1 - O endereço de alguém é um dado pessoal, nos termos do art.° 3.o da Lei n.o 67/98 de 26.10 e pode ser dado a conhecer nos termos da al. e) do art.° 6.0 dessa Lei (para prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados).
2 - A Vodafone, tratadora de dados pessoais, está sujeita a sigilo profissional nos termos do art.° 17.E n.o 1 da Lei n.o 67/98 e, enquanto operadora de telecomunicações, está obrigada a garantir a segurança e a inviolabilidade das comunicações eletrónicas, nos termos dos artigos 3.o e 4.o da Lei n.° 41/2004, de 18.8.
3 - A doutrina e a jurisprudência têm destrinçado, ao nível do tratamento de dados nas telecomunicações, entre dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo.
4 - Os dados de base (por exemplo, a identificação do utilizador, a sua morada) reportam-se a uma fase anterior ao estabelecimento da comunicação e têm em vista possibilitar o acordo de ligação entre o utilizador e o fornecedor; os dados de tráfego são dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência); os dados de conteúdo são relativos ao próprio conteúdo da comunicação ou mensagem.
5 - A obtenção de dados de tráfego e de dados de conteúdo, como tal delimitados supra, no âmbito de um processo civil, pode e deve ser recusada pelos operadores de telecomunicações, em conformidade com o disposto na al. b) do n.° 3 do art.° 417.° do CPC e 34.E n.o 4 da CRP.
6 - Não assim quanto aos dados de base, tal como definidos em 4, os quais poderão desencadear o incidente de levantamento de segredo profissional previsto nos artigos 417.° n.o 4 do CPC e 135.° do CPP.
7 - Ainda que se admita que a letra da Lei n.o 41/2004 inclui o endereço do assinante na categoria dos dados de tráfego (n.° 2 do art.° 6.0: É permitido o tratamento de dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações, designadamente: a) Número ou identificação, endereço e tipo de posto do assinante; (...)), os tribunais poderão ter acesso a esses dados, nos termos das disposições aplicáveis, conforme expressamente admitido no n.o 7 do art.° 6.0 citado (O disposto nos números anteriores não prejudica o direito de os tribunais e as demais autoridades competentes obterem informações relativas aos dados de tráfego, nos termos da legislação aplicável, com vista à resolução de litígios, em especial daqueles relativos a interligações ou à faturação).
8 - Estando em causa a obtenção de informação que se afigura necessária à recuperação de duas viaturas automóveis cuja restituição à legítima proprietária havia sido determinada pelo tribunal por decisão transitada em julgado e consistindo essa informação na indicação do endereço de um assinante de serviços de telecomunicações que havia solicitado a confidencialidade dos seus dados identificativos, deve a prestadora do serviço de telecomunicações ser dispensada do segredo a que estava obrigada, tendo em vista a prossecução do interesse na realização da justiça.
Proc. 18479/16.7T8LSB-A.L1 2ª Secção
Desembargadores: Jorge Leal - Ondina Alves - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Proc. n.o 18479/16.7T8LSB-A.L1
Sumário (art.° 663.° n.° 7 do CPC)
1. O endereço de alguém é um dado pessoal, nos termos do art.° 3.º da Lei n.º 67/98 de 26.10 e pode ser dado a conhecer nos termos da al. e) do art.° 6.º dessa Lei (para prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados).
II. A Vodafone, tratadora de dados pessoais, está sujeita a sigilo profissional nos termos do art.° 17.E n.o 1 da Lei n.o 67/98 e, enquanto operadora de telecomunicações, está obrigada a garantir a segurança e a inviolabilidade das comunicações eletrónicas, nos termos dos artigos 3.o e 4.o da Lei n.° 41/2004, de 18.8.
III. A doutrina e a jurisprudência têm destrinçado, ao nível do tratamento de dados nas telecomunicações, entre dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo.
IV. Os dados de base (por exemplo, a identificação do utilizador, a sua morada) reportam-se a uma fase anterior ao estabelecimento da comunicação e têm em vista possibilitar o acordo de ligação entre o utilizador e o fornecedor; os dados de tráfego são dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência); os dados de conteúdo são relativos ao próprio conteúdo da comunicação ou mensagem.
V. A obtenção de dados de tráfego e de dados de conteúdo, como tal delimitados supra, no âmbito de um processo civil, pode e deve ser recusada pelos operadores de telecomunicações, em conformidade com o disposto na ai. b) do n.° 3 do art.° 417.° do CPC e 34.E n.o 4 da CRP.
VI. Não assim quanto aos dados de base, tal como definidos em IV, os quais poderão desencadear o incidente de levantamento de segredo profissional previsto nos artigos 417.° n.º 4 do CPC e 135.° do CPP.
VII. Ainda que se admita que a letra da Lei n.o 41/2004 inclui o endereço do assinante na categoria dos dados de tráfego (n.° 2 do art.° 6.0: É permitido o tratamento de dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações, designadamente: a) Número ou identificação, endereço
e tipo de posto do assinante; (...)), os tribunais poderão ter acesso a esses dados, nos termos das disposições aplicáveis, conforme expressamente admitido no n.o 7 do art.° 6.0 citado (O disposto nos números anteriores não prejudica o direito de os tribunais e as demais autoridades competentes obterem informações relativas aos dados de tráfego, nos termos da legislação aplicável, com vista à resolução de litígios, em especial daqueles relativos a interligações ou à faturação).
