas mal lavadas, e os pais não assegurarem estes cuidados, cm especial a mãe/encarregada de educação que apesar de convocada não comparece na escola.
9.- Nenhum dos progenitores reconhece a falta de higiene das meninas, imputando a responsabilidade da higiene pessoal da Iris e da irmã à própria menor, nem tão pouco a falta de cuidados básicos ao nível do vestuário e alimentação das crianças, ou a Falta de limpeza e de organização da habitação.
10.- O casal apesar de ter beneficiado do acompanhamento da equipa de integração familiar, atribui os problemas referidos em 9) a queixas infundadas da comunidade, em razão do que não alteraram a qualidade dos cuidados prestados às filhas.
11. A progenitora Maria de Jesus Medeiros é de trato difícil. impondo regras e limites às filhas através da punição física e da agressividade verbal. evidenciando a menor Iris sinais de nervosismo, corno sejam tremores. quando a mãe a repreende.
12.- A progenitora da menor foi incentivada a fazer acompanhamento psicológico da menor Iris através do Centro de Saúde do Nordeste, o que não fez, em razão do que foi a própria EMAT que providenciou pelo agendamento de consulta de psicologia da iris no Centro de Saúde do Nordeste.
13.- E frequente as menores I… e V… ficarem em casa e andarem na rua, sem a supervisão de um adulto, tendo a menor Vitória sido encontrada sozinha no dia 8-2-2016 sentada à porta de casa, contígua à via de circulação, enquanto a menor Iris se encontrava em casa, também sozinha.
14.- Apesar de ter beneficiado de rendimento social de inserção o ajudante sociofamiliar interveio no agregado familiar durante pouco tempo e com pouco sucesso, por os progenitores não lhe darem acesso à casa.
15.- A progenitora esteve a fazer formação durante uni ano e meio e fez estágio na Casa do N…, auferindo bolsa, mas apesar disso e de o progenitor das menores auferir subsídio de desemprego (377,00€) c o casal receber 75,00E de abono dc família de ambas as menores, por razões dc má gestão dos recursos do agregado é frequente faltarem bens alimentares, cm razão do que a progenitora mandava a menor Iris pedir alimentos, tabaco e dinheiro às vizinhas, designadamente a Maria dos Anjos. cuja casa fica distante da sua residência, mesmo no final do dia, fazendo esta menor o percurso sem a supervisão de um adulto.
16.- Recentemente M… fez requerimento para voltar a beneficiar de rendimento social de inserção,
17.- A tia paterna das menores, D. G…, trabalha como segurança, e reside em Ponta Delgada. Vive com o seu companheiro, que apesar de desempregado faz trabalhos eventuais, na área da jardinagem e como pedreiro. Mostra-se disponível, a par do companheiro, para acolher em sua casa as sobrinhas, de forma a evitar o acolhimento residencial das mesmas. Trata-se de agregado familiar estruturado e organizado, cuja casa tem espaço e tem condições de asseio e organização para acolher as menores.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo visam, nomeadamente. proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral - artigo 34°, alínea b) da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.
Em causa está, nestes autos, garantir o bem-estar e desenvolvimento integral, nos termos do artigo 1° da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, das menores I… e V….
Com efeito, a Convenção Sobre os Direitos da Criança, aprovada em Nova Iorque em 20 de Novembro de 1989, aprovada por Portugal e publicada no D.R., I série, de 12.9.1990, estabelece que todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança (art.° 3.° n.° 1 da LPCJP).
A intervenção judicial deve, como é sabido, atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança ou do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade de interesses presentes no caso concreto - artigo 4°, alínea a), daLPCJP.
O art.° 4.° do mencionado diploma enuncia os princípios pelos quais se deve reger a intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, estabelecendo, por seu lado, o art. 34° da LPCJP, finalidades das medidas a adoptar:
a) Afastar o perigo em que a criança e o jovem se encontrem;
Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.
Incumbe, assim, ao tribunal ponderar qual o interesse das menores nas atuais circunstâncias.
Considerou-se que, no caso concreto, não obstante o decurso de prazo máximo da medida aplicada neste processo a I9101/2012, «por força da resistência dos progenitores à intervenção dos serviços, não foram supridas as problemáticas de organização e gestão do espaço habitacional; de adoção de estratégias educativas punitivas por parte da progenitora; e de negligência parenta! das menores em termos de higiene e de supervisão, e bem assim ao nível da prestação de cuidados de alimentação».
2. Discorda o Recorrente, se bem que não tenha sido posta em causa a matéria de facto provada, defendendo que a decisão não respeita o conceito de criança em perigo tal qual se encontra consagrados desde logo no artigo 1918° CC e no artigo 3°, n°2 da Lei de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.
