1 - Numa situação em que a criança foi sinalizada por alegados abusos sexuais por parte do pai, não basta para afastar a situação de perigo que originou o processo de promoção e protecção, a suspensão das visitas entre a criança e o progenitor arquivando-se seguidamente os autos.
2 - De acordo com os princípios elencados no art.° 4.° da LPCJP, numa situação como a presente em que podem estar em causa abusos sexuais contra a menor, perpetrados pelo pai, impõe-se aplicar uma medida que cumpra os objectivos previstos no art.° 34.° da LPCJP.
Proc. 5528/13.0TCLRS-C.L1 6ª Secção
Desembargadores: Maria de Deus Correia - Nuno Manuel Machado e Sampaio - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
_______
Processo n.° 5528/13.OTCLRS-C.L1
Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
Sumário:
I-Numa situação em que a criança foi sinalizada por alegados abusos sexuais por parte do pai, não basta para afastar a situação de perigo que originou o processo de promoção e protecção, a suspensão das visitas entre a criança e o progenitor arquivando-se seguidamente os autos.
II-De acordo com os princípios elencados no art.° 4.° da LPCJP, numa situação como a presente em que podem estar em causa abusos sexuais contra a menor, perpetrados pelo pai, impõe-se aplicar uma medida que cumpra os objectivos previstos no art.° 34.° da LPCJP.
I-RELATÓRIO
D..., notificado da sentença, datada de 14-11-2017, que extingue o processo de promoção e protecção relativamente à menor I..., nascida a 20-06-2012, filha do Apelante e de M..., vem da mesma interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1.Em sentença de 14.11.2017, de que ora se recorre consta «...Encontra-se pendente processo-crime para apuramento de tais factos. Por outro lado, compulsados os autos principais verifico que a menor não reside com o pai, tendo sido suspensas as visitas e os convívios da mesma com o progenitor, mostrando-se, assim, afastada a situação de perigo que originou o presente processo, pelo que importa declarar encerrada a instrução e determinar o arquivamento dos autos, por terem deixado de estar reunidos os pressupostos para a intervenção (art° 3° da L. P. C.J.P.). Pelo exposto, e ao abrigo das citadas disposições legais determino o oportuno arquivamento dos autos...».
Não obstante encontrarmo-nos perante um processo de jurisdição voluntária nos termos do art.° 100.° da LPCJP, de harmonia com o Acórdão do STJ de 28.02.2008, de harmonia com o disposto no art.° 126.° da LPCJP, são aplicáveis subsidiariamente, com as devidas adaptações, na fase de debate judicial e de recurso, as normas relativas ao processo civil declarativo comum.
3. Não excluindo dos processos tutelares cíveis o dever de fundamentação nos mesmos moldes que em processo contencioso, nos termos do art.°152.° e 615.°, alínea b) do CPC, neste sentido pronunciou-se o Acórdão do TRC, de 15.01.2013.
4. No âmbito do processo de jurisdição voluntária, deve ser fundamentada, por lhe serem aplicáveis as disposições do Código de Processo Civil. Impondo também aqui, o deve geral de fundamentar tanto no plano fáctico, como no plano jurídico, a decisão por si proferida.
5. Sob pena da sua nulidade nos termos do art.° 615.°, n° 1, al. b) do CPC, bem assim, quando embora fundamentado, a mesma seja manifestamente insuficiente e despicienda, parca e vaga e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, como é o caso presente.
6. Não podendo, por isso, ser derrogadas normas que garantam o cumprimento de deveres fundamentais do Estado para com os cidadãos, nomeadamente no que se refere ao cabal cumprimento do dever de fundamentação de sentença, sob pena de prejudicar irremediavelmente o direito de a mesma ser compreendida e de se recorrer dos seus fundamentos, nos termos do disposto, entre outros, no art.° 607.°, n.° 4 e 615.°, alínea b) do CPC.
7. Permitindo, através da fundamentação cabal, rigorosa e criteriosa que se impõe, nos termos do art.° 202.° e 205.°, n.° 1 da CRP como dever fundamental e respaldado no art.° 152.° e 615.°, alínea b) do CPC, o controlo crítico da decisão e evitar a arbitrariedade das decisões, conforme Acórdão do TC n° 304/88, de 14/12 no BMJ 382/230 e no DR, II Série, de 11/04/1989, Acórdão da Relação de Guimarães, de 06.10.2011.
8. Contudo, a sentença de que se recorre de 14.11.2017, está muito longe do rigor exigido para o dever legal e constitucionalmente consagrado de fundamentação de decisão, inexistindo na sentença qualquer juízo critico, rigoroso ou sequer, de avaliação da prova existente nos autos que justificassem aquela decisão.