VIII. Estando em causa a obtenção de informação que se afigura necessária à recuperação de duas viaturas automóveis cuja restituição à legítima proprietária havia sido determinada pelo tribunal por decisão transitada em julgado e consistindo essa informação na indicação do endereço de um assinante de serviços de telecomunicações que havia solicitado a confidencialidade dos seus dados identificativos, deve a prestadora do serviço de telecomunicações ser dispensada do segredo a que estava obrigada, tendo em vista a prossecução do interesse na realização da justiça.
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
Em 18.7.2016 B... Lda intentou providência cautelar não especificada contra I...Lda pedindo que fosse ordenada a apreensão e entrega à requerente de duas determinadas viaturas automóveis, perlencentes à requerente, que esta havia cedido à requerida em cumprimento de um contrato de aluguer operacional, contrato esse que fora resolvido, por falta de pagamento de rendas pela locatária. Mais requereu que lhe fosse concedida a inversão do contencioso.
Em 18.8.2016 foi proferida sentença em que se deferiu à requerida providência e se ordenou a apreensão e entrega à requerente dos veículos ligeiros de passageiros marca B..., com as matrículas 77-0I-47 e 77-0I-28 e se deferiu à requerida inversão do contencioso, dispensando-se a requerente do ónus de propositura da ação principal.
Requerida a apreensão das viaturas às autoridades policiais, com referência à sede da requerida, estas não foram encontradas.
Requerida a apreensão das viaturas com referência a três alegadas moradas do seu representante legal, FA..., sitas em Vila Nova de Gaia, a mesma não foi efetuada, tendo a PSP informado que o referido Filipe Pereira ali não morava.
Pela administradora de insolvência da requerida foi declarado desconhecer o paradeiro das viaturas.
Requerida a apreensão das viaturas com referência a alegada morada do seu representante legal, FA..., sita em Maia, a mesma não foi efetuada, tendo a PSP informado que o referido Filipe Pereira ali não morava.
Requerida a apreensão das viaturas com referência a alegada morada do seu representante legal, FA..., sita em Gondomar, a mesma não foi efetuada, tendo a PSP informado que o referido Filipe Pereira ali não morava.
Em 02.8.2017 a requerente solicitou que a Vodafone, S.A., fosse notificada para informar acerca da morada do dito representante legal da requerida.
Notificada para prestar a requerida informação, em 11.8.2017 a Vodafone, S.A. veio, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e c) do n.o 3 do art.° 417.0 do CPC, pedir escusa da prestação da dita informação, alegando que o seu cliente FA... havia solicitado, aquando da subscrição do serviço telefónico, a confidencialidade dos seus dados, pelo que a Vodafone estava sujeita ao sigilo profissional e, bem assim, ao sigilo das comunicações.
Em 12.02.2018 a requerente pediu que, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 417.0, n.os 1, 2 e 3 alínea c) e 4 do CPC e 135.o n.o 3 do CPP, se solicitasse a esta Relação que, tendo em vista a prossecução do direito de acesso à justiça, autorizasse a quebra do segredo profissional e das comunicações da Vodafone, de forma a obter-se a morada do referido legal representante da requerida.
O tribunal a quo, por despacho proferido em 15.02.2018, considerou legítimo o pedido de escusa formulado pela Vodafone e decidiu dar seguimento ao incidente solicitado pela requerente, remetendo o presente expediente a esta Relação.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A única questão a apreciar neste incidente é se deve ser deferido o requerido levantamento de segredo profissional e de sigilo nas comunicações.
O factualismo a levar em consideração é o supra constante no Relatório.
O Direito
A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (n.o 1 do art.° 20.o da CRP), a obter em prazo razoável e mediante processo equitativo (n.° 4 do art.° 20.0 da CRP, art.° 2.° do CPC).
Nessa tarefa todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que lhes for requisitado e praticando os atos que forem determinados (n.° 1 do art.° 417.° do CPC).
Interesses relevantes poderão justificar a recusa da dita colaboração. Assim, a recusa é legítima se a obediência importar intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (ai. b) do n.° 3 do art.° 417.0) ou a violação do sigilo profissional (...) (n.° 3, alínea c) do art.° 417.° do CPC).
Nos termos do n.° 4 do art.° 417.0 do CPC, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Remete-se, pois, para o regime previsto no processo penal a fim de solucionar o conflito que surja entre uma determinada pretensão probatória e a invocação de dever de sigilo.
Haverá que ver, então, o que a este respeito prevê o Código de Processo Penal.
O artigo pertinente é o 135.º (com a redação Introduzida pela Lei n.° 48/2007, de 29.8):
Segredo profissional
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribuna/ que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.
