1 - O Tribunal não está - nem poderia estar - vinculado às decisões proferidas pelo INPI, mormente quanto aos fundamentos ali invocados, inseridos que estão na fase administrativa da concessão ou não dos pedidos que lhe são dirigidos.
2 - Sendo os Tribunais, como são, órgãos jurisdicionais, de plena jurisdição, cabe-lhes apreciar a legalidade daquelas decisões em face do que vem disposto sobre os direitos de propriedade, procedendo à confirmação e/ou revogação das mesmas, no âmbito do disposto no artigo 39.° do CPI.
3 - Como decorrência do que se deixa expresso, o recurso de plena jurisdição não tem como pressuposto uma anterior apresentação de reclamação por parte do interessado, perante o INPI, a quem compete proferir decisões administrativas com o objetivo plasmado nos artigos 1.° e 4.°, n.° 2, do CPI.
4 - O despacho judicial que conhece de nulidade invocada em sede de recurso, constitui parte integrante da decisão anteriormente proferida pelo que, com a sua prolação, sempre se teria como suprida a invocada nulidade com base em omissão de pronúncia.
Proc. 379/16.2YHLSB.L 7ª Secção
Desembargadores: Dina Monteiro - Luís Espírito Santo - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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RECURSO: 379/16.2YHLSB.L1, do Tribunal da Propriedade Intelectual - 1.° Juízo
APELANTE: J...
APELADA: Q..., UNIPESSOAL, LDA
Acordam na 7.a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1. RELATÓRIO
Q..., UNIPESSOAL, LDA, veio, ao abrigo do disposto no artigo 39° e seguintes do Código da Propriedade Industrial (CPI), interpor recurso da decisão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) que concedeu o registo da marca n° 567783
QUALISÁ
requerido por J..., para assinalar diversos serviços nas classes 36 e 37, pedindo que esse despacho do INPI que concedeu o registo da mencionada marca seja revogado.
Para o efeito alegou, em síntese, existir forte semelhança entre a marca recorrida e a denominação social da recorrente Q..., UNIPESSOAL, LOA, usada por esta no exercício da sua atividade principal de mediação imobiliária, com a qual os produtos assinalados pela marca controvertida apresentam um nexo de afinidade, podendo-se assim induzir o consumidor em erro ou confusão com a firma da recorrente, ou com o sítio web ou endereço email desta, onde a expressão QUALISÁ também figura.
Juntou diversos documentos (fls. 6-96).
Cumprido o artigo 43° do CPI, o INPI remeteu, a título devolutivo, o processo administrativo.
Citada a parte contrária, nos termos e para os efeitos do artigo 44° do CPI, respondeu alegando que a marca recorrida se baseia no nome do recorrido SÁ, o que lhe dá legitimidade para o usar também a título de marca, sendo a recorrente quem está em falta pois há muito deveria ter mudado a sua denominação social na sequência da saída do recorrido da sociedade em 2012, nos termos do artigo 32.°, n° 5 do DL 129/98, de 13 de Maio. Acrescentou ainda que o motivo de recusa com base em imitação de firma ou denominação social só ocorre quando tenha sido invocado em sede de reclamação, nos termos do artigo 239.°, n° 2, al. a) do CPI, o que no caso vertente não sucedeu, pelo que não pode agora invocar-se em sede de recurso. Pediu ainda que fosse declarada a perda do uso da denominação social da recorrente.
Juntou documentos (fls. 72v-86).
Após foi proferida decisão que, julgando procedente o recurso, revogou a decisão proferida pelo INPI negando, assim, proteção à marca nacional n.° 567783.
Inconformado com o assim decidido, o recorrido interpôs recurso de Apelação no âmbito do qual formulou as seguintes conclusões:
1. (A) A sentença proferida pelo Tribunal a quo enferma de um vício de omissão de pronúncia, porquanto, o Sr. Juiz não se pronunciou sobre todas as questões jurídicas relevantes suscitadas pelo ora Recorrente.
2. (B) Contrariamente ao disposto no n° 2 do art. 608° do C.P.C., o Sr. Juiz do Tribunal a quo não resolveu todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação.