Segundo o progenitor, o tribunal, ao dar por assente que a medida anteriormente aplicada de apoio junto dos pais não se mostra adequada a afastar as menores da situação de perigo em que se encontram, não atentou no Relatório Social onde a Técnica Dra E… afirma que os pais conseguem prestar cuidados básicos, embora com lacunas.
Por outro lado, o Recorrente não coloca em causa tais lacunas mas entende que o arquivamento dos autos com a manutenção do apoio a nível de assistente sócio-familiar é suficiente para que se afaste o perigo para s crianças e estas se mantenham no seu agregado. Mais alega que as crianças já melhoraram nas escolas tanto em assiduidade, como em comportamento e rendimento e conclui que os progenitores lhes têm prestado os cuidados necessários e que os podem continuar a prestar com apoios, pelo que a segurança, a saúde, a formação moral e a educação das filhas não se encontram em perigo.
3. Importa, pois, trazer à colação os factos provados e elencados na sentença que dão conta do percurso das meninas desde a sinalização em 2012 à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens e aquilatar da relevância das apelidadas lacunas para efeitos de determinação da medida judicial a aplicar.
3.1. Com efeito, a primeira medida judicial foi aplicada a 25.10.12, mediante Acordo, com apoio junto dos pais, tendo sido sucessivamente prorrogada até à presente decisão.
A verdade é que as medidas previstas nas alíneas a) a d) do artigo 35° da LPCJP não podem ter duração superior a um ano, podendo todavia ser prorrogadas até 18 meses (art.° 60.° da I.PCJP).
Ora, as crianças em causa esgotaram o período de aplicação de medida de apoio em meio natural de vida (cfr. o artigo 60°, n°2 LPCJP).
Como decorre da decisão recorrida, os factos provados apontam que as menores apesar de terem passado a ser assíduas à escola, continuam a aí comparecer sem higiene pessoal nas roupas; ainda, com pediculose, cheiro a urina e que os pais não aceitam esta falta de cuidados de higiene como de sua responsabilidade.
Alude-se ainda à punição física e agressividade verbal por parte da mãe, o que não mudou com a intervenção.
Também se apurou que os progenitores administrarem mal os rendimentos, com carência de alimentos, determinando a filha Iris a ir a casa de vizinhos pedir comida.
3.2. Por outro lado, o tribunal, feitas as necessárias averiguações, entendeu que a tia paterna, é a figura adequada a evitar o inevitável acolhimento residencial das crianças.
É certo que, quanto à Iris, melhorou o comportamento e a postura na Escola pois é assídua e não tem prolemas de socialização.
Quanto à Vitória, verifica-se que a mesma frequenta o jardim de infância onde tem apoio e toma refeições.
Há duas madrinhas de baptismo que dão apoio às menores (cfr. o último relatório social).
No entanto o problema identificado mantém-se no que concerne à falta de limpeza da casa, de higiene das crianças e de alimentação das mesmas.
Entendeu o tribunal que os pais, contando com as duas madrinhas ouvidas em audiência e a Assistente sócio-familiar, não seriam o suficiente para remover os mencionados problemas e conclui pela necessidade de acolher as crianças junto de um familiar, dando tempo aos pais de se reorganizarem, por forma a propiciar, no imediato, a higiene, o conforto, o acompanhamento escolar que em casa e apesar dos esforços ainda não tinham.
Segundo o M°P° nas suas contra-alegações, a decisão recorrida, «respeita ainda o conceito de criança em perigo tal qual se encontra consagrado desde logo no artigo 1918° CC e no artigo 3°, n°2 da na Lei de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo. Sempre tendo em vista o próximo regresso ao lar.
Os factos apurados ainda se mostram suficientes para que se esteja perante crianças em perigo aplicando medida de promoção e proteção, preferindo o acolhimento temporário em casa da tia a institucionalização».
3.3. Assim, como a decisão recorrida refere «porque os progenitores das menores são reconhecidamente incapazes de assegurar os cuidados básicos necessários às crianças e não se mostram permeáveis à mudança, apesar da longa intervenção de que beneficiaram, entende-se que a medida de apoio junto dos pais, prevista no artigo 35°, n.° 1, alínea a), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo não se mostra adequada a afastar as menores da situação de perigo em que se encontram para a sua saúde, bem-estar, desenvolvimento integral e educação».
Conclui-se, pois, tal como a decisão recorrida, pela necessidade de acolher as crianças junto de um familiar - tia materna M… - pelo período de um ano, dando tempo aos pais de se reorganizarem, por forma a propiciar, no imediato, a higiene, o conforto, o acompanhamento escolar que em casa e apesar dos esforços ainda não tinham e assim.
IV - DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Lisboa, 27 de Outubro de 2016.
(Fátima Galante)
(Teresa Soares)