Tendo o tribunal perante quem foi suscitado o incidente de invocação do segredo profissional concluído pela legitimidade.;da recusa, caberá ao tribunal superior apreciar se deve ou não ser quebrado o segredo profissional. Para tal o tribunal deve considerar que a quebra é justificada segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
Tudo em consonância com os princípios a observar em caso de colisão de
_direitos (art.° 335.0 do Código Civil), segundo os quais, se forem da mesma espécie, os respetivos titulares deverão ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes, devendo prevalecer, no caso de direitos desiguais ou de espécie diferente, o que for considerado superior. Sendo certo que as restrições aos direitos, liberdades e garantias, quando admitidas, deverão limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (n.o 2 do art.° 18.0 da CRP).
In casu, pretende-se que uma operadora de telecomunicações informe o tribunal acerca do endereço de um seu cliente, por se considerar que as viaturas, cuja apreensão se pretende, se encontrarão nas suas proximidades.
A dita operadora invocou, para se eximir à prestação da mencionada informação, que o seu cliente havia solicitado a confidencialidade dos seus dados. Referiu que enquanto operadora de redes e prestadora de serviços telefónicos acessíveis ao público, está vinculada ao sigilo das comunicações nos termos do disposto no art.° 34.0 n.o 1 da CRP e no art.° 4.o n.o 1 da Lei n.o 41/2004, de 18.8, que regula o tratamento dos dados pessoais e a proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas. Mais deve respeitar o desejo de privacidade dos seus clientes, conforme decorre do art.° 48.E n.o 1 al. i) da Lei n.o 5/2004, de 10.02, que estabelece o regime jurídico aplicável às redes e serviços de comunicações eletrónicas e aos recursos e serviços conexos. No seu entender, decorre do art.° 34.o n.° 4 da CRP que apenas em processos de natureza criminal se poderia ponderar a disponibilização da dita informação.
Vejamos.
Estão em causa o direito à privacidade e o direito à autodeterminação informativa.
Desde que em 1890 os advogados e professores de direito norte-americanos Samuel Warren e Louis Brandeis publicaram na Harvard Law Review um artigo sob o título Right to privacy, concebido como o right to be let alone e considerado como um direito against the world (cfr., v.g., J. de Seabra Lopes, A protecção da privacidade e dos dados pessoais na sociedade da informação: tendências e desafios numa sociedade em transição, in Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, Universidade Católica Editora, 2002, páginas 781 e 782; Catarina Sarmento e Castro, O direito à autodeterminação informativa e os novos desafios gerados pelo direito à liberdade e à segurança no pós 11 de Setembro, in Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, volume II, Coimbra Editora, 2005, páginas 66 e 67; Teresa Anselmo Vaz e Ana Rita Painho, A protecção de dados pessoais e os intermediários financeiros, in Direito dos valores mobiliários, volume X (2011), Coimbra Editora, páginas 593 e 594), o direito à intimidade da vida privada ou à privacidade foi adquirindo reconhecimento generalizado como direito fundamental, sendo proclamado no art.° 12.0 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948), no art.° 8.0 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (assinada em Roma em 4.11.1950), no art.° 17.0 do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos (pacto de 19.12.1966) e nos artigos 7.o e 8.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Em Portugal, além da expressa previsão, no art.° 80.E do Código Civil, do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, o legislador constituinte enumera, entre os direitos pessoais fundamentais, o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art.° 26.E n.° 1 da CRP). Como direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias, as normas que o preveem são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas (art.° 18.E n.o 1 da CRP).
No dizer do Professor Paulo da Mota Pinto, o interesse correspondente à proteção da reserva da vida privada é o interesse em impedir ou em controlar a tomada de conhecimento, a divulgação ou, simplesmente, a circulação de informação sobre a pessoa, isto é, sobre factos, comunicações ou situações relativo (ou próximos) ao indivíduo, e que previsivelmente ele considere como íntimos, confidenciais ou reservados. Trata-se do interesse na autodeterminação informativa, entendida como controlo sobre informação relativa à pessoa (A protecção da vida privada e a Constituição, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, vol. LXXVI, 2000, pág. 164).
O direito à autodeterminação informativa (recht auf informationelle sebstestimmung) foi enunciado pelo Tribunal Constitucional Alemão numa decisão proferida em 1983 a propósito de uma lei de recenseamento que pretendia colher uma série de dados pessoais dos cidadãos recenseados. Aí se extraiu dos artigos 1.0 e 2.0 da Constituição alemã, que consagram o respeito pela dignidade humana, pelos direitos humanos e o direito geral de personalidade, a prerrogativa de o indivíduo decidir ele mesmo sobre a divulgação e o uso dos seus dados pessoais (cfr. Catarina Sarmento e Castro, estudo citado, pág. 77; Teresa Anselmo e Ana Rita Painho, estudo citado, pág. 594).
A Constituição Portuguesa consagra, desde a sua versão inicial, um direito à autodeterminação informativa, previsto no art.° 35.°, cujo texto foi sujeito a várias alterações, a última das quais na revisão de 1997 (Lei Constitucional n.° 1/97, de 20 de Setembro). Tal proteção arranca da constatação dos riscos que o crescente tratamento informatizado de informações pessoais acarreta para a liberdade, autonomia e dignidade de cada um dos cidadãos alvo daquele. Daí que se consagre o direito de acesso de todos os cidadãos aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua retificação e atualização e bem assim conhecer a finalidade a que se destinam (n.° 1 do art.° 35.0); proíbe-se a utilização da informática para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica - ressalvando-se o consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou o mero processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis (n.° 3); proíbe-se o acesso a dados pessoais de terceiros, sem prejuízo de casos excecionais previstos na lei (n.° 4); comina-se ao legislador a definição do conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização e garante-se a sua proteção, designadamente através de entidade administrativa independente (n.° 2); estende-se aos dados pessoais constantes de ficheiros manuais a proteção prevista no aludido artigo 35.° da CRP (n.° 7).
