Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
Actualidade | Jurisprudência | Legislação pesquisa:


    Jurisprudência da Relação Cível
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 29-05-2018   Artigo 526º, n.º 1, do CPC. Audição de Pessoa não oferecida como testemunha.
1 . Para se aferir do deferimento de audição de pessoa com conhecimento para a decisão de uma causa, tendo presente o teor do artigo 526.°, n.° 1, do Código de Processo Civil Revisto, é de sublinhar o segmento em que se refere: tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa.
2. Na verdade, os conhecimentos da pessoa a ouvir devem dirigir-se a um fim bem determinado: a boa decisão da causa que está a ser discutida. É esta que constitui a pedra de toque que deve nortear a decisão judicial para determinar, ou não, a audição de pessoa não oferecida como testemunha e referenciada no decurso de um depoimento.
Proc. 336/18.4T8OER-C.L1 7ª Secção
Desembargadores:  Dina Monteiro - Luís Espírito Santo - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
_______
RECURSO: 336/18.4T8OER-C.L1, DO Tribunal judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Cível de Oeiras - Juiz 1
APELANTES: W... TELEVISION PRODUCTION ESPANA, S.L. SUCURSAL PORTUGAL e SOC...
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1. RELATÓRIO
W... TELEVISION PRODUCTION ESPANA, S.L. SUCURSAL PORTUGAL e SOC..., SA, requeridas nesta ação especial de tutela de personalidade instaurada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO em representação das crianças e jovens identificados nos autos, interpuseram recurso de Apelação do despacho proferido em sede de Audiência de Julgamento realizada no dia 16 de Março de 2018, que indeferiu a inquirição da pessoa mencionada no depoimento prestado pela testemunha L... por ter considerado que a factualidade em causa não era essencial para a boa decisão da causa uma vez que (...) o que esta em analise no
processo é o preciso conteúdo dos programas já exibidos e o que foi produzido, mas não exibido, e nas suas repercussões na personalidade física ou moral dos menores, já não de que modo os menores participantes foram ou não instruídos a comportarem-se durante a gravação daqueles programas.
Inconformadas com o assim decidido, as Requeridas W... TELEVISION PRODUCTION ESPANA, S.L. SUCURSAL PORTUGAL e SOC..., SA, interpuseram recurso de Apelação, nos termos dos quais formularam as seguintes conclusões:
Uma vez que as alegações de cada um dos recursos acima identificados versam sobre o mesmo objeto e contêm conclusões em si mesmas muito semelhantes (salvo o entendimento quanto a verificação das inconstitucionalidades invocadas pela Apelante SOC], por razões de economia processual, o seu conhecimento será realizado em conjunto.
Conclusões apresentadas pela Apelante W... TELEVISION PRODUCTION ESPANA, S.L. SUCURSAL PORTUGAL:
A. O presente Recurso de Apelação vem interposto da decisão relativa à não admissão de um meio de prova requerido pela ora Apelante, resultante do despacho proferido na audiência de julgamento de 16 de Março de 2018, presentes na respetiva Acta de Audiência de Julgamento com a referência 112115959, nos termos da qual o Tribunal a quo indeferiu a inquirição do operador de câmara mencionado pela testemunha L... aquando da sua prestação de depoimento.
B. A decisão ora recorrida, conforma uma decisão relativa à rejeição de meios de prova requeridos pelas partes, pelo que, a decisão que ora se impugna corresponde à prevista no artigo 644.° n.° 2 alínea d) do Código de Processo Civil.
c. No decurso da audiência de julgamento, que teve lugar no passado dia 16 de Março de 2018 a ora Apelante apresentou requerimento, no qual solicitava a notificação de um operador de camara para que fosse produzida prova no sentido de apurar se aquelas afirmações correspondiam à verdade.
D. O citado requerimento surgiu na sequência da introdução na instância de facto novo, não alegado pelos autores em sede da sua Petição Inicial, mediante inquirição de uma testemunha arrolada pelo requerido Lu....
E. Das declarações da testemunha L... resulta que a menor M... terá sido, alegadamente, incitada pelo operador de câmara a bater com mais força na mesa, cuspir comida, empurrar a mãe e chamar nomes à mãe (cf. gravação da sessão de audiência de julgamento, constante de ficheiro electrónico com a referência 20180316110146_4036980_2871358, minutos 00:15:04 a 00:15:19; 00:15:47 a 00:16:04 e 00:29:31 a 00:29:41).
F. Todavia, o Tribunal a quo, indeferiu o mencionado requerimento da ora Apelante quanto à notificação do operador de câmara para vir prestar depoimento, por considerar que o facto de alegadamente a menor M... ter sido incitada a ter determinados comportamentos não era relevante para a boa decisão da causa.
G. Salvo o devido respeito, não pode este ser o entendimento quanto a esta matéria.
H. Na presente ação discutem-se, como refere o Tribunal a quo, as eventuais repercussões do conteúdo do programa Supernanny na personalidade física e moral dos menores que no mesmo participaram.
I. Pelo que, saber se os comportamentos da M…, retratados no programa, nomeadamente cuspir comida, empurrar a mãe e chamar nomes à mãe, foram, ou não incitados é de sobremaneira relevante para a boa decisão da causa.