9. A qual, além de vaga, parca, despicienda é, também, uma decisão surpresa, pois que, face às sucessivas alegações de abusos sexuais por parte da recorrida e avó materna da criança, face aos arquivamentos anteriores, demais processos-crimes pendentes, incluindo de difamação e processo que reconheceu a prática de crime de ameaça contra a vida do recorrente por parte da avó materna, tendo beneficiado de suspensão provisória do processo, assim como, relatórios do INML, relatórios da Associação Passo a Passo, relatório da ECJ e, a já marcada diligência para audição da criança, dos progenitores e avó materna e peticionadas as perícias psicológicas e sobre a personalidade, então desmarcada de véspera - nada fazia prever o arquivamento dos autos de promoção e protecção.
10. Nem tal se compreende nem se coaduna com o superior interesse da criança nos termos do art.° 3.°, alíneas b) e f) e art.° 4.°, alíneas a) e g) da LPCJP, nem tal resulta claro ou sequer fundamentado na sentença, sendo, por isso, nula por omissão do dever de fundamentar, ou pelo menos, manifestamente insuficiente, nunca podendo, face à natureza do conflito existente, poder ser considerado afastado o perigo pelo mero facto de terem sido suspensos os convívios - tal decisão tem caracter meramente provisório e não definitivo, e estão pendentes em fase de inquérito, processos-crime.
11. Nada disto resulta da sentença, da sua análise ou apreciação critica que permita justificar a decisão tomada, apresentando-se (com o perdão das palavras) leviana.
12. Termos em que, face ao exposto e perante as disposições legais citadas, se requer que seja decretada a procedência da nulidade da sentença por falta de fundamentação, pois que, não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nos termos do disposto, entre outros, nos art.° 152.°, 154.°, 607.°, n.° 4, e 615.°, n.° 1, alínea b) do CPC, sem prejuízo do reconhecimento da violação dos deveres fundamentais consagrados nos termos dos art.° 6.° da CEDH, 20.°, n.° 4 e 203.°, 204.°, n.° 1, e 205.°, n.° 1 da CRP.
II-Da omissão de pronúncia
1. Deu entrada nos presentes autos requerimento sob a Ref. 27349578, procedendo à atualização e conformação de toda a factualidade dos autos com junção de prova, peticionando pelo imediato restabelecimento da convivência familiar face à inexistência de elementos objectivos que justificassem a continuação da suspensão dos convívios.
2. Em sede de sentença, nada foi referenciado acerca da pretensão do pai recorrente, ou sequer das provas documentais juntas aos presentes autos, furtando-se o douto tribunal a quo de se pronunciar sobre os mesmos fazendo um juízo apreciativo dos elementos e factos trazidos aos autos.
3. Não obstante já anteriormente, em 20.07.2017, o pai recorrente ter peticionado e suscitado nos presentes autos o restabelecimento da convivência familiar face à inexistência de prova ou indícios da prática de crime de abusos sexuais.
4. Perante o referido requerimento o tribunal a quo pronunciou-se no sentido de aguardar pelo Relatório da ECJ, datado de 03.10.2017, entretanto junto aos autos - nada decidindo a respeito e, em 14.11.2017, decidindo tão-só pelo arquivamento dos autos, sem mais.
5. Nada referindo ou justificando a respeito do requerido e prova junta, permitindo deliberadamente e sem sustentação factual e documental que o recorrente pai fique privado da convivência familiar há 6 meses. Pedido reiterado recentemente nos autos, em requerimento sob a Ref. 27349578.
6. Desde já se refere que «...o vício processual de omissão de pronúncia reconduz-se a uma ausência de emissão de um juízo apreciativo sobre uma questão processual ou de direito material-substantivo que os sujeitos tenham, expressamente, suscitado ou posto em equação perante o tribunal e que este, em homenagem ao princípio do dever de cognoscibilidade, deva tomar conhecimento...», como decorre do Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, de 15.10.2008, nos termos do disposto no art.° 615.°, alínea d) do CPC, no mesmo sentido que o Acórdão de 14.01.2015, sob pena de nulidade.
7. O Relatório da ECJ de 03.10.2017, originou a promoção de 12.10.2017, com despacho de 16.10.2017, determinando data para diligência, a qual foi dada sem efeito com o despacho de arquivamento de 14.11.2017 - sem nunca se ter pronunciado sobre o peticionado restabelecimento da convivência familiar, somente decidindo arquivar os autos.
8. Demitindo-se do dever de julgar nos termos do art.° 152.°, n.° 1 do CPC «...Os juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes...», o que não ocorreu nos presentes autos como se pode observar da sentença recorrida, denegando a justiça nos termos do art.° 20.° da CRP e art.° 6.° da CEDH, frustrando o direito fundamental de acesso à justiça, nos termos do art.° 615.°, alínea d) do CPC.
9. Termos em que deve ser julgada procedente a nulidade por omissão de pronúncia nos termos do art.° 152.°, n.° 1, 615.°, alínea d) do CPC, art.° 20.° da CRP e art.° 6.° da CEDH.