Nos termos do art.° 18.0 n.° 1 da CRP, a proteção constitucional dos dados pessoais vincula também as entidades privadas.
Atualmente a proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais está regulada, no plano do direito ordinário, fundamentalmente pela Lei n.° 67/98, de 26.10 (Lei da Proteção de Dados Pessoais), que substituiu a Lei n.° 10/91, de 29.4, assim se adaptando o nosso ordenamento jurídico ao conteúdo da Directiva n.° 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995.
Esta lei define dados pessoais como qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável, pessoa essa que é a titular dos dados (art.° 3.0, alínea a), da Lei n.° 67/98). Considera-se tratamento de dados pessoais (tratamento), qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, efectuadas com ou sem meios automatizados tais como a recolha, o registo, a organização, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a comunicação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, apagamento ou destruição (art.° 3.0, alínea b) da Lei n.° 67/98).
Os dados pessoais devem ser recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, não podendo ser posteriormente tratados de forma incompatível com essas finalidades (art.° 5.0 n.° 1 alínea b) da Lei n.° 67/98).
Em regra, o tratamento de dados pessoais só pode ser efetuado se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento (art.° 6.0 da Lei n.° 67/98) ou se o tratamento for necessário para:
a) Execução de contrato ou contratos em que o titular dos dados seja parte ou de diligências prévias à formação do contrato ou declaração da vontade negociai efetuadas a seu pedido;
b) Cumprimento de obrigação legal a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito;
c) Proteção de interesses vitais do titular dos dados, se este estiver física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento;
d) Execução de uma missão de interesse público ou no exercício de autoridade pública em que esteja investido o responsável pelo tratamento ou um terceiro a quem os dados sejam comunicados;
e) Prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados (alíneas do citado art.° 6.º).
A margem relativamente ampla de possibilidade de tratamento de dados sem o consentimento do seu titular é porém consideravelmente apertada no que concerne aos chamados dados sensíveis (epígrafe do art.° 7.º da Lei n.º 67/98).
Assim, nos termos do n.o 1 do art.° 7.0, é proibido o tratamento de dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos.
Quanto aos dados sensíveis, o seu tratamento só será possível mediante o consentimento expresso do titular dos dados para esse tratamento (n.º 2 do art.° 7.º da Lei n.º 67/98), ou então nos seguintes casos:
a) Mediante disposição legal ou autorização da CNPD (Comissão Nacional de Protecção de Dados), quando por motivo de interesse público importante esse tratamento for indispensável ao exercício das atribuições legais ou estatutárias do seu responsável (n.º 2 do art.° 7.º;
b) Quando o tratamento dos dados for necessário para proteger interesses vitais do titular dos dados ou de uma outra pessoa e o titular dos dados estiver física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento (alínea a) do n.º 3 do art.° 7.º);
c) Quando o tratamento dos dados for necessário à declaração, exercício ou defesa de um direito em processo judicial e for efetuado exclusivamente com essa finalidade (alínea d) do n.o 3 do art.° 7.0;
d) Outras situações em que exista consentimento do titular dos dados, real ou presumido, ou seja, tratamento de dados por entidades sem fins lucrativos de carácter político, filosófico, religioso ou sindical, sob certas condições (alínea b) do n.o 3 do art.° 7.0) e dados manifestamente tornados públicos pelo seu titular, desde que se possa legitimamente deduzir das suas declarações o consentimento para o tratamento dos mesmos (alínea c) do n.º 3 do art.° 7.º).
O art.° 17.º, sob a epígrafe Sigilo profissional, dispõe no n.º 1 que os responsáveis do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções.
Sendo as pessoas seres relacionais, a comunicação com o outro é uma vertente essencial da sua personalidade e, logo, da sua privacidade. Por outro lado, o excecional incremento dos meios de comunicação a que os cidadãos têm acesso e em que, voluntária ou inadvertidamente, dão a conhecer cada vez mais detalhes da sua vivência, exige que, em compensação, se estabeleçam mecanismos de proteção e contenção desses meios invasivos do espaço de cada um. Tais mecanismos consistem, nomeadamente, na imposição aos operadores de telecomunicações de deveres de sigilo e de confidencialidade a que correspondem os inerentes direitos dos utilizadores. Acrescem as proibições gerais de intromissão, maxime por parte das autoridades públicas.
Assim, dispõe o n.° 4 do art.° 34.° da CRP que é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.