3. (C) Não conhecendo, designadamente, que a ora Recorrida apenas poderia ter peticionado a anulabilidade da marca nacional n° 567783, com fundamento na alínea a) do n° 2 do art. 239° do C.P.I., junto do I.N.P.I., aquando do período aberto para reclamações e dentro do prazo a que se refere o art.17° do C.P.I., e não posteriormente, em sede de recurso judicial do despacho que concedeu a marca.
4. (D) A causa de pedir nestes autos é manifestamente extemporânea e inadmissível, pelo que, não poderá a Recorrida suscitar agora a anulação da marca nacional n° 567783 com fundamento na alínea a) do n° 2 do art. 239°, ex vi n° 1 do art. 266° do C.P.I.
5. (E) Motivo pelo qual, nos termos do n° 1 do art. 615° do C.P.C., deve a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser declarada nula e substituída, por outra que mantenha em vigor o despacho recorrido do I.N.P.I.
6. (F) Por outro lado, a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo padece ainda de dois erros de direito, a saber,
7. (G) Olvida que os factos alegados pela ora Recorrida assentam no uso ilegítimo da denominação social/firma Q..., UNIPESSOAL LDA.
8. (H) No caso concreto, com violação do disposto no n° 1 e n° 5 do art. 32° do Decreto - Lei n° 129/98, de 13 e maio.
9. (1) A invocação da firma Q..., Unipessoal, Lda. é ilegítima, uma vez que dela continua a fazer parte integrante e destacada o nome civil pelo qual o anterior titular da maioria do capital social da Recorrida é conhecido.
10. (J) A cedência, pelo ora Recorrente, da sua quota, com todos os direitos e obrigações inerentes visou ceder os direitos e obrigações sociais da própria quota, e não o direito ao uso do seu nome, pois que, enquanto direito de personalidade na sua vertente patrimonial - bom-nome -, a continuação deste uso está dependente de autorização expressa e autónoma.
11. (K) Como a própria Recorrida admite, o Recorrente não deu qualquer autorização para a utilização/manutenção do seu nome na firma da Recorrida, pelo que, a continuação do seu uso depois de ter deixado de ser sócio, constitui uma evidente violação do direito ao nome do Recorrente.
12. (L) De outra forma, não fariam qualquer sentido as ressalvas do n° 5 do art. 32° e do n° 2 do art. 44 ambos do Decreto - Lei 129/98, de 13 de maio, exigindo o consentimento expresso para a cedência da firma ou para a continuação do uso do nome.
13. (M) Atualmente, a Recorrida utiliza a sua denominação de forma ilegal e pretende opor esta ilicitude ao benificiário da norma que a obrigava a ter procedido à sua alteração, no prazo máximo de um ano, após a celebração da escritura de cessão de quotas, através da qual o titular da marca sub judice se desvinculou da empresa.
14. (N) Uma firma materialmente ilegal nunca poderá constituir melhor direito anterior e servir para anular o registo de uma marca posterior idêntica; outro entendimento constituiria um manifesto abuso do direito, sob a forma tu quoque, isto é, aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo, a outrem, o acatamento de consequências daí resultantes: turpitudinem suam allegans non auditur.
15. (O) Por todas estas razões, a sentença recorrida deve ser substituída por decisão que absolva a Recorrente do pedido, por total falta de fundamento legal e factual do mesmo.
16. (P) Acrescendo que a firma da Recorrida é uma denominação mista constituída por uma expressão descritiva (Quali, diminutivo de qualidade) e pelo último apelido do seu sócio fundador, Sr. José Silva e Sá.
17. (Q) A expressão Quali não possui, por si só, capacidade distintiva, residindo o caracter distintivo e a novidade de tal firma no apelido e na notoriedade do ex-sócio, Sr. Sá, razão pela qual este elemento da firma é sempre apresentado pela Recorrente de forma destacada na sua comunicação comercial.
18. (R) Ora, o Sr. José Silva e Sá deixou de ser sócio da Q..., Lda. em virtude da escritura pública de cessão de quotas outorgada a 1 de março 2012.
19. (S) Pelo que, nos termos do n° 5 do art. 32° do Decreto - Lei n° 129/98, de 13 de maio, a firma em causa deveria ter sido (devidamente) alterada dentro do prazo máximo de um ano, a contar da data da cessão de quotas, ou seja, até 1 de março de 2013.
20. (T) Incumprindo o que lhe era legalmente imposto, a Recorrida manteve a denominação social tal como estava, induzindo em erro sobre a identificação, natureza ou atividade do seu titular, ou seja, violando o princípio da verdade das firmas, e o direito ao nome do seu ex-sócio (noS 1 e 5 do art. 32° do Decreto - Lei n° 129/98, de 13 de maio), o qual tem a natureza de um direito de personalidade.
21. (U) Na falta de apresentação de autorização escrita do sócio que cedeu a sua quota e cujo nome figurava na respetiva denominação social, passado um ano, o RNPC deveria ter procedido à declaração da perda do direito o uso da firma, nos termos do art. 60° n°1 do Decreto - Lei n° 129/98, de 13 de maio.
22. (V) A Recorrida não pode pretender, nos presentes autos, invocar a anterioridade de uma firma ilícita contra o titular do direito ao nome que as normas violadas pretendem proteger.
23. (W) Finalmente, note-se que a Recorrida confessa usar uma marca não registada, por um período de tempo superior a 6 meses, sem ter tido a diligência de proceder ao seu registo, pelo que deixou de possuir qualquer legitimidade para se opor ao pedido de registo posterior de uma marca idêntica, para os mesmos produtos ou serviços (ou para produtos ou serviços semelhantes), por parte de um terceiro, ou para pedir a sua anulação, nos termos do art. 227° do C.P.I. (a contrario).
Conclui, assim, pela procedência do recurso, devendo, em consequência, a sentença recorrida ser substituída por decisão que absolva a Recorrente do pedido, por total falta de fundamento legal e factual do mesmo, mantendo-se, na integra o despacho recorrido do I.N.P.I. que concedeu ao ora Recorrente a marca nacional n° 567783 devendo, ainda, ser declarada a perda do direito ao uso da denominação social da Recorrida, uma vez que a mesma deveria ter sido alterada no prazo máximo de um ano, contado da outorga da escritura de cessão de quotas, realizada em 1 de março de 2012, e não o foi.
O recorrente contra-alegou sustentando a manutenção da decisão proferida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. FACTOS PROVADOS
1. Por escritura pública de 18.02.2002, foi fundada pelo recorrente J..., sócio-gerente com 75/prct. do capital social, e sua mulher Maria Adelaide Gonçalves Ferreira com os restantes 25/prct., a sociedade por quotas Q... LDA com o objeto Mediação imobiliária e reparação de edifícios, cf. docs. n°s 1 e 3 dos autos juntos a fls. 12v-14v e 18-20 que aqui se dão por reproduzidos;
2. Por escritura pública de 01.03.2012 (e não 1.03.2017 como por manifesto lapso constava), o recorrido Jorge da Silva e Sá e mulher Maria Adelaide Gonçalves Ferreira, então únicos sócios da recorrente, cederam as suas quotas na sociedade recorrida Q... LDA, com todos os direitos e obrigações inerentes, a António Augusto Ferreira da Silva, renunciando às funções de gerentes da dita sociedade, passando esta a assumir a forma de sociedade
unipessoal com a firma Q..., UNIPESSOAL LDA com o objeto mediação imobiliária e administração de imóveis por conta de outrem e o dito António Augusto Ferreira da Silva por único sócio e gerente, cf. docs. n°s 1 e 2 juntos a fls. 12v-14v e 15-17 dos autos, que aqui se dão por reproduzidos.
3. A recorrente é titular da firma Q..., UNIPESSOAL, LDA desde 5.03.2012, cf. inscrição 6 constante da certidão junta como doc. n° 1 a fls. 12v-14v dos autos, acima dada por reproduzida (pontos 1 e 2 do presente enunciado de factos);
4. Desde a constituição e inscrição no registo comercial pelo recorrido em 7.03.2002 da sociedade por quotas supramencionada (ponto 1 do presente enunciado de factos) até à sua transformação em sociedade unipessoal atrás referida (ponto 2 do presente enunciado de factos), a sociedade em questão possuía a denominação Q... Lda, cf. inscrição 1 1 do referido doc. n° 1 junto a fls. 12v-14v dos autos;
5. Por requerimento de 11.07.2016 junto a fls. 1-4 do processo administrativo apenso que aqui se dá por reproduzido, o recorrido solicitou junto do INPI o registo da marca nacional (mista) n° 567783
QUALISÁ
para assinalar os seguintes serviços nas classes 36 e 37 da Classificação de Nice:
36 aconselhamento em investimento imobiliário; agência imobiliária; administração de bens imobiliários; aluguer de bens imobiliários; aquisição de bens imobiliários em nome de terceiros; avaliação de imóveis (bens imobiliários); consultadoria imobiliária; gestão de bens imobiliários; investimento imobiliário; mediação imobiliária; serviços de consultoria imobiliária; serviços relacionados com a gestão imobiliária
37 construção; construção de casas; construção de edifícios; construção de imóveis; construção e reparação de edifícios; edificação, construção e demolição; fornecimento de informação relacionada com o setor da construção; fornecimento de informações relativas à construção, reparação e manutenção de edifícios; fornecimento de informações relativas à construção civil; gestão de projetos de construção no local; informações em construção; serviços de assessoria sobre construção; serviços de construção de edifícios; serviços de construção civil; serviços de consultoria e informação relacionados com a construção; serviços de empreendimentos imobiliários [construção]; serviços de empreitada geral de construção; serviços de gestão de projetos de construção; trabalhos de construção; gestão (supervisão) de trabalhos de construção; serviços de construção e de edificação; urbanização
de terrenos para construção;
6. Publicado o mencionado pedido de registo de marca (ponto 5 do presente enunciado de factos) no BPI de 22.07.2016, não foi apresentada qualquer reclamação dentro do correspondente prazo;
7. Por decisão de 11.10.2016 o INPI concedeu o registo de marca n° 567783, tal como peticionado pelo recorrido (ponto 5 do presente enunciado de factos), nos termos constantes de fls. 5 do processo administrativo apenso e doc. n° 4 junto a fls. 20v-23v dos autos que aqui se dão por reproduzidos;
8. A recorrente tem feito uso na sua atividade empresarial, desde a sua constituição em Março de 2002, da marca QUALISÁ, de forma ininterrupta e sem hiatos e em diversos meios ou suportes;
9. Dão-se por reproduzidos os docs. de fls. 24-55 e 72v e 83-86. III. FUNDAMENTAÇÃO
O conhecimento das questões por parte deste Tribunal de recurso encontra-se delimitado pelo teor das conclusões ali apresentadas salvo quanto às questões que são de conhecimento oficioso - desde que o processo contenha elementos que permitam esse mesmo conhecimento -, e aquelas que importem distinta qualificação jurídica - artigos 5.°, n.° 3, 635.°, n.°s 3 a 5 e 639.°, n.° 1, do Código de Processo Civil Revisto.
O conteúdo de tais conclusões deve obedecer à observância dos princípios da racionalidade e da centralização das questões jurídicas objeto de tratamento, para que não sejam analisados todos os argumentos e/ou fundamentos apresentados pelas partes, sem qualquer juízo crítico, mas apenas aqueles que fazem parte do respetivo enquadramento legal, nos termos do disposto nos artigos 5.° e 608.°, n.° 2, ambos do Código de Processo Civil Revisto.
Excluídas do conhecimento deste Tribunal de recurso encontram-se também as questões novas, assim se considerando todas aquelas que não foram objeto de anterior apreciação pelo Tribunal recorrido.
Desde já importa registar que a decisão proferida pelo Tribunal de 1.a Instância é clara, objetiva e bem fundamentada, pelo que a sua confirmação parece-nos ser indiscutível.
Pretende, no entanto, o Apelante, que este Tribunal de recurso proceda à reanálise das questões que integram o conteúdo das suas alegações de recurso onde insere, também, a invocada nulidade da decisão proferida pelo Tribunal de 1.a Instância uma vez que, na sua ótica, aquele Tribunal não apreciou um dos fundamentos invocados na sua resposta apresentada no processo, a saber, a inexistência de invocação da anterioridade de uma firma que, no seu entender, apenas pode ser validamente invocada no âmbito da reclamação ao registo de uma marca posterior confundível, junto do INPI, por parte da aqui Apelada, no prazo legal, omissão esta que, segundo defende, determina a extemporaneidade e inadmissibilidade do recurso à presente ação.
Conclui, assim, que a omissão de pronúncia sobre esta questão constitui nulidade da sentença proferida pelo Tribunal de 1.a Instância.
Como questões de Direito colocadas pela Apelante, cumpre ainda decidir:
- se a marca da Apelada, baseando-se no nome da Recorrente Sá, lhe confere legitimidade para proceder ao seu uso, nos termos do artigo 32.°, n.° 5, do Decreto-Lei n.° 129/98, de 13 de Maio;
- se a Apelante pode, no âmbito dos presentes autos, pedir a declaração de perda de uso da denominação social da recorrente.
Cumpre, porém, antes de iniciar esta análise, retificar um lapso material constante do Ponto 2 dos Factos Provados, em que se faz menção que a escritura pública ali indicada ocorreu a 1.03.2017 quando, pela simples leitura do documento respetivo - que se encontra junto aos autos (fis 15 a 17) -, podemos verificar que a data correta reporta-se a 01.03.2012, data essa que se fez já constar no local próprio, tendo presente o disposto no artigo 614.° do Código de Processo Civil Revisto.
Retomando a análise das questões colocadas pelo Apelante, temos a invocada nulidade da sentença em relação à qual desde já se afirma que não lhe assiste razão, como vamos passar a expor.
Assim, como muito bem refere o senhor Juiz do Tribunal de 1.a Instância quando aprecia esta invocada nulidade, a questão foi equacionada naquele Tribunal tendo na sua base o disposto no artigo 39.° do CPI que permite o recurso de plena jurisdição das decisões proferidas pelo INPI que concedam ou recusem direitos de propriedade.
Ora, analisando o caso concreto, podemos verificar que o recurso interposto pela aqui Apelada junto do Tribunal de 1.a Instância enquadra-se no âmbito das prerrogativas que lhe são legalmente concedidas.
Com efeito, tendo por referência a decisão proferida pelo INPI, verificamos que a aqui Apelada requereu a revogação da decisão proferida por aquele organismo quanto à concessão do registo da marca do aqui Apelante, invocando, para o efeito, a violação do disposto nos artigos 239.°, n.° 1, alínea e) e 317.°, n.° 2, alínea a), do CPI.
Por outro lado, parece-nos incontestável que o Tribunal não está - nem poderia estar - vinculado às decisões proferidas pelo INPI, mormente quanto aos fundamentos ali invocados, inseridos que estão na fase administrativa da concessão ou não dos pedidos que lhe são dirigidos.
Bem pelo contrário, sendo os Tribunais, como são, órgãos jurisdicionais, de plena jurisdição, cabe-lhes apreciar a legalidade daquelas decisões em face do que vem disposto sobre os direitos de propriedade, procedendo à confirmação e/ou revogação das mesmas, no âmbito do disposto no artigo 39.° do CPI.
Assim, contrariamente ao afirmado pelo Apelante, e como decorrência do que se deixa expresso, o recurso de plena jurisdição não tem como pressuposto uma anterior apresentação de reclamação por parte do interessado, perante o INPI, a quem compete proferir decisões administrativas com o objetivo plasmado nos artigos 1.° e 4.°, n.° 2, do CPI: (...) garantir a lealdade da concorrência, pela atribuição de direitos privativos sobre os diversos processos técnicos de produção e desenvolvimento de riqueza sendo que (...) a concessão de direitos de propriedade industrial implica uma mera presunção jurídica dos requisitos da sua concessão.
Ora, toda a tramitação desenvolvida pelos artigos 16.° e seguintes do CPI, pressupõe o desenvolvimento dessa fase administrativa, com a intervenção ou não de terceiros, como ali é especificado e sem que, nesta norma e/ou na que se reporta ao recurso de plena jurisdição, se faça qualquer menção quanto à imposição, determinação ou, de alguma forma, indicação, que nos leve a concluir que a anterioridade de uma firma só poder ser validamente invocada no âmbito da reclamação ao registo de uma marca confundível, como o pretende o aqui Apelante.
Nem o diz, nem o poderia dizer, diremos nós, sob pena de violação do acesso ao Direito e tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente consagrado - artigo 20.° da CRP.
Assim sendo, não tendo a aqui Apelada intervindo no processo administrativo, veio a ter conhecimento da decisão que concedeu o registo de marca ao Apelante, com a sua publicação no Boletim da Propriedade Industrial pelo que, fazendo apelo ao disposto no artigo 39.°, alínea a), do CPI, recorreu, de plena jurisdição, para o Tribunal de 1.a Instância que, por sua vez, analisou as questões jurídicas colocadas e proferiu decisão.
Por fim, sempre se dirá que, esta análise quanto á admissibilidade do recurso de plena jurisdição, por parte da aqui Apelada, enquanto apreciação de um dos pressupostos processuais da ação, foi prévia à da prolação da decisão, sendo que esta última apenas veio a ocorrer em momento processual posterior. Podemos, assim, afirmar que, subjacente à decisão judicial que determinou o prosseguimento dos termos do processo, encontra-se uma implícita decisão do senhor Juiz do Tribunal de 1.a Instância quanto à apreciação desta questão da legitimidade processual.
Mas, ainda que assim se não entendesse, sempre teria de se considerar que o despacho proferido pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.a Instância, em resposta à invocada nulidade, cumpriu já esse desiderato, de forma expressa, tanto mais que o mesmo constitui parte integrante da decisão anteriormente proferida e, nessa medida, tendo ali expressamente se pronunciado sobre a questão em causa, sempre teria suprido essa lacuna, com o que, também por esta via, sempre teríamos de concluir pela não verificação de qualquer omissão de pronúncia que pudesse constituir nulidade da sentença e que cumpra apreciar.
Em relação às demais questões suscitadas pelo Apelante, e salvo sempre o devido respeito, temos também de concluir pela sua improcedência.
Desde logo, em relação à questão da marca em causa se basear no nome do Apelante, o que lhe concederia direito a pedir a declaração de perda de uso da denominação social da Apelada, matéria que não foi objeto de prova positiva conforme decorre da materialidade dada como Provada e em relação à qual não foi pedida qualquer reapreciação por parte deste Tribunal.
Esta constatação desde logo impõe que se considere como improcedente a primeira das questões suscitadas pelo Apelante.
Na verdade, como já acima deixamos expresso, estamos perante uma questão que não foi objeto de prova (constituir o termo Sá, que integra a marca a registar, o nome do Apelante), sendo certo que a sua existência integrada numa única palavra, de que á sua terminação, não pode constituir, por si só, base para um pedido de reapreciação jurídica da questão do nome tendo por base o disposto no artigo 32.°, n.° 5, do Decreto-Lei n.° 129/98, de 13 de Maio.
Mas, ainda que não fosse esse o entendimento a seguir, sempre teria de se concluir como destituída de força jurídica, para o efeito pretendido, a consideração da sílaba final da denominação social da Apelada (SÁ em
relação ao vocábulo QUALISÁ) como fazendo parte da identificação do nome próprio do Apelante - J....
O que temos em presença, indiscutivelmente, é uma denominação social que era utlizada desde a sua criação (em 18 de Fevereiro de 2002), primeiro pelo aqui Apelante e que, a partir de 01 de Março de 2012, passou a ser utilizada pela aqui Apelada, na sequência da cessão de quotas da sociedade Q…, LDA e da sua transformação em sociedade unipessoal, com a firma Q..., UNIPESSOAL, LDA.
Retenha-se que, nessa cessão de quotas, em que o aqui Apelante esteve presente, ficou consignado que a mesma contemplava a cessão de todos os direitos e obrigações inerentes da Q..., LDA sendo que, nesse mesmo acto, ficou também expressa, na respetiva escritura pública, a transformação daquela sociedade em sociedade unipessoal e a designação da respetiva firma como Q..., UNIPESSOAL, LDA.
Tenha-se presente que a utilização da firma é um elemento obrigatório para os comerciantes, devendo figurar imperativamente no respetivo contrato de sociedade, do que resulta que constitui um dos sinais distintivos do comércio mais utilizados - artigo 18.°, n.° 1, do Código Comercial e 32.° do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas (RRNPC).
Acompanhando Pedro Sousa e Silva, podemos afirmar que a firma é o nome do comerciante (Direito Industrial - Noções Fundamentais, Coimbra, 2011, pág. 258).
Condicionado à observância dos princípios da verdade, da novidade (exclusivismo) e da capacidade distintiva - que impõem que a mesma seja distinta e não suscetível de confusão ou erro com outras, tendo como função primordial individualizar os intervenientes em regime de concorrência -, temos que a sua proteção encontra limites legais que, no caso aqui em apreciação, devem ser analisados por forma a se concluir se são ou não impeditivos do registo de marca por parte do aqui Apelante, nos termos do disposto no artigo 239.°, n.° 1, alínea e) do CPI.
A adoção numa firma, como elemento característico, de expressão idêntica ou semelhante à que caracteriza um sinal distintivo de tipo diferente (marca ou nome de estabelecimento de outrem) é suscetível de induzir o público em confusão ou erro, pois que pode permitir a atribuição a um comerciante de atividades prosseguidas por outro - Carlos Olavo, Propriedade Industrial, Almedina, 1997, pág. 137.
Dispõe, por isso, o artigo 33.° n.° 1, do Decreto-lei n.° 129/98, de 13 de Maio, que: As firmas e denominações devem ser distintivas e não suscetíveis de confusão ou erro com as registadas ou licenciadas no mesmo âmbito de exclusividade.
De acordo com o n.° 2 do mesmo preceito: Os juízos sobre a distinção e a não suscetibilidade de confusão ou erro devem ter em conta o tipo de pessoa, o seu domicílio ou sede, a afinidade ou aproximação das suas atividades e o âmbito territorial destas.
Estatui-se ainda no n.° 5 do citado artigo que: Nos juízos a que se refere o n.° 2 deve, ainda, ser considerada a existência de nomes de estabelecimento, insígnias, ou marcas que possam induzir em erro sobre a titularidade desses sinais distintivos.
Nesta linha, o n.° 4 do art.° 4, do CPI, dispõe que: Os registos de marca, de nomes e de insígnias de estabelecimento, de logótipos e de denominações de origem e de indicações geográficas constituem fundamento de recusa ou de anulação de denominações sociais ou firmas com eles confundíveis, se os pedidos de autorização ou de alteração forem posteriores aos pedidos de registo.
Constata-se pois que, nos termos da lei, o juízo sobre a admissibilidade das firmas (ou denominações) radica na existência de semelhança relevante entre os sinais distintivos, isto é, quando tais sinais apenas são passíveis de distinção pelo consumidor médio depois de um exame atento ou confronto e sempre que a semelhança possa induzir o público em erro quanto à titularidade dos mesmos.
O respeito pelo princípio da novidade abrange, por isso, os vários sinais distintivos do comércio: a firma (nome sob o qual o comerciante exerce o seu comércio), o nome do estabelecimento (elemento nominativo que tem a função de identificar o estabelecimento), a marca (sinal distintivo que tem por função identificar o produto ou o serviço proposto ao consumidor).
É pacificamente aceite que a aferição de uma situação de possibilidade de confusão impõe uma apreciação global, não podendo considerar-se isoladamente um elemento semelhante.
Nesta medida, tem sido entendido que, devendo valorar-se a confundibilidade de acordo com um consumidor médio e sabendo-se que a mesma é aferida em relação ao conteúdo global da firma, assume-se irrelevante a existência de elementos comuns, desde que a identificação individualizada continue possível e, bem assim, o descuido ou ligeireza de qualquer cliente ou consumidor.
Como podemos verificar, pela simples análise comparativa entre a denominação social da Apelada (registada desde 07 de Março de 2002) e a marca registada do Apelante (resultante da decisão proferida pelo Instituto da Propriedade Industrial, em 11 de Outubro de 2016), as semelhanças são indiscutíveis, senão vejamos:
- Q... LDA (firma adotada pela Apelada em 18 de Fevereiro de 2002).
- Q..., UNIPESSOAL, LDA (firma que sucedeu àquela, por alteração do pacto social na sequência da respetiva cessão de quotas, adotada em 01 de Março de 2012.
QUALISA
(Marca solicitada pelo Apelado em 11 de Julho de 2016).
Nas palavras do senhor Juiz do Tribunal de 1.a Instância: Verifica-se, assim, que a marca QUALISA mais não é do que a reprodução integral do único elemento característico da firma da recorrente, escrito igualmente em letra maiúscula e com a peculiaridade figurativa limitada à diferença de cor das duas últimas letras, a vermelho, relativamente ao resto da palavra, a negro.
E continua essa mesma análise, ponto por ponto, no que acompanhamos todo esse trajeto jurídico, até chegar à inevitável conclusão de que estamos perante uma situação em que o registo da marca do Apelante infringe os direitos de propriedade industrial da Apelada, nos temos do disposto nos artigos 243.° e 316.° do CPI e artigo 8.° da Convenção de Paris.
Em relação à segunda das questões colocadas pelo Apelante - pedido de declaração e perda de uso da denominação social da Apelada - , que mais não é do que a decorrência da primeira delas, sempre teríamos de concluir que, indeferida a primeira delas, a segunda sempre teria o mesmo desfecho.
Mas, ainda que considerasse a sua autonomia em relação àquela, certo é que o comportamento tido pelo aqui Apelante em todo o processo negociai, desde a data em que ocorreu a cessão de quotas até à data em que formulou o seu pedido de registo da marca, passaram-se mais de quatro anos em que este sempre soube da manutenção da denominação social da Apelada em relação á qual, diga-se, não opôs qualquer entrave, sendo certo que constava da própria escritura de cessão em que esteve presente, como já acima deixamos expresso.
É, assim, inquestionável, que o ora Apelante sempre teve conhecimento do facto cuja perda agora pretende, pelo que, o exercício desse direito neste momento sempre se afigura como um verdadeiro abuso a que o Direito não pode dar guarida, sob pena de procedermos à inversão dos valores que subjazem à sua aplicação, conforme decorre do disposto no artigo 334.° do Código Civil.
Com efeito, há todo um percurso do ora Apelante, que decorreu durante anos, no sentido de aceitar a utilização da denominação, cuja perda agora pede, por parte da Apelada, facto a que não é alheia a circunstância de ter sido sócio fundador desta, conforme acima já se deixou expresso e de, na escritura pública de cessão de quotas, ter cedido, se quaisquer reservas, todos os direitos e obrigações inerentes nos quais não podem deixar de se considerar como incluídos, o direito de propriedade industrial que é constituído pela firma respetiva, sinal que, como já acima referimos, tem proteção jurídica.
E é essa sedimentação de uma aceitação tácita, que se firmou durante anos de atividade comercial, que impede o Apelante de, neste momento, pretender exercer o direito à perda do uso da denominação social por parte da Apelada.
Improcede, assim, na totalidade, os argumentos apresentados pelo Apelante.
IV. DECISÃO
Face ao exposto, julga-se improcedente a Apelação, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.a Instância.
Custas pelo Apelante.
Lisboa, 24 de Abril de 2018
Dina Monteiro
Luís Espirito Santo
Maria da Conceição Saavedra
SUMÁRIO:
I. O Tribunal não está - nem poderia estar - vinculado às decisões proferidas pelo INPI, mormente quanto aos fundamentos ali invocados, inseridos que estão na fase administrativa da concessão ou não dos pedidos que lhe são dirigidos.
II. Sendo os Tribunais, como são, órgãos jurisdicionais, de plena jurisdição, cabe-lhes apreciar a legalidade daquelas decisões em face do que vem disposto sobre os direitos de propriedade, procedendo à confirmação e/ou revogação das mesmas, no âmbito do disposto no artigo 39.° do CPI.
III. Como decorrência do que se deixa expresso, o recurso de plena jurisdição não tem como pressuposto uma anterior apresentação de reclamação por parte do interessado, perante o INPI, a quem compete proferir decisões administrativas com o objetivo plasmado nos artigos 1.° e 4.°, n.° 2, do CPI.
IV. O despacho judicial que conhece de nulidade invocada em sede de recurso, constitui parte integrante da decisão anteriormente proferida pelo que, com a sua prolação, sempre se teria como suprida a invocada nulidade com base em omissão de pronúncia.