III-Da situação de perigo nos termos da alínea f) do art.° 3.º, n.° 2 da LPCJP - elementos do processo que impunham decisão diversa art.° 639.° do CPC
1.0 Relatório da ECJ, de fls. 66 a 71 dos presentes autos, com data de 03.10.2017, refere em página 4 do referido relatório da ECJ que «...a nível afectivo-emocional, são referidos sintomas como enurese, pesadelos e reacções agressivas (atirar objectos para o chão), os quais são indicadores de sofrimento psicológico, que poderá estar associado aos eventuais abusos por parte do pai ou à eventual fabulação de situações de abuso, por parte da avó materna e da mãe...».
2. Em página 5 «...a existência de acentuado conflito entre a família materna (mãe e avó materna) e o pai da Isabelly, e a recorrente suspeita de abuso sexual da menor por parte do progenitor, que não permite que a Isabelly possa disfrutar de um relacionamento adequado com ambos os pais, o que tem, certamente, consequências negativas para o seu desenvolvimento afectivo-emocional...»,
3. Acrescendo, «...A Isabelly não verbaliza com espontaneidade o eventual episódio de abuso por parte do progenitor, e quando o faz, fá-lo repetindo as mesmas palavras usadas pela mãe e pela avó materna...».
4. Concluindo que «...A avó materna e a mãe da Isabelly têm um discurso muito negativo no que respeita ao progenitor da Isabelly, acusando-o de violência para com a progenitora durante o relacionamento que mantiveram e, presentemente, de abusar sexualmente da filha, quando mantém contacto com a mesma...»
5. Em fls. 86 dos presentes autos, página 6 do Relatório da ECJ «...A ansiedade da avó materna levou-a muitas vezes a fazer observações e interrogatórios à Isabelly, cujas respostas corroboravam as palavras da avó, muito por incapacidade de compreensão e análise, expectáveis para uma criança de 4/5 anos...».
6. Concluindo pela verificação de perigo para a criança, quer pela necessidade de apurar das alegações de abuso, quer pela identificação de comportamento sintomáticos e padronizados de fabulação de abusos face à criança, recomendando a urgente realização de perícias.
7. Neste sentido, importa referir que, em página 5 do referido Relatório do INML de 09.05.2017, em fls. 394 a 397 dos autos principais, refere inexistirem indícios do evento.
8. Conforme página 3 e 4 do Relatório do INML, a criança, então de 4 anos, nada relata sobre o aludido evento abusivo, pelo contrário, relatando com entusiasmo o passeio pela horta e jardim zoológico.
9. As novas alegações de abuso surgiram na sequência da extinção da instância por despacho de 14.03.2017, por inutilidade superveniente da acção alteração das responsabilidades parentais sob o processo n.° 5528/13.OTCLRS-A, na sequência da primeira queixa-crime por alegados abusos sexuais sob o processo n.° 924/15.0T9LRS, arquivado em 14.12.2016.
10. Aquando do alargamento dos convívios em espaço exterior a avó materna, conforme fls. 321 a 327 dos autos principais, página 4, no dia do convívio de 22.04.2017, apresentou-se na Associação Passo a Passo informando que não iria autorizar a saída da criança com o seu pai, tendo-lhe sido informado que essa era uma decisão de pai e mãe.
11. Em 15.05.2017, a progenitora contactou a Associação Passo a Passo, conforme página 5 do supra referido Relatório de fls. 321 a 327 dos autos principais, tendo informado em relação aos convívios no exterior que «...em relação à minha mãe ela não concorda porque ela não gosta do pai (sic)...», em fls. 326 dos autos principais.
12. O último convívio exterior que o recorrente pai teve com a sua filha ISABELLY, data de 06.05.2017, cujos relatórios referem uma criança alegre, bem-disposta, com vinculação positiva e securizante em relação ao requerido pai, satisfação e entusiasmo com os convívios e interação qualitativa na díade pai-filha, conforme consta de fls. 326 dos autos principais.
13. Em 10.05.2017, a requerida avó materna levou a criança à urgência hospitalar do Hospital D. Estefânia em Lisboa, alegando abusos sexuais, conforme fls. 318 dos autos principais, e, posteriormente, em 17.05.2017, levou a criança ao Hospital Beatriz Angelo, em Loures - tendo, em ambos os Hospitais alegado que o pai abusava da criança, conforme fls. 331 a 335 dos autos principais.
14. Tal conduta desencadeou uma duplicação de processos-crime por alegados abusos sexuais, o processo n.° 1279/17.4T9LRS e o 3327/17.9T9SNT, encontrando-se nos autos principais o Relatório do INML de 09.05.2017, supra descrito.
15. Inexiste qualquer indício de que o requerido pai tenha abusado ou exercido qualquer maltrato sobre a criança, nunca tendo o pai recorrente sido sequer constituído arguido em qualquer dos processos, nem nunca acusado pelos factos.