E, segundo a Lei n.° 5/2004, de 12.02 (Lei das Comunicações Eletrónicas), que estabelece o regime jurídico aplicável às redes e serviços de comunicações eletrónicas e aos recursos e serviços conexos, nos contratos celebrados deve constar indicação expressa da vontade do assinante sobre a inclusão ou não dos respectivos elementos pessoais nas listas telefónicas e sua divulgação através dos serviços informativos, envolvendo ou não a sua transmissão a terceiros, nos termos da legislação relativa à protecção de dados pessoais (ai. 1) do n.° 1 do art.° 48.º, com a redação introduzida pela Lei n.° 15/2016, de 17.6).
A União Europeia tem emitido legislação nesta área, destacando-se a Diretiva n.° 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de julho de 2002 relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas).
A Lei n.° 41/2004, de 18.8, que transpôs para o nosso ordenamento jurídico essa Directiva (e foi, entretanto, alterada pela Lei n.° 46/2012, de 29.8), define comunicação como qualquer informação trocada ou enviada entre um número finito de partes mediante a utilização de um serviço de comunicações eletrónicas acessível ao público (al. a) do n.o 1 do art.° 2.o), dados de tráfego como quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas ou para efeitos da faturação da mesma (al. d) do n.° 1 do art.° 2.°), dados de localização como quaisquer dados tratados numa rede de comunicações eletrónicas ou no âmbito de um serviço de comunicações eletrónicas que indiquem a posição geográfica do equipamento terminal de um utilizador de um serviço de comunicações eletrónicas acessível ao público (ai. e) do n.o 1 do art.° 2.0).
Sob a epígrafe segurança do processamento, o art.° 3.o da lei dispõe, no n.o 1, que as empresas que oferecem serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público devem adotar as medidas técnicas e organizacionais adequadas para garantir a segurança dos seus serviços, se necessário, no que respeita à segurança de rede, em conjunto com o fornecedor da rede pública de comunicações.
O n.o 9 do mesmo artigo explicita que tais medidas devem, no mínimo, incluir:
a) Medidas que assegurem que somente o pessoal autorizado possa ter acesso aos dados pessoais, e apenas para fins legalmente autorizados;
b) A proteção dos dados pessoais transmitidos, armazenados ou de outro modo tratados, contra a destruição, a perda, a alteração, a divulgação ou o acesso não autorizados ou acidentais;
c) Medidas que assegurem a aplicação de uma política de segurança no tratamento dos dados pessoais.
Sob a epígrafe Inviolabilidade das comunicações eletrónicas o art.° 4.o da Lei estipula que:
1 - As empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público.
2 - É proibida a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outros meios de interceção ou vigilância de comunicações e dos respetivos dados de tráfego por terceiros sem o consentimento prévio e expresso dos utilizadores, com exceção dos casos previstos na lei.
3 - O disposto no presente artigo não impede as gravações legalmente autorizadas de comunicações e dos respetivos dados de tráfego, quando realizadas no âmbito de práticas comerciais lícitas, para o efeito de prova de uma transação comercial nem de qualquer outra comunicação feita no âmbito de uma relação contratual, desde que o titular dos dados tenha sido disso informado e dado o seu consentimento.
4 - São autorizadas as gravações de comunicações de e para serviços públicos destinados a prover situações de emergência de qualquer natureza.
Sob a epígrafe armazenamento e acesso à informação, o art.° 5.° da Lei n.° 41/2004 dispõe o seguinte:
1 - O armazenamento de informações e a possibilidade de acesso à informação armazenada no equipamento terminal de um assinante ou utilizador apenas são permitidos se estes tiverem dado o seu consentimento prévio, com base em informações claras e completas nos termos da Lei de Proteção de Dados Pessoais, nomeadamente quanto aos objetivos do processamento.
2 - O disposto no presente artigo e no artigo anterior não impede o armazenamento técnico ou o acesso:
a) Que tenha como única finalidade transmitir uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas;
b) Estritamente necessário ao fornecedor para fornecer um serviço da sociedade de informação solicitado expressamente pelo assinante ou utilizador. O art.° 6.°, sob a epígrafe Dados de tráfego, estipula que
1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os dados de tráfego relativos aos assinantes e utilizadores tratados e armazenados pelas empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas devem ser eliminados ou tornados anónimos quando deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação.
2 - É permitido o tratamento de dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações, designadamente:
a) Número ou identificação, endereço e tipo de posto do assinante;
b) Número total de unidades a cobrar para o período de contagem, bem como o tipo, hora de início e duração das chamadas efetuadas ou o volume de dados transmitidos;
c) Data da chamada ou serviço e número chamado;
d) Outras informações relativas a pagamentos, tais como pagamentos adiantados, pagamentos a prestações, cortes de ligação e avisos.
3 - O tratamento referido no número anterior apenas é lícito até final do período durante o qual a fatura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado.
4 - As empresas que oferecem serviços de comunicações eletrónicas só podem tratar os dados referidos no n.o 1 se o assinante ou utilizador a quem os dados digam respeito tiver dado o seu consentimento prévio e expresso, que pode ser retirado a qualquer momento, e apenas na medida do necessário e pelo tempo necessário à comercialização de serviços de comunicações eletrónicas ou à prestação de serviços de valor acrescentado.
5 - Nos casos previstos no n.o 2 e, antes de ser obtido o consentimento dos assinantes ou utilizadores, nos casos previstos no n.o 4, as empresas que oferecem serviços de comunicações eletrónicas devem fornecer-lhes informações exatas e completas sobre o tipo de dados que são tratados, os fins e a duração desse tratamento, bem como sobre a sua eventual disponibilização a terceiros para efeitos da prestação de serviços de valor acrescentado.
6 - O tratamento dos dados de tráfego deve ser limitado aos trabalhadores e colaboradores das empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público encarregados da faturação ou da gestão do tráfego, das informações a clientes, da deteção de fraudes, da comercialização dos serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público, ou da prestação de serviços de valor acrescentado, restringindo -se ao necessário para efeitos das referidas atividades.
7 - O disposto nos números anteriores não prejudica o direito de os tribunais e as demais autoridades competentes obterem informações relativas aos dados de tráfego, nos termos da legislarão aplicável, com vista à Colução de com litígios, em especial daqueles relativos a interligações ou à faturação.
O art.° 13.°, sob a epígrafe Listas de assinantes, estipula no n.° 2, que os assinantes têm o direito de decidir da inclusão dos seus dados pessoais numa lista pública e, em caso afirmativo, decidir quais os dados a incluir, na medida em que esses dados sejam pertinentes para os fins a que se destinam as listas, tal como estipulado pelo fornecedor.
A violação de correspondência ou de telecomunicações constitui um crime, nos termos previstos no art.° 194.° do Código Penal.
A lei processual penal admite que, para o fim de investigação de determinados crimes, e mediante autorização de um juiz, se proceda:
a) À interceção e à gravação de conversações ou comunicações telefónicas (art.° 187.° do CPP);
b) À interceção e à gravação de conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio eletrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à interceção das comunicações entre presentes (art.° 189.° n.° 1 do CPP);
c) À obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações (art.° 189.° n.° 2 do CPP).
Por sua vez a Lei n.° 32/2008, de 17.7, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.° 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes.
Para o efeito desta Lei, entende-se por dados os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador (art.° 2.0, al. a)).
A Lei estipula que os fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações devem conservar as seguintes categorias de dados:
a) Dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação;
b) Dados necessários para encontrar e identificar o destino de uma comunicação;
c) Dados necessários para identificar a data, a hora e a duração de uma comunicação;
d) Dados necessários para identificar o tipo de comunicação;
e) Dados necessários para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento;
f) Dados necessários para identificar a localização do equipamento de comunicação móvel.
Nos termos do art.° 3.°, a conservação e a transmissão dos dados têm por finalidade exclusiva a investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes (n.° 1), a transmissão dos dados às autoridades competentes só pode ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz (n.° 2) e o titular dos dados não pode opor-se à respectiva conservação e transmissão (n.° 4).
Registe-se que o TJUE, chamado a pronunciar-se sobre a validade da Diretiva n.° 2006/24/CE, nos pedidos de decisão prejudicial que deram origem aos processos C-293/12 e C/594/12, considerou, em acórdão datado de 08.4.2014, que essa diretiva era inválida, por exceder os limites impostos pelo respeito do princípio da proporcionalidade à luz dos artigos 7.°, 8.° e 52.°, n. 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Relativamente ao tipo de dados envolvidos no serviço de telecomunicações, releva a classificação adotada pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, que distingue entre dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo (Vide Parecer n.° 16/94, de 24.6.1994, Parecer n.° 16/94/complementar, de 02.5.1996, publicado em Pareceres, volume VI, p. 535 e ss., e Parecer n.° 21/2000, de 16.6.2000, publicado no DR II Série, de 28.8.2000, como Directiva n.° 5/2000).
Assim, de harmonia com esses pareceres, no serviço de telecomunicações podem distinguir-se as seguintes espécies de dados:
Nos serviços de telecomunicações podem distinguir-se, fundamentalmente, três espécies ou tipologias de dados ou elementos: os dados relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência), dados de tráfego; e os dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados de conteúdo.
Sendo os vários serviços de telecomunicações utilizados para a transmissão de comunicações verbais ou de outro tipo (mensagens escritas, dados por pacotes), os elementos inerentes à comunicação podem, por outro lado, estruturar-se numa composição sequencial em quatro tempos: a fase prévia à comunicação, o estabelecimento da comunicação, a fase da comunicação propriamente dita e a fase posterior à comunicação.
No primeiro tempo relevam essencialmente os dados de base, enquanto que nos restantes importa essencialmente a consideração dos dados de tráfego e de conteúdo.
Os dados de base constituem, na perspectiva dos utilizadores, os elementos necessários ao acesso à rede, designadamente através da ligação individual e para utilização própria do respectivo serviço: interessa aqui essencialmente o número e os dados através dos quais o utilizador tem acesso ao serviço.
Estes elementos - por exemplo, a identificação do utilizador, a morada - são fornecidos ao explorador do serviço para efeitos do estabelecimento do acordo (do contrato) de ligação à respectiva rede ou atribuídos por este àquele (o número de acesso); como dados de natureza pessoal que são, o seu titular deve sobre eles ter o direito de reserva, especialmente no que respeita à inscrição de tais elementos nas listas públicas (isto é, nas listas telefónicas públicas ou de outros serviços de telecomunicações complementares). Tal reserva determina que a inscrição desses elementos nas listas públicas deva ter carácter facultativo.
(...)
Diversamente dos elementos de base (elementos necessários ao estabelecimento de uma base para comunicação), que estão aquém, antes, são prévios e instrumentos de qualquer comunicação, os chamados elementos de tráfego (elementos funcionais da comunicação), como os elementos ditos de conteúdo, têm já a ver directamente com a comunicação, quer sobre a respectiva identificabilidade, quer relativamente ao conteúdo propriamente dito da mensagem ou da comunicação.
Os elementos ou dados funcionais (de tráfego), necessários ou produzidos pelo estabelecimento da ligação da qual uma comunicação concreta, com determinado conteúdo, é operada ou transmitida, são a direcção, o destino (adressage) e a via, o trajecto (routage).
(...)
Estes elementos funcionalmente necessários ao estabelecimento e à direcção da comunicação identificam, ou permitem identificar a comunicação: quando conservados, possibilitam a identificação das comunicações entre o eminente e o destinatário, a data, o tempo, e a frequência das ligações efectuadas.
Constituem, pois, elementos já inerentes à própria comunicação, na medida em que permitem identificar, em tempo real ou a posteriori, os utilizadores, o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização, a frequência, a data, hora e a duração da comunicação, devem participar das garantias a que está submetida a utilização do serviço, especialmente tudo quanto respeite ao sigilo das comunicações.
Finalmente, os elementos de conteúdo - dados relativos ao próprio conteúdo da mensagem, da correspondência enviada através da utilização da rede. (Parecer n.° 16/94/complementar).
No Parecer n.° 21/2000 ponderou-se que Ainda que se torne aceitável que os dados de tráfego se encontrem equiparados aos dados de conteúdo, que constituem o núcleo mais fundamental da própria comunicação, para efeito de protecção do sigilo das telecomunicações, não é de todo evidente que o mesmo critério deva ser aplicado aos dados de base.
Os dados de base respeitam à identificação dos emissores ou destinatários das chamadas telefónicas - evidenciando assim a mera conexão a uma rede pública de telecomunicações -, e não são susceptíveis de revelarem ou identificarem uma comunicação.
É possível detectar uma diferença de grau entre a protecção de dados de tráfego (e, por maioria de razão, os dados de conteúdo) e a dos dados de base.
Ao passo que aqueles, sendo gerados por uma ligação telefónica, estão abrangidos pela própria confidencialidade da comunicação (...), em relação a estes, o sigilo profissional que recai sobre os trabalhadores e responsáveis das empresas de telecomunicações deriva de um direito (que o utilizador pode ou não exercer) de impedir a divulgação dos respectivos dados de identificação (...).
Ainda que se encontrem cobertos por um sistema de confidencialidade, que tenha sido solicitado pelo próprio assinante, os interesses em causa são de natureza privatística ou contratual - o utilizador pode pretender não figurar numa lista de assinantes para se não colocar na contingência de receber de terceiros comunicações que não deseje -, e não assumem a dignidade que lhes permita conferir a protecção constitucional do sigilo das comunicações.
A confidencia/idade dos referidos documentos, quando subsistente por efeito da relação contratual entre o operador e o utilizador, deverá por isso ceder perante o dever de colaboração com a administração da justiça (...).
Estas considerações do Parecer tiveram em vista a obtenção de informações no âmbito da investigação criminal.
Especificamente quanto à problemática da divulgação de informações confidenciais relativas aos utilizadores dos serviços de telecomunicações, que se encontrassem na posse dos fornecedores de rede e dos prestadores de serviços de telecomunicações acessíveis ao público, quando tais elementos fossem requisitados pelo juiz do processo para efeito de instrução no âmbito de ações cíveis, ponderou-se, no aludido Parecer, que tais dados estavam abrangidos pelo sigilo profissional por efeito das disposições dos artigos 17.º, n.o 3, da então vigente Lei de Bases de Telecomunicações (Lei n.o 91/97, de 1 de Agosto), e art.° 5.o da então vigente Lei de Protecção de Dados Pessoais no Sector das Telecomunicações (Lei n.o 69/98, de 28 de Outubro). Aí se incluindo os elementos de informação gerados por uma ligação telefónica, como são os designados dados de tráfego e dados de conteúdo.
Segundo o Parecer, a obtenção desse tipo de informação por parte dos tribunais, no âmbito de processos de natureza civil para efeitos instrutórios ou para assegurar o bom andamento dos processos, deparava com a legitimidade de recusa por parte dos operadores de telecomunicações, em conformidade com o disposto no artigo 519.°, n.° 3, alínea b), do CPC (correspondente ao art.° 417.°, n.° 3, al. b) do atual CPC), encontrando-se, por isso, claramente excecionada do dever de cooperação.
Em relação, no entanto, aos dados de conexão à rede, chamados dados de base (número de acesso, identidade e morada do utilizador), valiam mutatis mutandis todas as considerações já anteriormente expendidas quanto ao índice ou grau de confidencialidade que está aí em causa. O carácter sigiloso dos dados deriva, nessa hipótese, da circunstância de o interessado ter manifestado a oposição à sua publicitação (que poderia ocorrer, designadamente por via da inclusão em listagens de assinantes), relevando, por conseguinte, no plano dos simples interesses pessoais que não contendem com a esfera privada íntima. A divulgação dessas informações, dentro dos limites consentidos pelos fins da actividade instrutória no âmbito do processo civil, não afecta a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada.
Nesse caso, deve prevalecer o interesse público fundamental subjacente ao dever de cooperação com a administração da justiça.
E se as entidades requisitadas, na ponderação dos valores em presença, vierem a invocar escusa, com base no disposto na alínea c) do n.o 3 do artigo 519. °, funciona então o mecanismo previsto no artigo 135.° do Código de Processo Penal, por força da remissão operada pelo n.o 4 daquele artigo.
Assim, os chamados dados de base, tais como o endereço do assinante, exteriores ao acionamento de comunicações em concreto, não se integram na previsão do n.° 4 do art.° 34.° da CRP, nem da alínea b) do n.° 3 do art.° 417.° do CPC. Pelo que a eventual escusa por parte dos operadores de telecomunicações na prestação de informações atinentes a esses dados deverá ter o tratamento previsto nos artigos 417.° n.° 4 do CPC e 135.° do CPP.
Tal entendimento tem tido acolhimento no Tribunal Constitucional (vide acórdão n.° 486/2009, de 28.9.2009 e acórdão n.° 403/2015, de 27.8.2015, publicado no D.R., I série, de 17.9.2015) e, também, na doutrina (vide Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.a edição, 2011, p. 548, nota 21).
Em síntese e reportando-nos ao direito substantivo ordinário em vigor, supra transcrito:
O endereço de alguém é um dado pessoal, nos termos do art.° 3.o da Lei n.° 67/98 e pode ser dado a conhecer nos termos da al. e) do art.° 6.° dessa Lei (para prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados).
A Vodafone, tratadora de dados pessoais, está sujeita a sigilo profissional nos termos do art.° 17.E n.° 1 da Lei n.o 67/98 e, enquanto operadora de telecomunicações, está obrigada a garantir a segurança e a inviolabilidade das comunicações eletrónicas, nos termos dos artigos 3.0 e 4.o da Lei n.o 41/2004.
Ainda que se admita que a letra da Lei n.o 41/2004 inclui o endereço do assinante na categoria dos dados de tráfego (n.o 2 do art.° 6.o: É permitido o tratamento de dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações, designadamente: a) Número ou identificação, endereço e tipo de posto do assinante; (...)), os tribunais poderão ter acesso a esses dados, nos termos das disposições aplicáveis, conforme expressamente admitido no n.o 7 do art.° 6.° citado (O disposto nos números anteriores não prejudica o direito de os tribunais e as demais autoridades competentes obterem informações relativas aos dados de tráfego, nos termos da legislação aplicável, com vista à resolução de litígios, em especial daqueles relativos a interligações ou à faturação).
Haverá, assim, que atentar se, in casu, em que o aludido cliente da prestadora de serviços de telecomunicações pediu a esta que mantivesse a confidencialidade da sua identificação, incluindo endereço, excluindo-o de eventuais listas públicas, se justifica que a operadora seja isenta desse dever de sigilo.
Pretende-se, com a informação ora sub judice, tentar descobrir o paradeiro de duas viaturas cuja apreensão foi ordenada pelo tribunal, a fim de serem restituídas à requerente, sua proprietária. Há mais de um ano que a requerente obteve o reconhecimento do seu direito. Todas as diligências tentadas para encontrar as viaturas, com base no endereço da sociedade requerida, se frustraram. Assim, uma vez que o aludido cliente da Vodafone foi sócio-gerente da locatária das viaturas (a ora insolvente requerida), faz sentido que se tente obter junto daquele a restituição das viaturas ou, pelo menos, informação do seu paradeiro. Porém, todas as tentativas de contactar essa pessoa junto das moradas constantes nos registos das entidades oficiais também não resultaram. Ora, está em causa, de um lado, efetivar o direito de propriedade, judicialmente reconhecido, da requerente, e dar execução a uma decisão judicial e, do outro, manter em segredo um aspeto da privacidade de uma pessoa, que é o seu endereço, constante nos registos da sua operadora de telecomunicações. Numa sociedade como a nossa, a indicação do seu endereço pelo cidadão é, frequentemente, requisito necessário para desfrutar dos benefícios dessa mesma sociedade, além de ser obrigatória para o cumprimento das fundamentais obrigações de cidadania (identificação civil, fiscal, etc). Assim, não estando em causa o acesso a uma pessoa singular tendo em vista proporcionar interpelações de natureza comercial ou de diminuta relevância comunitária, mas sim para tentar a efetivação de um direito legal e constitucionalmente consagrado, que é o da efetivação da justiça, cremos que, neste caso, se deve dar provimento ao presente incidente.
DECISÃO
Pelo exposto defere-se ao requerido e consequentemente decreta-se o levantamento do sigilo profissional a que a V…, S.A. estava obrigada e determina-se que a mesma preste a informação supra referida, ou seja, indicação da morada de FA....
As custas do incidente (apelação) são a cargo da requerida Inovatrónica, que nela decaiu (art.° 527.0 n.0s 1 e 2 do CPC).
Lisboa, 12.4.2018
Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins