Em face das alterações introduzidas no CIRE pelo DL. N.º 79/2017, de 30/06, é inequívoco que o PER se destina a ser utilizado apenas por empresas, e já não por pessoas singulares, para as quais foi criado um processo especial para acordo de pagamento.
Proc. 3405/16.1T8FNC.L1 1ª Secção
Desembargadores: Pedro Brighton - Teresa Jesus Henriques - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Apelação
Processo n° 3405116.1 T8FNC.L1
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :
I - Relatório
1- J... veio, ao abrigo do disposto no art° 17°-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.) intentar o presente processo especial de revitalização.
Alega, ter-se apresentado a processo idêntico em Fevereiro de 2014, no âmbito do qual foi apresentado e aprovado um Plano de Revitalização através do qual o Requerente conseguiu consolidar o seu passivo e negociar o seu pagamento, no entanto veio a ser recusada a sua homologação em virtude de se ter considerado excedido o prazo legal para as negociações.
Inconformado com essa decisão, o Requerente interpôs o competente recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e do Acórdão proferido por este Tribunal (que manteve aquela decisão) interpôs recurso para o S.T.J. o qual manteve a decisão de não homologação do Plano.
Transitada em julgado a referida decisão veio o Requerente requerer um novo processo tendente à obtenção da homologação do Plano de Revitalização.
Para tanto alega que, no anterior PER, 70,06/prct. dos credores, emitiram voto favorável para a recuperação do devedor e, que por força da aprovação do Plano pelos credores, o devedor não tem qualquer passivo vencido exigível.
Conclui que o presente processo é admissível porquanto o impedimento do recurso a novo PER no prazo de 2 anos está apenas previsto para os casos em que as negociações terminaram sem a aprovação de plano de recuperação, nos quais se tenha concluído não ser possível alcançar acordo.
2- Foi de imediato proferida decisão a indeferir liminarmente o requerimento inicial, com fundamento no facto de se entender que o Requerente estava impedido de recorrer ao PER pelo prazo de dois anos, prazo esse que (...) terá de contar-se, forçosamente do termo do processo especial de revitalização anterior. Doutro modo, estaria encontrada a fórmula para contornar a limitação imposta pelo n° 6 do artigo 17-G que tem o sentido acima indicado.
E consta do segmento decisório do despacho :
Pelo exposto, indefiro liminarmente o requerimento inicial de processo especial de revitalização apresentado por J....
Custas pelo requerente por lhes ter dado causa, sendo a taxa de justiça reduzida a um quarto - artigos 527° n° l do Código de Processo Civil, 301 ° e 302° n° 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.
Registe e notifique .
3- Inconformado com esta decisão, dela recorreu o Requerente, para tanto apresentando as suas alegações com as seguintes conclusões :
1 °- Tendo o Recorrente, nos idos de Fevereiro de 2014, requerido um Processo Especial de Revitalização (PER), no âmbito do qual foi apresentado e aprovado, pelos credores, um Plano de Revitalização, embora não homologado pelo Tribunal, aquele não se mostra impedido de recorrer a um novo PER no prazo de 2 anos.
2 a- O devedor apenas se encontra impedido de recorrer a um novo PER pelo prazo de dois anos nos casos em que:
- o período negocial termina sem que o Plano seja aprovado pelos credores (cfr. Art° 17°-G n° 1), ou
- o período negocial é antecipadamente encerrado (sem a aprovação de um Plano) (cfr. Art. 17°-G n° 1), ou
- o Devedor venha a pôr termo ao processo negocial por desistência da instância (cfr. Art. 17°-G n°5).
3°- Nos casos em que o PER venha a terminar com a aprovação de um Plano de Recuperação, ainda que não homologado judicialmente, não se aplica o impedimento previsto no n° 6 do art. 17°-G do CIRE.
4°- A interpretação da lei inserta na decisão em crise - na medida em que considerou que o impedimento previsto no n° 6 do art. 17°-G do CIRE também se aplica aos casos em que o processo tenha terminado com a aprovação de um Plano - não tem respaldo nem na letra da lei, nem no seu espírito.
5á A interpretação da lei inserta na decisão em crise não tem respaldo nem na letra da lei, porquanto:
a) A interpretação da lei efectuada pelo Tribunal recorrido não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, descolando-se inteiramente do seu texto, em evidente violação do disposto no n ° 2 do art. 9° do Código Civil.
b) Quer a letra da lei - que limita a sua aplicação aos casos do encerramento do processo negocial nos termos definidos nos n°s. 1 e 5 do art. 17°-F do CIRE - quer a posição do dispositivo no texto da lei - o lugar onde a disposição se insere e a letra da sua epígrafe indicia a sua abrangência e alcance relativamente apenas aos casos em que a conclusão do processo negocial ocorre sem a aprovação de plano de recuperação - concorrem para a interpretação pelo recorrente.
6°- Refere-se na Exposição de Motivos na Proposta de Lei n° 39/XII que Para que este processo não seja utilizado de forma abusiva, caso haja desistência por parte do devedor, este não poderá recorrer ao mesmo nos dois anos subsequentes , pelo que a interpretação sufragada pelo tribunal não encontra igualmente respaldo no pensamento legislativo, já que o legislador, na exposição de motivos, expressamente limitou a aplicação da norma aos casos de desistência do processo por parte do devedor, não se estendendo a sua aplicação, como fez o tribunal, aos casos em que o processo encerra com a aprovação e um Plano por parte dos credores.
7°- A interpretação da lei inserta na decisão em crise não tem respaldo no espírito da lei e na unidade do sistema jurídico, porquanto:
a) Não prossegue, nem defende, os interesses das partes envolvidas no processo, o interesse público e os objectivos subjacentes ao à lei e ao processo;
b) O PER visa potenciar a revitalização célere e eficaz dos devedores que se encontrem numa situação económica difícil, evitando situação de insolvência;
c) O legislador, ao criar o processo especial de revitalização, visou prosseguir uma estratégia de recuperação dos devedores que encontrem numa situação económica difícil, em detrimento da sua imediata declaração de insolvência;
d) A satisfação dos direitos dos credores deixou de ocupar o lugar privilegiado que vinha tendo no processo de insolvência, passando a recuperação do devedor a consubstanciar, em simultâneo, um fim atendível no âmbito do GIRE;
e) No âmbito do processo especial de revitalização é dada ampla prevalência aos interesses dos credores e é por essa via que melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado.
8°- Atenta a prevalência da recuperabilidade dos devedores e dos interesses dos credores - interpretação teleológica da lei - não se alvitram motivos para recusar o recurso a um 2° PER nos casos em que o 1° tenha sido encerrado com a aprovação de um Plano, embora não homologado, já que, tal solução permite a recuperação do Devedor que, para isso, dispõe do apoio dos seus credores para obter e fazer aprovar uma medida de recuperação.
9°- Nesse sentido, a Jurisprudência tem procurado soluções que, na medida do possível, permitam evitar a não homologação de Planos de Recuperação que tenham o apoio da maioria dos credores, designadamente estabelecendo a homologação do Plano com eficácia relativa, nos casos em que, atento o disposto nos arts. 215° e 216° do GIRE tal homologação seria recusada sem mais.
10° Entende essa Jurisprudência, com total aplicabilidade ao caso dos autos, que (i) dispondo o Devedor do apoio dos seus credores, (ii) tendo os credores o controlo efectivo do processo em defesa dos seus interesses, (iii) dando-se prevalência aos interesses dos credores se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado, e (iv) o legislador, ao criar o processo especial de revitalização, visou prosseguir uma estratégia de recuperação dos devedores que encontrem numa situação económica difícil, a decisão judicial que procura eliminar os obstáculos à não homologação e logre obter a recuperação do devedor, em detrimento da imediata declaração de insolvência dos devedores, é aquela que melhor prossegue os objectivos da lei e se adequa ao seu espírito e àquele que subjaz à vontade do legislador.
11º - Interpretação diversa contraria flagrantemente os objetivos perseguidos pela lei, já que, nesse caso, apesar do credor dispor do apoio dos seus credores para o efeito, ver-se-ia impedido de obter a sua revitalização, sendo arrastado para um processo de insolvência onde possa realizar tal negociação.
12°- Contrariamente ao decidido pelo Tribunal recorrido inexiste qualquer imprecisão técnica na letra do art. 17°-G do CIRE que justifique ou fundamente interpretações extensivas da norma, porquanto:
a) O n° 1 e 5 do art. 17°-G do GIRE aludem concretamente às situações em que o processo negociai culmina sem a aprovação de um Plano de Revitalização, inexistindo, assim, qualquer falta de correspondência entre a epígrafe do artigo e as normas nele insertas;
b) Inexiste qualquer lacuna na lei que justifique a interpretação extensiva da norma a outros casos, designadamente no que respeita à aplicação dos n°s 2, 3 e 4 - encerramento do processo com ou não declaração de insolvência - aos casos previstos no artigo 1 7°-F - desfecho do processo se for recusada a homologação do plano de recuperação pelo tribunal, já que se a disposição inserta no n° 6 do art. 17°-G - impedimento de recurso ao PER no prazo de 2 anos - refere expressamente que a norma se aplica aos casos de termo do processo especial de revitalização efetuado de acordo com os números anteriores , as disposições insertas nos n°s 2, 3 e 4 do art. 17°-G - encerramento do processo especial de revitalização quando o devedor ainda não se encontre em situação de insolvência - referem expressamente que se aplicam aos casos de encerramento do processo regulado no presente capítulo, leia-se Capítulo II - Processo Especial de Revitalização.
13°- A interpretação teleológica da lei realizada pelo Tribunal a quo mostra-se desajustada dos princípios basilares do PER e, até mesmo, da justificação atribuída pelo legislador à concreta norma, porquanto:
a) Se refere na Exposição de Motivos na Proposta de Lei n° 39/XII que Para que este processo não seja utilizado de forma abusiva, caso haja desistência por parte do devedor, este não poderá recorrer ao mesmo nos dois anos subsequentes , visando, assim, a norma em causa, impedir que o devedor possa, de forma isolada e por vontade própria e exclusiva, instrumentalizar o processo através do recurso sistemático e indevido ao procedimento;
b) A norma não visa precaver situações limite de abuso de recurso ao PER por parte do Devedor, em conluio com os seus credores ou até mesmo com administrador judicial, já que para estas situações existe o instituto do abuso do direito;
c) A interpretação da lei realizada pelo Tribunal à quo contraria a génese da lei, já que impede a revitalização de um devedor revitalizável, impede que um devedor, que dispõe do apoio dos seus credores para o efeito, obtenha a homologação de um Plano que conduza à sua revitalização, bem como conduz o devedor revitalizável para um inevitável processo de insolvência.
14° Quer por força das disposições conjugadas do n°s 1, 5 e 6 do art. 17°-G do CIRE, quer por força da tutela do interesse público radicado na primazia dada à vontade dos credores intervenientes, outra não pode ser a interpretação da lei senão aquela que conduza à conclusão de que o impedido previsto no n° 6 do art. 1 7°-G do CIRE - de recorrer a um novo PER pelo prazo de dois anos - apenas se aplica às situações de encerramento do processo negociai previstas nos n°s 1 e 5 do art. 17°-G do CIRE, não se aplicando aos casos em que o processo negociai venha a culminar com a aprovação de um Plano de Recuperação.
15°- A decisão em crise viola as disposições conjugadas dos arts. 9° do Código Civil, arts. 1°, 17°-A, 17°-F, 17°-G do GIRE e dos Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores, definidos na Resolução Conselho de Ministros 43/11 de 25/10.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido e, em consequência, ser o despacho recorrido revogado,
Com o que se fará a costumada Justiça .
4- A credora J. Nelson Abreu, S.A. contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso e pedindo a ampliação do objecto do recurso, apresentado as seguintes conclusões: -Quanto às contra-alegações
1. A única interpretação possível do n° 6 do art. 17°-G do GIRE é que este também se aplica aos casos em que um PER é aprovado mas não homologado judicialmente.
2. E isto porque, se for reconhecida - como assim defende astuciosamente o Recorrente - a possibilidade de perante a não homologação de um acordo, se apresentar um outro PER de imediato, então isso implica que se este segundo também não for homologado não há nada que impeça a apresentação de um terceiro, de um quarto ou de um quinto, de tantos quantos forem necessários até um ser homologado. E, neste cenário, tudo se passaria num processo urgente, que se quer tão rápido quanto possível, acabando por ficar suspenso por tempo indefinido o exercício dos direitos dos credores perante o devedor: i.e. o devedor, assim, consegue obstar à instauração de acções para cobrança de dívidas e obter a suspensão das acções em curso com idêntica finalidade, ao abrigo do art. 17°-E.
3. Foi o que sucedeu precisamente no caso da credora JNA.
4. É que pende na Comarca da Madeira, Funchal - Inst. Central - Sec. Execução - Jl, processo n° 819/12.0 TCFUN, uma acção executiva para pagamento de quantia certa (é' 1.326.873, 69 + juros), em que é Exequente a ora credora e Executados o aqui devedor e os seus filhos (Jorge Cipriano da Silva Sá, Rui Filipe da Silva Sá e Vítor Agostinho da Silva Sá). No momento em que o devedor instaurou o anterior PER, a venda do imóvel ali penhorado já estava determinada mediante propostas em carta fechada, tendo o respectivo prédio penhorado sido oportunamente avaliado em € 6.402.998, 00 e o valor base da venda fixada em €5.442.548,30. Como tal, o devedor recorreu ao PER apenas para suspender a venda do seu imóvel penhorado no âmbito dessa acção executiva. Não tendo sido o anterior homologado, pretendia o devedor com a apresentação de novo PER continuar a obter o mesmo efeito. evitar que a JNA, no âmbito daquela execução, recupere integralmente o seu crédito.
5. Pelo exposto, o presente pedido de revitalização, a par com o anterior, consubstancia claramente o exercício abusivo de um direito (art° 334° do Código Civil), cujo detentor o exercita fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e, em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, unicamente com a intenção de prejudicar os direitos da credora JNA naquela venda judicial.
6. Ora, tal não pode - de forma alguma - ser permitido, devendo os propósitos do devedor ser travados logo liminarmente, como sabiamente o fez o Tribunal a quo. Assim clama a justiça e o direito! É que, contrariamente ao reiterado pelo devedor que muito fala em conceitos como interesse público e preservação do bom funcionamento do mercado para defender o que claramente é indefensável, justiça é pagar as dívidas aos credores e não, como in casu ocorre, tentar a todo o custo fugir às suas responsabilidades...
7. Acresce que, há aqui um pormenor interessante que contribui ainda mais para a defesa da aplicação do n° 6 do art. 17°- G ao caso: o plano foi aprovado pelos credores fora do prazo legal imperativo previsto no n° 5 do art. 17°-D; foi esta a razão que conduziu à sua não homologação, não podendo ser outra a atitude a tomar pelo tribunal dada a violação de norma legal imperativa. A partir do momento em que o prazo foi transposto, a homologação do plano passou a ser uma causa perdida.
8. Ora, pergunta-se: tendo no fundo o processo encerrado devido à ultrapassagem do prazo legal, não há aqui que recorrer à analogia para fundamentar a aplicação da proibição do n° 6 ao caso?
9. Afigura-se-nos, claramente, que sim.
10. Por conseguinte, por todo o exposto, deve ser mantida a decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial de processo especial de revitalização apresentado pelo devedor J..., encontrando-se o mesmo impedido de recorrer a este mecanismo no prazo de dois anos.
-Quanto à ampliação do objecto do recurso
11. Como já é de conhecimento geral, o devedor não é titular de qualquer empresa, estabelecimento comercial ou organização, nem desenvolve em nome próprio e por sua conta qualquer actividade.
12. O requerente não possui qualquer trabalhador ao seu serviço, pelo que não pode ter dívidas à Segurança Social. Não possui clientes nem fornecedores, não possui dívidas à Fazenda Pública, em suma não possui qualquer organização ou factores de produção ou aviamento em ordem ao desenvolvimento de qualquer actividade comercial, industrial ou de serviços que necessite de ser revitalizada. Dito de outro modo: o devedor não prossegue um único interesse que esteve na base da criação do regime jurídico do PER!
13. Não pode, assim, estar em causa o encerramento de qualquer estabelecimento ou empresa ou a cessação de qualquer actividade dinâmica, geradora de emprego ou valor.
14. Ora, o PER só faz sentido quando aplicado a pessoas que tenham actividade económica e mantenham o respectivo giro que se pretende recuperar pois se não for assim, e mormente nos últimos três anos, ou o seu representante não for titular de qualquer empresa e estabelecimento, como é o caso do devedor, nem se põe a perspectiva de continuidade ou de liquidação e consequentemente este processo é manifestamente inviável ab initio .
15. Um plano de revitalização, qualquer plano de revitalização, tem que pressupor sempre e necessariamente resultados operacionais ou lucros futuros, o que implica o exercício efectivo de uma qualquer actividade geradora de riqueza ou valor.
16. Assim, na realidade, o presente plano que o devedor pretende iniciar nestes autos destina-se a eliminar as acções judiciais em curso contra ele e não a revitalizar qualquer empresa ou actividade.
17. O que o Requerente pretende é muito simplesmente conservar intacto o seu património à custa de enorme sacrifício financeiro dos credores, através da instrumentalização do regime jurídico do PER.
18. Quer no processo de insolvência quer no processo de revitalização são absolutamente necessários e indispensáveis à realização dos fins neles prosseguidos, conhecer: a) a relação de bens do devedor e, pelo menos, a estimativa do seu valor (cfr. art°s 24°, n° 1, alínea e) e 195°, n° 2, alínea a) do GIRE); b) tudo o que respeita a elementos contabilísticos e de informação (cfr. art°s 24°, n° 1, alíneas)), g) e h) e 195°, n° 3, alíneas a) e c)).
19. A avaliação da recuperação ou de um Plano de Insolvência ou de Revitalização, de qualquer desses Planos, além de pressupor sempre e necessariamente a observância do disposto nos art°s 24° e 195°, exige também a manutenção em actividade da empresa, na titularidade do devedor.. e pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, plano de investimentos, conta de exploração... e demonstração previsível de fluxos de caixa e - muito importante - o balanço pró-forma, em que os elementos do activo e do passivo, tal como resultantes da homologação do Plano de Insolvência, são inscritos pelos respectivos valores (art° 195°, al. c)).
20. Ora, nada disto existe nos presentes autos como é impossível existir porque o devedor não exerce qualquer actividade comercial, industrial ou de serviços nem possui qualquer estabelecimento comercial ou empresa. Nem contabilidade possui!
21. Ora, como certamente resulta da própria p. i. não há uma empresa ou estabelecimento em causa, é impossível existir qualquer despedimento ou a manutenção do devedor no giro comercial ou qualquer plano de negócios viável e credível que evidencie a capacidade do devedor de gerar fluxos de caixa necessários ao plano de revitalização... Ou seja, não há aqui, no fundo, nada para recuperar ou revitalizar.
22. Como vimos o PER foi construído tendo como objectivo a recuperação de agentes económicos, isto é, de comerciantes, de empresários ou de quem exerce uma actividade autónoma e por conta própria que gera receita e/ou cria emprego, não sendo por conseguinte aplicável às pessoas singulares que não sejam devedores empresários.
23. Ou seja, torna-se necessário que o devedor, directamente, crie riqueza e contribua para o crescimento económico, o que não sucede, por exemplo, com trabalhadores por conta de outrem (como é o caso do requerente) ou pessoas desempregadas. Nas palavras do Tribunal da Relação de Évora de 09.07.2015 (processo n° 718/15.3 TBSTR.E1), resulta, com clareza, que a intenção do legislador, ao criar o PER, foi a de permitir a revitalização da actividade económica do devedor agente económico e não de quaisquer outros devedores, nomeadamente pessoas singulares trabalhadores por conta de outrem .
24. Como sabiamente explica o STJ no seu acórdão de 10.12.2015: 1- Com a revisão de 2012, foi alterada a filosofia que estava originalmente subjacente ao CIRE, assente num sistema de falência/liquidação, passando a privilegiar-se a recuperação do devedor; II- Foi, assim, com este objectivo que foi criado o processo especial de revitalização, tido como solução eficiente para a referida recuperação e no combate ao desaparecimento de agentes económicos e ao inerente empobrecimento do tecido económico português; Hl- Neste pressuposto, as normas que regem o PER devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo especial não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou que não desenvolvam uma actividade económica por conta própria; IV- Para além de ser essa a solução compatível com o referido objectivo, anunciado pelo legislador, é também a que se adequa à situação do devedor que não exerça essa actividade económica: sendo-lhe inerente uma situação patrimonial estática, o PER não poderia visar a manutenção de uma actividade que este não exerce e promover uma recuperação, que não passaria, necessariamente, de simples exoneração do passivo .
25. Por outro lado, há que não olvidar, existe no âmbito da insolvência um procedimento particularmente adequado - o plano de pagamentos (arts. 249° e segs. do CIRE) - de que pessoas singulares como o aqui devedor podem beneficiar, permitindo que estas sejam poupadas a toda a tramitação do processo de insolvência (com apreensão de bens, liquidação, etc.), evitem, quaisquer prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraiam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa (Preâmbulo do DL n°53/2004, de 18/3).
26. Acrescente-se que o facto de o devedor ser gerente/administrador em nada altera a posição supra defendida.
27. Desde logo, a qualidade de gerente ou administrador de uma sociedade comercial não permite, sem mais, que o requerente seja tido como comerciante.
28. Como refere Ferrer Correia, a circunstância de ser sócio e gerente de uma sociedade, só por si, não garante a qualidade de comerciante. É que, por um lado, o gerente, enquanto tal, é um mandatário, agindo em nome e no interesse do representado. Por outro lado, as sociedades são pessoas jurídicas diferentes dos sócios (cfr. art. 108° do C. Comercial) pelo que os actos de comércio praticados por estes, como sócios, são actos da pessoa jurídica sociedade. Por isso, quem exerce o comércio é a própria sociedade, não os sócios .
29. Acresce que, como o próprio STJ sublinha no seu acórdão de 03.10.2002, não é o facto de o requerente ter prestado avales, na qualidade de sócio gerente da sociedade subscritora, que lhe confere a qualidade de comerciante, já que a prática desse acto não indicia, nem sequer de maneira remota e vaga, o exercício profissional do comércio.
30. Pelo contrário, sendo o aval, por norma, um acto gratuito, embora interessado, reveste-se de um condicionalismo jurídico próprio que aponta para a sua qualificação como acto não comercial, ou melhor, não realizado no exercício do comércio (cfr. Acórdão supra citado).
31. Há que não confundir a actividade de gerente/administrador com a sociedade comercial que é administrada. Isto porque o que está aqui em causa não é a revitalização de uma das sociedades das quais o requerente é gerente ou administrador, mas antes a própria recuperação do requerente, pessoa singular, a título pessoal.
32. Deste modo, pelo supra exposto, conclui-se que o devedor não tem legitimidade substantiva para instaurar um Processo Especial de Revitalização.
Nestes termos e nos melhores de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se o indeferimento liminar do requerimento inicial de processo especial de revitalização apresentado pelo devedor.
Assim confiadamente se espera ver julgado porque assim se mostra ser de Lei e de Direito.
5- A credora J. Nelson Abreu, S.A. também apresentou recurso subordinado, o qual não foi admitido (ver fls. 158 e 158v°).
II - Fundamentação
a) A matéria de facto provada a considerar é a seguinte :
1- O Requerente J..., viúvo, filho de Henrique de Sá e de Conceição de Freitas, nasceu a 1/2/1933, na freguesia de Santa Maria Maior, concelho do Funchal.
2- O Requerente contraiu casamento, em 18/10/1959, com Maria Helena Lopes da Silva Sá, falecida em 16/8/2010.
3- O Requerente intentou, em Fevereiro de 2014, um Processo de Revitalização, ao qual foi atribuído o n° 459/14.9 TBFUN, que correu os seus termos pela Instância Central, Secção de Comércio, J2.
4- Foi apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência Provisório o Plano de Revitalização bem como os respectivos sentidos de voto.
5- Por decisão proferida em 20/2/2015 pela Instância Central, Secção de Comércio, J2, foi recusada a homologação do Plano em virtude de se ter considerado ter sido excedido o prazo legal para as negociações.
6- Por Acórdão proferido pelo S.T.J. em 5/4/2016 foi mantida a decisão de não homologação do Plano.
b) Como resulta do disposto nos art°s. 635° n° 4 e 639° n° 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação do recorrente, as questões em recurso consistem em determinar :
-Se é possível ao apelante instaurar o presente Processo Especial de Revitalização antes de decorrido o prazo de dois anos previsto no art° 17°-G n° 6 do C.I.R.E..
-Se é possível o apelante, enquanto pessoa singular, lançar mão do Processo Especial de Revitalização.
c) O PER (Processo Especial de Revitalização) foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pela Lei 16/2012 de 20/4 que alterou o C.I.R.E. e dirige-se a qualquer devedor que se encontre em situação económica dificil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas em que essa situação ainda seja susceptível de recuperação (art° 17°-A do C.I.R.E.).
Trata-se sempre de um processo negocial, sob a orientação e fiscalização de um administrador judicial provisório, visando-se a obtenção de um acordo entre o devedor e uma maioria de credores, que seja capaz de suportar a viabilização da empresa (art° 17°-D do C.I.R.E.).
A finalidade deste processo é, pois, a recuperação do devedor, em prejuízo da liquidação imediata do seu património para satisfação dos credores, em detrimento da imediata liquidação do património do devedor.
A Lei n° 16/2012 de 20/4 representa uma verdadeira mudança de paradigma do regime insolvencial com vista à prossecução do interesse público de defesa da economia, assente na filosofia de que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas (cf. Proposta de Lei 39/XII da Presidência do Conselho de Ministros).
Concluídas as negociações com a celebração de um acordo, o qual pressupõe sempre a respectiva aprovação por uma maioria qualificada de créditos, é o mesmo sujeito a homologação judicial (art° 17°-F do C.I.R.E.), a qual, a ocorrer, torna o acordo vinculativo para a generalidade dos credores, mesmo que não hajam participado nas negociações.
A homologação judicial destina-se a aferir também da conformidade legal das medidas aprovadas.
À homologação ou não homologação do plano aplicam-se, com as necessárias adaptações, as regras previstas no Titulo IX, em especial nos art°s. 215° e 216° do C.I.R.E. (cf. art° 17°-F n° 5do C.I.R.E.).
Assim, o tribunal deve recusar a homologação, designadamente, no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao conteúdo do acordo (art° 215° n° 1 do C.I.R.E.), bem como em caso de violação do princípio da igualdade dos credores (art° 194° do C.I.R.E.).
d) Feita esta breve análise do Processo Especial de Revitalização, há que referir que haverá que tratar primeiro da segunda das questões suscitadas em sede de recurso, até por força das alterações ao C.I.R.E. introduzidas pelo Decreto-Lei 79/2017 de 30/6.
Tais alterações entraram em vigor no dia 1/7/2017 (cf. art° 8° do referido diploma).
E nos termos do disposto no art° 6° n° 1 do Decreto-Lei 79/2017 de 30/6, as disposições do presente decreto-lei são imediatamente aplicáveis aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor, com excepção do disposto nos números seguintes.
Assim sendo, as alterações ao C.I.R.E., decorrentes do supracitado diploma, são de aplicar aos presentes autos.
Ora, o art° 1° do C.I.R.E. dispõe actualmente no seu n° 1 que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. E acrescenta o n° 2 do mesmo preceito que estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, a empresa pode requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17°-A a 17°-J.
Assim, a nova redacção conferida ao art° 1° do C.I.R.E. vem esclarecer, de forma inequívoca, que o Processo Especial de Revitalização passa agora a ser utilizado apenas por empresas e já não por pessoas singulares, para as quais foi criado um processo especial para acordo de pagamento (cf. art° 1° n° 3 do C.I.R.E.).
Esta norma veio pôr fim a alguma controvérsia jurisprudencial, consagrando o rumo para o qual já apontava a maioria dessa mesma jurisprudência (cf. por todos o Acórdão da Relação de Lisboa de 21/4/2016, consultado na internet em www.dgsi.pt, onde consta no seu Sumário : As normas que regem o Processo Especial de Revitalização devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade económica autónoma e por conta própria).
e) Assim sendo, e uma vez que o apelante é uma pessoa singular, e por imposição do novo regime legal, haverá que, embora com fundamento diverso, rejeitar liminarmente o requerimento inicial do Processo Especial de Revitalização apresentado pelo recorrente.
f) Sumário :
Em face das alterações introduzidas no C.I.R.E. pelo Decreto-Lei 79/2017 de 30/6, é inequívoco que o Processo Especial de Revitalização se destina a ser utilizado apenas por empresas, e já não por pessoas singulares, para as quais foi criado um processo especial para acordo de pagamento.
III - Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida, embora com fundamentos diversos. Custas : Pelo recorrente (artigo 527° do Código do Processo Civil).
Processado em computador e revisto pelo relator
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2018
Pedro Brighton
Teresa Sousa Henriques
Isabel Fonseca