16. Importa notar e tomar especial atenção para a dinâmica conflitiva e conduta de falsas alegações de abusos já sintomáticas e padronizadas nos autos, para as quais o relatório da ECJ de 03.10.2017, chama a atenção, referindo o facto de a criança trazer um discurso instrumentalizado, trazendo as mesmas verbalizações a progenitora e da avó materna, desprovido de espontaneidade.
17. Observa-se nos presentes autos uma conduta permanente de bloqueio à figura paterna numa busca desenfreada pela posse exclusiva da criança, da convivência e dos afectos, com exclusão do requerido pai.
18. Peticionando a avó materna nos autos principais por duas vezes em requerimento de 06.07.2017 e 14.09.2017, que «...se digne a proibir os convívios entre a menor e o progenitor, até a mesma perfazer a maioridade, uma vez que se afigura ser a única maneira de acautelar o seu bem-estar físico e psicológico...», conforme fls. 343 a 348.
19. Acrescendo que, aquando dos convívios supervisionados pela Associação Passo a Passo, a requerida avó materna da criança ameaçou o requerido pai à porta da instituição, do qual resultou o processo-crime n.° 468/16.3PKLRS, «...vou chupar o teu sangue pelas artérias, vou mandar matar-te, o seu está guardado, vais pagar com a vida seu malandro, bandido...», conforme consta de fls. 20 e 36 dos autos, em despacho de 24.05.2017, que correu os seus termos na 5.ª secção do DIAP da Comarca Judicial de Lisboa, tendo tido suspensão provisória do processo.
20.Situação absolutamente insana e altamente perturbadora para a criança com apenas 5 anos, colocando-a sob amor sob condição, porque amar um é trair o outro, conforme fls. 85 e 86 dos presentes autos de promoção e protecção, página 5 do Relatório do INML de 09.05.2017, em fls. 394 a 397, conjugados com os demais elementos mencionados, levando a repetir as verbalizações das requeridas avó e progenitora, expondo a criança de 5 anos ao seu conflito, fazendo a criança tomar parte, expondo-a a verbalizações e expectativas.
21. Sendo certo que a conduta empreendida pelas requeridas avó e progenitora, mascarada de uma superproteção obsessiva, tem colocado a criança sob forte risco para o desenvolvimento da sua personalidade e estrutura psico-emocional e intersubjectividade, colocando-a numa posição de amor sob condição levando a uma tensão interna de desintegração e perda de controlo.
22. Pelos comportamentos denotados, a criança está igualmente sujeita a coartação afectiva, revelando, uma relação fusional com as requeridas, projectando-se de forma narcísica através da infância judicializada da criança levando-a a vivenciar as amarguras dos adultos, retroalimentando-se sucessivamente do conflito.
23. Indubitavelmente esta criança está em perigo sim, mas pela exposição directa ao maltrato psico-emocional, pela exposição directa ao conflito, às verbalizações de conteúdo sexista que visam que a criança repita, e às expectativas que pretendem que a criança corresponda, nos termos do art.° 3.°, n.° 1, n.° 2, alíneas b) d) e f) da LPCJP.
24. De harmonia com o disposto nos termos da alínea b) e f) do art.° 3.0, n.° 2 da LPCJ, refere que se considera que uma criança está em perigo quando «...sofre maus tratos psíquicos...», ou «...Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional...» - o que se entende ser o caso dos presentes autos, como tem reiteradamente sido alertado o douto tribunal.
25. Dado que condicionará o desenvolvimento da personalidade da criança porque esta não possui mecanismos nem recursos internos para integrar as experiências negativas, sendo fundamental para a relação de vinculação afectiva positiva e securizante da criança, portanto vinculação qualitativa.
(...)
30. Porquanto, face ao exposto e disposições legais citadas, assim como, perante os concretos pontos de facto e elementos do processo apontados constantes dos autos, nos termos do disposto no art.° 639.°, n.° 2, alíneas a) e b), e 640.°, n.° 1, alíneas a) e b) do CPC, considera-se que o douto tribunal a quo interpretou erroneamente o art.° 3.° da LPCJP.
31. Entendendo, descuidada, senão algo leviana a postura de arquivar o processo com clara violação dos direitos fundamentais do superior interesse da criança nos termos do art.° 4.°, alínea a) e g) da LPCJP, art.° 26.°, n.° 1, 36.°, n.° 6, 69.°, n.° 1 da CRP e art.° 6.°, 8.° e 9.° da CEDH.
32. Porquanto, nos termos do art.° 639.° do CPC, os elementos e documentos constantes do processo supra mencionados impunham decisão diversa da tomada, não se coadunando com o arquivamento dos autos de promoção e protecção nos termos do art.° 110.0, n.° 1, alínea a) e 111.° da LPCJP, em conjugação com o art.° 3.0, n.° 2, alíneas b) e f) e art.° 4.°, alíneas a) e g) da LPCJP.
33. Termos em que se pugna pela procedência do recurso nesta parte revogando a sentença recorrida e substituída pelo prosseguimento dos autos com a urgência que assiste a processos desta natureza, reconhecida a necessidade de tutela protetiva da criança nos termos do disposto na alínea b) e f) do n.° 2 do art.° 3.° da LPCJP
IV-Da violação dos direitos fundamentais
1. A margem de qualquer elemento factual, documental ou probatório que o aconselhasse ou elemento objectivo nesse sentido, manteve a privação da convivência familiar, conforme despacho anterior de 25.05.2017.
2. Demitindo-se do dever de julgar nos termos do art.° 152.°, n.° 1 do CPC «...Os juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes...», denegando a justiça nos termos do art.° 20.° da CRP e art.° 6.° da CEDH, frustrando o direito fundamental de acesso à justiça.
3. Violou grosseiramente o douto tribunal o direito fundamental de cariz bilateral à convivência familiar constitucionalmente consagrado nos termos do art.° 36.°, n.° 6 da CRP e art.° 8.° da CEDH, conforme, inclusive, ressalta a Resolução do Conselho da Europa 2079, de 02.10.2015, no seu ponto 3, cabendo ao Estado, aqui, por meio dos tribunais por força do art.° 20.° da CRP, assegurar a tutela integral da infância e juventude, nomeadamente, entre outros, contra o abuso da autoridade parental, nos termos do art.° 69.°, n.° 1 da CRP.
4. Não obstante, à data do despacho de suspensão dos convívios em 25.05.2017, encontrava-se já nos autos o relatório do INML de 09.05.2017, sem conhecer ou apreciar a prova já existente, uma vez mais, omitindo o dever de fundamentação e somente fundando-se nas alegações de eventual abuso, decidiu suspender a convivência denegando o direito fundamental bilateral à convivência familiar nos termos do art.° 36.° da CRP e 8.° da CEDH.
5. Demonstrada que estava já nos autos através dos recentes Relatórios da Associação Passo a Passo a relação de vinculação afectiva positiva, qualitativa e securizante com o recorrente pai, nos termos do disposto no art.° 4.°, alíneas a) e g) da LPCJP - mas aos quais o douto Tribunal se alienou.
6. Ademais, nunca podendo ser derrogados direitos fundamentais, os quais, nos termos do art.° 202.° e 69.°, n.° 1 da CRP, incumbe aos tribunais garantir e assegurar, conjugados com os art.° 7.° e 8.° da CRP, assim como, ainda os art.° 26.°, n.° 1 e 36.° da CRP, e art.° 6.°, 8.° e 9.° da CEDH.
7. Acresce ainda, face ao arquivamento dos autos de promoção e protecção com contínua violação do dever de julgar o peticionado restabelecimento da convivência familiar e cumulativamente a confiança judicial da criança ao recorrente pai, violando o art.° 8.° da CEDH.
8. De igual modo, a sentença de que se recorre violou o principio fundamental da presunção de inocência do art.° 32.° da CRP, dado que a suspensão da convivência familiar que serviu de pretexto ao arquivamento, sem que fosse feita uma apreciação cabal e criteriosa da prova e, sem que existissem elementos que o justificassem.
9. Tendo o douto tribunal determinado a suspensão da convivência familiar face a todos os relatórios positivos da Associação Passo a Passo, sem que o requerido pai em algum momento tenha sido constituído arguido no âmbito dos processos-crime de pretenso abuso sexual, sem que tenha alguma vez sido acusado ou pronunciado pelos alegados crimes, violando grosseiramente, por meio do despacho de 25.05.2017, o princípio fundamental da presunção de inocência, conforme art.° 32.° da CRP e art.° 9.° da CEDH.
10. Situação que não serve, certamente, ao superior interesse da criança, que não serve à solução do conflito trazido aos autos, e que, tão-somente contribui para o adensamento do conflito alheio ao tratamento digno da causa, incapaz de activamente promover e criar meios (porque mecanismos existem de sobre no RGPTC, e assim impõe a jurisprudência do TEDH) para socorrer de modo eficiente e célere às necessidades de revinculação familiar, nos termos do art.° 36.°/6 e 69.° da CRP, art.° 1887.°-A, 1882.°, 1906.°/1/5/6/7 do CC, art.° 6.° e 8.° da CEDH, e art.° 9.° da CDC.
11. Termos em que deve ser julgado procedente o recurso também nesta parte pela violação grosseira do direito fundamental à convivência familiar nos termos do art.° 36.°, 69.° e 202.° da CRP, art.° 6.°, 8.° e 9.° e 18.° da CEDH, art.° 9.° da CDC.
TUDO VISTO,
Por tudo quanto se expôs e doutamente suprido, nos demais termos de direito deve ser concedido provimento ao recurso, estando justificada e comprovada a situação de perigo nos termos das alíneas b) e f) do art.° 3.0, n.° 2 da LPCJP, devendo ser revogada a decisão que arquivou o processo, determinando-se o prosseguimento dos autos com a urgência que assiste a processos desta natureza.
Nas suas contra alegações, o Ministério Público pronunciou-se pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
Resultam dos autos os seguintes elementos, com relevo para a decisão:
1-I... nasceu no dia 20 de Junho de 2012, conforme certidão do assento de nascimentos de fls. 25.
2-Com data de 14-11-2017, foi proferido pelo Tribunal a quo o despacho, ora recorrido, com o seguinte teor:
O Ministério Público instaurou os presentes autos de promoção e proteção, a favor da menor I..., na sequência de suspeitas de que a menor seria vítima de abuso sexual por parte do pai.
Encontra-se pendente processo-crime para apuramento de tais factos.
Por outro lado, compulsados os autos principais verifico que a menor não reside com o pai, tendo sido suspensas as visitas e os convívios da mesma com o progenitor, mostrando-se, assim, afastada a situação de perigo que originou o presente processo, pelo que importa declarar encerrada a instrução e determinar o arquivamento dos autos, por terem deixado de estar reunidos os pressupostos para a intervenção (art° 3° da L. P. C. J. P.).
Pelo exposto, e ao abrigo das citadas disposições legais determino o oportuno arquivamento dos autos.
Sem custas (art° 4°, n° 1, al. 1), do R.C P.).
Notifique e comunique.
Face à decisão acabada de proferir, dou sem efeito a realização da diligência agendada para 16/11/2017 e bem assim as demais requisitas (incluindo os exames periciais).
D.N.
3- O presente processo foi instaurado em virtude de haver denúncias por parte da avó materna da menor, de eventuais abusos sexuais por parte do pai, datados de 09-05-2017.
4- Tais denúncias deram origem ao processo que corre termos na 2.a secção do DIAP de Loures com o NUIPC 1279/17.4T9LRS.
5- Já anteriormente a avó materna da menor tinha denunciado situações de eventuais abusos sexuais por parte do pai da menor, tendo o inquérito em causa (NUIPC 924/15.0T9LRS) sido arquivado, por despacho proferido em 14-12-2016.
6- A menor vive com a mãe e a avó materna.
7- As visitas entre a menor e o pai ficaram suspensas nos termos do despacho proferido em 23-05-2017, com o seguinte teor:
Visando proteger a menor Isabelly Marreiros, e face às supeitas de abusos sexuais por parte do pai e até que se apure da veracidade ou falsidade de tais factos, determino que fiquem suspensos os convívios da menor com o pai.
8- Por requerimento entrado em juízo no dia 20 de Julho de 2017, às 21:48, o pai da menor pediu ao Tribunal o restabelecimento do convívio entre o progenitor e a sua. filha.
9- Em 12-10-2017, o Ministério Público promoveu o indeferimento da pretensão do pai da menor atento o teor do R.S, do qual se retira que ainda não estão reunidas as condições para serem retomadas as visitas do progenitor à menor. Por outro lado, ainda não se conhece o desfecho do Inquérito 1279/17.4T9LRS.
10- Por despacho de 16-10-2017 foi decidido: Tudo como doutamente se promove, pelos fundamentos constantes da douta promoção que antecede, que aqui dou por reproduzidos.
11- Em 14-11-2017, às 23:24, deu entrada novo requerimento com a referência 273495578, no qual o progenitor requer:
a)Seja de imediato reposta a convivência familiar com a filha menor Isabelly, ainda que provisoriamente mediante supervisão institucional da Associação Passo a Passo, visando a reaproximação e revinculação familiar;
b)A final seja confiada judicialmente á criança aos cuidados e tutela do pai; c)Sejam oficiadas a realização de perícias psicológicas e sobre a personalidade aos requeridos progenitores e avó e à criança, junto do INML
12- Com data de 03-10-2017, foi junto aos autos relatório social de avaliação diagnóstica referente à menor I... do qual consta, designadamente:
Na sequência da primeira denúncia de eventual abuso sexual do progenitor à Isabelly, após arquivamento do processo-crime, as visitas do progenitor à Isabelly passaram a ser acompanhadas, tendo decorrido na Associação Passo a Passo, durante vários meses. Já no decurso do presente ano foram retomadas as visitas não acompanhadas. Após a segunda visita não acompanhada, foi feita nova denúncia de eventual abuso sexual do progenitor, estando, presentemente proibidos os contactos entre pai e filha.
A existência de acentuado conflito entre a família materna (mãe e avó materna) e o pai da Isabelly e a recorrente suspeita da existência de abuso sexual da menor por parte do progenitor, não permite que a Isabelly possa disfrutar de um relacionamento adequado com ambos os pais, o que tem certamente consequências negativas para o seu desenvolvimento afectivo- emocional.
A I... não verbaliza com espontaneidade o eventual episódio de abuso por parte do progenitor e quando o faz, fá-lo com as mesmas palavras usadas pela mãe e pela avó materna.
A avó materna e a mãe de Isabelly têm um discurso muito negativo no que respeita aos progenitor da Isabelly, acusando-o de violência para com a progenitora durante o relacionamento que mantiveram e, presentemente, de abusar sexualmente da filha, quando mantém contacto com a mesma.
No contacto estabelecido com o Serviço Social do Hospital Beatriz Ângelo, foi-nos transmitido que em consulta de Pediatria, na sequência da eventual segunda situação de abuso, a Isabelly teve um comportamento adequado, mantendo-se a brincar enquanto decorreu a conversa entre a médica e a avó materna. Não emitiu qualquer comentário, nem alterou o seu comportamento quando se falou do pai e da situação de abuso. No exame objectivo que foi realizado não foram visíveis lesões, no entanto é referido que o tónus anal parece diminuído por comparação com crianças da mesma faixa etária, colocando-se a questão de se tratar de uma variante do normal ou de poder resultar de abusos.
13- Em 21 de Fevereiro de 2017, M..., avó materna da menor I..., foi constituída arguida por indícios de prática de um crime de ameça p. e p. pelos artigos 153.° n.°1 e 155 n.°1 a) do Código Penal, sendo queixoso o pai da menor, ora Recorrente.
14- Esse processo -468/16.3PKLRS - ficou suspenso provisoriamente mediante a injunção à arguida de entrega de quantia a uma instituição.
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, as questões que importa conhecer são as seguintes:
1-Nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação
2-Nulidade por omissão de pronúncia
3-Situação de perigo da menor e violação dos direitos fundamentais.
1-O Apelante invoca a nulidade da decisão por falta de fundamentação.
Tal como dispõe o art.° 615.° n.°1 c) do CPC, a sentença é nula caso não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Na verdade, ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão. Contudo, há nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constitui a mera deficiência de fundamentação]. Ora, no caso em apreço, embora sucinta a fundamentação existe e é clara e perfeitamente lógica e compreensível:
O arquivamento dos autos justifica-se pelo facto de tendo sido suspensas as visitas e os convívios da mesma [menor] com o progenitor, mostrando-se, assim, afastada a situação de perigo que originou o presente processo .
O Tribunal apresenta as razões pelas quais decidiu pelo arquivamento dos autos, pelo que a fundamentação existe e nem sequer se pode apelidar a mesma de deficiente, mas ainda que o fosse não constituiria motivo de nulidade já que apenas a inexistência de fundamentação determina a nulidade.
Não se verifica, por conseguinte a invocada nulidade.
2-O Apelante invoca igualmente a nulidade por omissão de pronúncia.
Nos termos do art.° 615.° n.° 1 d) do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
O Apelante efectivamente por duas vezes requereu o restabelecimento do regime de visitas entre si e a sua filha. Contudo, essa questão não tinha de ser apreciada na decisão recorrida
Quanto ao requerimento entrado em 20-07-2017, o mesmo foi objecto de pronúncia, tendo sido indeferido.
Quanto ao requerimento entrado em 14-11-2017, como se pode verificar da análise dos autos, o mesmo deu entrada após a prolação do despacho recorrido, pelo que o Tribunal a quo não poderia ter apreciado o mesmo, no despacho recorrido. Com efeito, o despacho recorrido foi proferido em 14-11-2017 e o dito requerimento deu entrada em Juízo nesse dia, pelas 23.24 horas (fls. 125 a 155).
Improcede, por conseguinte a invocada nulidade.
3-Por fim, importa apreciar a questão fulcral deste recurso e que tem a ver com a oportunidade do arquivamento do presente processo de promoção e protecção, perante a situação de perigo em que a menor permanece.
Efectivamente, o facto que deu origem à instauração do presente processo judicial de promoção e protecção foram as denúncias de eventuais abusos sexuais por parte do pai. E nessa sequência, foi determinada a suspensão dos contactos entre pai e filha e, considerando-se que assim tinha sido posto fim à situação de perigo em que a criança se encontrava, decidiu-se arquivar os presentes autos.
A questão que o Apelante coloca é a seguinte: a criança continua em perigo pela exposição directa à pressão psico-emocional exercida pela mãe e avó materna. E assim, não há fundamento legal para o arquivamento, antes deveria o processo prosseguir.
Quid juris:
Tal como se refere no art.° 3.° n.°2 da Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP):
2 - Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:
a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;
e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;
f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
Ora, analisando as situações consideradas de perigo, elencadas na lei e
observando a situação em que vive actualmente a I..., somos levados a concordar com o pai da criança. Ou seja, a situação de perigo em que se encontrava esta criança não cessou apenas porque ficaram suspensos os seus contactos com o pai. A situação é mais complexa e, por isso, a solução não pode ser encarada de forma tão simplista.
A suspeita de abusos sexuais vitimizando uma criança constitui uma situação de tal modo grave que justifica uma medida drástica e protectora da criança de modo a pô-la a salvo de qualquer hipótese, ainda que remota, de ser molestada dessa forma tão vil. Assim, perante tal denúncia, louvamos a decisão de suspender imediatamente as visitas do pai em relação à criança.
Porém, o facto de já anteriormente ter havido uma denúncia do mesmo tipo, que deu origem a processo que não saiu da fase embrionária, tendo sido arquivado, aliado ao aceso conflito existente entre a mãe e avó materna da criança e o progenitor, acrescendo a inexistência de indícios físicos de tais abusos, adensam as dúvidas sobre o fundamento de tais denúncias.
E aqui começam a desenhar-se os contornos do perigo em que se encontra a criança, não por via dos alegados abusos sexuais, mas por outro motivo.
Assim, caso tais abusos não tenham ocorrido, o que sinceramente se deseja, mas na hipótese de tais denúncias terem tido como objectivo, por parte da mãe e avó materna da criança, afastá-la do convívio com o pai, então estamos perante uma situação de grave perigo para a criança, pois essa situação revela que as pessoas que têm o dever de zelar pela sua formação e integral desenvolvimento, adoptam comportamentos que afectam gravemente o equilíbrio emocional da criança.
E certo que ainda não existe a certeza dessa realidade, ou seja, do comportamento deliberado com vista a afastar a criança do convívio do pai. Porém, esse perigo existe, perante os indícios constantes do processo. E se a situação de criança é de perigo, como cremos que é, então o processo de promoção e protecção deve prosseguir.
Mas ainda que assim não se entendesse, ou ainda que não se verifique esta situação causada pela profunda animosidade e violento conflito especialmente entre a avó materna da criança e o seu pai, numa situação sinalizada de alegados abusos sexuais de pai para filha, ou seja, numa situação de extrema gravidade, sempre seria incompreensível que o processo de promoção e protecção fosse arquivado, nos termos do despacho recorrido, por se entender afastada a situação de perigo que originou o presente processo , apenas pelo facto de terem sido suspensas as visitas e os convívios entre a criança e o progenitor.
Ou seja, considera-se que a criança já não está em perigo, vivendo apenas com a avó materna e a mãe, desde que o pai se mantenha à distância.
Parece-nos que esta abordagem da questão não tem em conta os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo, elencados no art.° 4.° da LPCJP:
a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
b) Privacidade - a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;
c) Intervenção precoce - a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;
d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo;
e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;
f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem;
g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante;
h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável;
i) Obrigatoriedade da informação - a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;
j) Audição obrigatória e participação - a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção;
k) Subsidiariedade - a intervenção deve ser efetuada sucessivamente
De acordo com os princípios elencados neste preceito, conclui-se que uma situação como a presente em que podem estar em causa abusos sexuais contra a menor, perpetrados pelo pai, impõe-se aplicar uma medida que cumpra os objectivos previstos no art.° 34.° da LPCJP, a saber:
a) Afastar o perigo em que estes se encontram;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.
Ora, no caso em apreço, decretada a suspensão do contacto entre pai e filha, só por si, afigura-se-nos que não permite à criança assegurar o seu desenvolvimento integral, nem garante a sua recuperação psicológica.
De resto, nos termos do art.°35.° da LPCJP, as medidas de promoção e protecção são as seguintes:
a) Apoio junto dos pais;
b) Apoio junto de outro familiar;
c) Confiança a pessoa idónea;
d) Apoio para a autonomia de vida;
e) Acolhimento familiar;
f) Acolhimento residencial;
g) Confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção.
Ora, no caso em apreço, apesar da gravidade e do grave risco indiciado, nenhuma medida de protecção foi aplicada. Simplesmente se decidiu arquivar o processo, a pretexto de que estava afastada a situação de perigo que originara o processo.
Não está. A situação de perigo mantém-se. Basta o violento conflito que divide os familiares da criança do lado materno e do lado paterno para caracterizar o evidente perigo que tal representa para o seu equilibrado desenvolvimento emocional.
Por conseguinte, deverá o processo prosseguir, primeiro com a realização das diligências adequadas a identificar perfeitamente o perigo em que se encontra a criança para seguidamente ser aplicada a medida de protecção mais adequada.
Procedem, assim, as conclusões de recurso, nesta parte.
IV-DECISÃO
Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em revogar a decisão recorrida que ordenou o arquivamento dos autos e determinando-se o respectivo prosseguimento com vista a aplicação da medida de protecção que ao caso couber.
Sem custas.
Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal