Proc. 92/17.3T8LSB-B.L1 7ª Secção
Desembargadores: Luís Filipe Pires de Sousa - Carla Inês Câmara - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Proc. Nº 92/17.3T8LSB-B.L1
Recorrente: M...
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO
No processo acima identificado foi declarada a insolvência de M... por sentença de 11.1.2017, transitada em julgado.
Tendo o mesmo declarado, no requerimento inicial, pretender a exoneração do passivo restante, em 3.10.2017, foi proferido o seguinte despacho:
«Da exoneração do passivo restante
M..., contribuinte fiscal n.º …, residente na Praça D…, n.º …, 1950-001 Lisboa, apresentou-se à insolvência, alegando que se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.
Declarou, no requerimento inicial, pretender a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos artigos 235.9 e seguintes do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas.
Por sentença de 11 de Janeiro de 2017 transitada em julgado, foi declarada a insolvência da devedora.
Realizou-se assembleia de apreciação do relatório - cf. ata de fls. 65-66 - no decurso da qual não foi deduzida oposição à concessão liminar da exoneração do passivo restante.
Nos termos do disposto no artigo 235.2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.
O pedido de exoneração é efetuado no requerimento de apresentação à insolvência ou, caso não se trate de apresentação, no prazo de 10 dias posterior à citação, podendo ser apresentado posteriormente, até à assembleia de apreciação do relatório - art. 236.º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Não havendo motivo para indeferimento liminar, o despacho inicial relativo ao pedido de exoneração do passivo restante é proferido na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes - art. 239.º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O despacho inicial, momento processual em que nos encontramos, destina-se a aferir da existência de condições mínimas para aceitar o requerimento contendo o pedido de exoneração - cf. Assunção Cristas in Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis, 2005, Edição Especial Novo Direito da Insolvência, pág. 169.
Este despacho, não sendo de indeferimento liminar, estabelece um ónus a cargo do devedor, uma vez que lhe diz que durante os cinco anos posteriores ao encerramento da insolvência tem que observar as imposições previstas no art. 239.º e, se o fizer, será concedida a exoneração e ficará liberto das suas obrigações. Se não o fizer a exoneração não será concedida e continuará vinculado nos termos gerais.
Assim, nesta sede, apenas se aprecia o preenchimento dos requisitos do art. 238.º, iniciando-se um período probatório que pode resultar na exoneração do passivo restante.
No caso concreto e de acordo com os elementos disponíveis nos autos:
. O requerimento de exoneração do passivo restante foi apresentado pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência - 238.º, nº1, al. a) e 236.º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
. O requerente declarou não se verificarem quaisquer das causas de indeferimento previstas no artigo 238.º;
. Não consta dos autos qualquer indício ou elemento que permita concluir pela existência dos impedimentos previstos nas alíneas b) e c) do nº1 do art. 238.º;
. Não constam dos autos quaisquer elementos que indiciem a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência - al. e) do nº1 do art. 238.º;
. Nada consta igualmente quanto às causas de indeferimento previstas nas alíneas f) e g) do nº1 do art. 238.º;
. O Requerente é viúvo, vivendo sozinho;
. Encontra-se reformado, auferindo mensalmente pensões que totalizam a importância de € 754,41;
. Despende mensalmente € 350,00 em renda de casa, € 200,00 em alimentação, € 100,00 em consumos de eletricidade, água e gás e €50,00 em medicação.
Como resulta da enumeração supra, o único requisito que nos merece análise mais aprofundada é o previsto na alínea d) do n21 do art. 238.2, ou seja, violação do dever de apresentação à insolvência.
O devedor é uma pessoa singular, não sendo titular de uma empresa na aceção prevista no art. 5.9 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, razão pela qual não se encontra abrangida pelo dever de apresentação à insolvência previsto no art. 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - primeira parte da alínea d) do nº1 do art. 238.º.
Exige também a lei que o incumprimento do dever de apresentação à insolvência consubstancie prejuízo para os credores, que a jurisprudência superior já estabilizou não consistir no mero vencimento de juros moratórios, como resulta da exaustiva enumeração constante do Ac. TRL de 19.06.2014 (disponível para consulta em www.dgsi.pt), razão pela qual, em concreto, não se considera preenchido o fundamento de indeferimento liminar previsto na alínea d) do nº1 do art. 238 do CIRE.
Por outro lado, também é entendimento consolidado na jurisprudência o facto de a inexistência de bens ou rendimentos não ser obstáculo à concessão da exoneração e seu despacho liminar - como tem sido decidido e é mais uma vez enumerado no mesmo Acórdão do Tribunal da Relação citado - até porque tais rendimentos ou bens podem vir a ser adquiridos no período de exoneração, ficando abrangidos pela cessão que então vigora.
Não se vislumbram, assim, quaisquer fundamentos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, encontrando-se reunidos todos os requisitos para que seja proferido despacho inicial.
No que concerne à fixação do rendimento para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar - artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i) do GIRE - há que ter em consideração que terá que ser avaliado caso a caso, sopesando todas as circunstâncias, tendo em conta, por um lado, que se trata de uma situação transitória, durante a qual o devedor deverá reajustar os seus hábitos de consumo, nomeadamente, na contenção de despesas e perceção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, por outro, atender ao que é indispensável para assegurar as necessidades básicas do insolvente e respetivo agregado familiar em consonância.
In casu, atentos os factos acima relatados e alegados pelo requerente constata-se que a requerente vive só, auferindo mensalmente entre € 754,41.
As suas despesas consistem em € 350,00 em renda de casa, € 200,00 em alimentação, €100,00 em consumos de eletricidade, água e gás e € 50,00 em medicação.
Assim, sopesando a necessidade de salvaguarda da subsistência condigna da requerente, não obstante as dificuldades que enfrenta, entende-se que um salário mínimo nacional é consentâneo com a sua situação, devendo a requerente ajustar e adequar, ainda que com esforço, as suas despesas em consonância com o salário mínimo nacional.
Com efeito, a insolvente não pode pretender continuar a usufruir das mesmas condições que mantinha antes de se encontrar em estado de insolvência, tendo que ter presentes os interesses dos credores bem como os sacrifícios que deste seu estado lhe advirão para satisfazer as suas obrigações, sendo que o legislador concedeu um período limitado para esses sacrifícios - 5 anos, após o encerramento do processo.
Neste sentido, cf. o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6.07.2016, Processo n.2 3347/15.8T8AC8-D.C1, disponível para consulta in www.dgsi.pt.
Pelo exposto, nos termos do art. 237.º, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas:
1 - Admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente M..., contribuinte fiscal n.º …, residente na Praça D…, n.º 4, … Lisboa;
2 - Nomeio, para desempenhar as funções de fiduciário o Administrador da Insolvência que desempenha funções nestes auros, o Sr. Dr. Luís Miguel Batista Teles Nogueira, inscrito na lista oficial de Administradores Judiciais da comarca de Lisboa, com domicilio profissional na Rua das Oliveiras, 20, Fanqueiro, 2670-362 Loures;
3 - Fixo a remuneração do fiduciário em 10/prct. das quantias objeto de cessão, com o limite máximo de €5.000,00 anuais, a qual será suportada pela insolvente - arts. 240.º nºs 1 e 2, 241.º, nº1, al. c) e 60.º, nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e 28.º da Lei nº 22/2013 de 26/02;
4 - Determino que o rendimento disponível que a devedora venha a auferir durante o período da cessão, que é de cinco anos contados da data de encerramento do processo, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado - 239 nº2, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
5 - Consigna-se que integram o rendimento disponível da devedora todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título, com exceção dos enumerados nas alíneas a) e b) do nº3 do art. 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, fixando-se para os efeitos previstos na al. b), subalínea i), no caso, e tendo em conta a composição do agregado, o equivalente a uma vez o salário mínimo nacional;
6 - Durante o período da cessão, e sob pena de não lhe ser concedida, a final, a exoneração do passivo restante, durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a - 239.º nº4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, devendo informar este Tribunal e o fiduciário, ora nomeado, sobre os seus rendimentos e património na forma e prazo que tais informações lhe sejam requisitadas;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) Informar este Tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicilio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado, sobre as diligências com vista à obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar especial vantagem para algum deles.
Excetuam-se da exoneração do passivo os créditos tributários, nos termos do disposto no art. 245º n°2, al. d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«1. A sentença recorrida viola os princípios do CIRE.
2. Pois o recorrente demonstrou com documentos que os valores que ficam para viver são insuficientes
3. O prejuízo que eventualmente que os credores poderiam ter sofrido
4. O prejuízo a que se refere o art. 238º nº1 alínea d) deverá corresponder a um prejuízo concreto que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha odio efetivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso à apresentação da insolvência.
5. Cabia aos credores, o dever de virem reclamar tais prejuízos o que não aconteceu e os que fizeram foram ressarcidos
6. Aliás nenhum dos credores levantou este assunto em processo. 7.0 recorrente esteve e sempre esteve de boa-fé
8.Não sonegou bens, e antes pelo contrário demonstram os seus rendimentos na sua totalidade
9. Tanto mais que nenhum credor foi prejudicado
10. Prejudicada será a insolvente que viverá apenas com 1 smn e desta forma será votada a desgraça e viverá muitíssimo mal, face a medicação que toma e as despesas que se adivinha, para além da sua reforma que certamente será a roçar o smn.
11. Pelo que para a sua dignidade se requerer o aumento da exoneração para 1 smn e meio.
Nestes termos e nos demais, requer-se a V. Exa. que seja revogada a sentença que decretou a exoneração e alterá-la por outra que disponibilize à recorrente 1 smn e meio para viver nos próximos 5 anos com as consequências legais, Assim se fará a acostumada Justiça.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.
Nestes termos, a questão a decidir consiste em aquilatar do acerto do valor do rendimento disponível do devedor fixado pelo tribunal a quo.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância para a decisão de mérito, está provada a factualidade constante do relatório que aqui se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Em primeiro lugar, cumpre referir que o apelante não impugnou a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo nos termos e para os efeitos do Artigo 6402 do Código de Processo Civil, razão pela qual nada há a alterar aos factos relevantes para a apreciação da apelação.
Posto isto, nos termos do Artigo 663º, nº5, do Código de Processo Civil, «Quando a Relação entender que a questão a decidir é simples, pode o acórdão limitar-se à parte decisória, precedida da fundamentação sumária do julgado, ou, quando a questão já tenha sido jurisdicionalmente apreciada, remeter para precedente acórdão, de que junte cópia.»
A menção à junção da cópia só colhe sentido no caso de remissão para acórdão não publicado. Tratando-se de acórdão publicado em www.dgsi.pt, bastará a identificação do mesmo.
Ora, a questão de direito colocada neste recurso já foi proficientemente analisada no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.10.2016, Carla Câmara (ora 1ª adjunta), 1855/14.7CLRS-7, www.dgsi.pt, para o qual remetemos nos termos e para os efeitos do Artigo 663º, nº5, do Código de Processo Civil. A posição que ora adotamos já foi expressa anteriormente nos Acórdãos proferidos nos processos nºs. 13777/13.4T2SNT, de 31.1.2017, 3036/16.6T8BRR, de 7.3.2017, 5820/17.4T8LSB-C.L1, de 23.1.2018.
De tal acórdão (1855/14.7CLRS-7) resultam duas ideias-chave e decisivas:
i. O montante equivalente a um salário mínimo nacional constitui o limite mínimo de exclusão e
ii. Nos casos em que o agregado familiar do insolvente integra outros elementos, há que apelar a um critério objetivo consistente na escala da OCDE, a «escala de Oxford», para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar, nos termos da qual o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0,7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5.
Aplicando-se os referidos critérios, temos que o montante necessário à sobrevivência do insolvente será de € 557 (valor do salário mínimo para 2017), atualizado para € 580 a partir de 1.1.2018 (Decreto-lei n9 156/2017, de 28.12). Todavia, há que atentar que tal remuneração mensal garantida ocorre 14 vezes no ano e não 12. Conforme se refere no Acórdão desta Relação de 27.2.2018, Higina Castelo, proferido no Processo 1809/17.1T8BRR.L1:
«Sendo a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano, e constituindo o salário mínimo anual 14 vezes aquele montante mensal (arts. 263 e 264, n.º 2, do Código do Trabalho), o mínimo necessário ao sustento minimamente digno não deverá ser inferior à remuneração mínima anual.
Ou seja, se o tribunal, ao fixar o valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno, disser que será esse valor retido 14 vezes ao ano, então cada uma das parcelas não deverá ser inferior à remuneração mínima mensal garantida (atualmente € 580); se, o juiz, ao fixar o valor do rendimento indisponível disser que esse valor será retido 12 vezes ao ano, então esse valor não deverá ser inferior à retribuição mínima nacional anual (ou seja, € 580x14) a dividir por doze.
Esta perspetiva vai ao encontro do conceito de «Retribuição mínima nacional anual (RMNA)» definido no art. 3.º do DL 158/2006, de 8 de agosto, como «o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses».
Os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho e não extras para umas férias ou um Natal melhorados. A retribuição mínima nacional anual é constituída pela retribuição mínima mensal garantida multiplicada por 14, pelo que o salário mínimo nacional garantido mensalizado corresponde à retribuição mínima mensal garantida multiplicada por 14 e dividida por doze. É, no mínimo, deste valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento; e é este valor médio mensal que o Estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno.»
O tribunal a quo não fez esta precisão a qual, na prática, corresponde a uma majoração face ao decidido na primeira instância.
Consoante se referiu pertinentemente na decisão da primeira instância, o apelante terá de ajustar e adequar, ainda que com esforço, as suas despesas em consonância com o salário mínimo nacional.
Termos em que procede parcialmente a apelação.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, fixando-se o valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno do apelante na remuneração mínima mensal garantida de € 557 em 2017 e € 580 em 2018, catorze vezes ao ano.
Custas pelo apelante na proporção de 23/prct. (Artigo 527º, nº1, do Código de Processo Civil).
Lisboa, 13.3.2018
(Luís Filipe Sousa)
(Carla Câmara)
Voto em conformidade só não assinando por não me encontrar presente (Artigo 153º, nº1, in fine do Código de Processo Civil ), Higina Castelo.