J. É que a verificação, pelo Tribunal, quanto à verdade ou não dos factos invocados pela testemunha L... é importante para avaliar do grau bem como da existência ou não de repercussões negativas do programa na personalidade da menor Margarida, verificando se houve ou não estímulo, incentivo ou ordem de prática dos atos em causa pela menor, exacerbando ou promovendo traços negativos de educação e personalidade.
K. Especialmente, quando se encontra em discussão se tais comportamentos, como alega o Ministério Público, são negativos e prejudiciais para a criança, o que como demonstrado nos autos não se concede.
L. Assim, entender que é irrelevante determinar se tais comportamentos eram efetivamente os comportamentos espontâneos e naturais dessa menor ou, pelo contrário, se foram incentivados e instigados por um terceiro, durante a gravação do programa S..., criando incentivo deseducativo e despromotor do livre e positivo desenvolvimento do perfil de personalidade da menor,
M. É inaceitável, uma vez que, a aferição dos alegados danos para o livre desenvolvimento psicológico da menor M... constitui precisamente o objeto dos presentes autos.
N. Como tal, cabia ao Tribunal a quo, nos termos do disposto no artigo 526° n.° 1 do Código de Processo Civil, ter oficiosamente ou, pelo menos, na sequência do requerimento formulado pelas requeridas, ordenado a notificação do operador de câmara a que a testemunha L... fez referência durante a sua inquirição para vir depor sobre se a menor M... foi ou não incentivada a adotar determinados comportamentos durante as gravações do programa S…, de tal modo que aqueles comportamentos que foram transmitidos foram exacerbados, não correspondendo, por isso, à realidade.
o. Nestes termos, a norma constante do artigo 526.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que a indução de um menor a adotar comportamentos negativos não é um facto relevante para a boa decisão da causa, no âmbito de um processo de tutela da personalidade em que se avalia o significado e o impacto desses actos no desenvolvimento da personalidade do menor é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 20.°, n.° 4 e 26.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que se deixa arguida para todos os efeitos legais.
Sem prejuízo do até aqui exposto, sempre se dirá que, P. Através da inquirição da testemunha L... foi introduzido nos autos um facto novo, que não havia sido alegado nos autos i.e. que os comportamentos da menor M... foram alegadamente exacerbados por instrução do operador de camara.
Q. Facto novo, do qual o Tribunal se pode recorrer para fundamentar a sua decisão, ainda que segundo a sua prudente convicção nos termos do n.° 5 do artigo 607° do Código de Processo Civil.
R. Todavia, não foi permitido às requeridas exercerem o contraditório quanto àquele facto.
S. Tal facto constitui um facto concretizador dos factos alegados pelo Ministério Público, na medida em que o (alegado) potencial dano para o livre desenvolvimento dos menores em causa será certamente mais elevado no caso de estarem em causa comportamentos ficcionados e não comportamentos reais.
T. Nestes termos, perante este novo facto, e sendo certo que legal e constitucionalmente assiste às partes o direito de produzir prova quanto a todos os factos introduzidos no processo, vide artigo 5.°, n.° 2, alínea b) e 3.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 549.°, n.° 1, do mesmo diploma, constitui um direito da ora Apelante exercer, quanto ao mesmo, o direito a prova, direito que, de resto, a ora Apelante pretendeu exercer através do requerimento da audição, como testemunha, do operador de camara referido pela testemunha L....
U. Ao indeferir o requerimento, por considerar que as eventuais declarações do operador de camara não integram factos relevantes para a boa decisão da causa, que comprovariam exatamente o oposto, o Tribunal a quo limitou ilegitimamente o direito ao contraditório da ora Apelante.
v. Assim, a norma constante do artigo 5.°, n.° 2, alínea b), do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que os factos concretizadores não estão sujeitos ao contraditório e contraprova, pela parte contrária, com intuito de demonstrar que não são verdadeiros factos referidos pelas testemunhas, ou introduzidos na instância aquando da sua instrução é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 2.°, 3.° e 20.° n.° 4, da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que se deixa desde já arguida para todos os efeitos legais.
w. Pelo que, deve a decisão do Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que determine a identificação do operador de câmara e a sua notificação para prestar depoimento nos autos.
Conclui, assim, pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que ordene a identificação do operador de câmara e sua notificação para prestação de depoimento, nos termos por si requeridos.
Conclusões apresentadas pela Apelante SOC..., SA:
1. (A) O presente Recurso de Apelação vem interposto da decisão relativa à não admissão de um meio de prova requerido pela SIC, proferida no decurso da terceira sessão de audiência de julgamento e constante da Acta de Audiência de Julgamento relativa à parte da tarde, nos termos da qual o Tribunal a quo indeferiu a inquirição do operador de câmara mencionado pela testemunha L... aquando da sua prestação de depoimento.
2. (B) Estamos perante uma decisão sobre rejeição de meios de prova, que é recorrível ao abrigo do artigo 644.°, n.° 2, alínea d), do Código de Processo Civil.
Da (errada) interpretação do artigo 526.° do Códiqo de Processo
3. (C) O Tribunal a quo, ao indeferir o requerimento da SIC quanto à notificação do operador de camara para vir prestar depoimento por considerar que o facto de alegadamente a menor M... ter sido incitada a ter determinados comportamentos não era relevante para a boa decisão da causa, procedeu a uma interpretação errada do artigo 526.°, n.° 1, do Código de Processo Civil.
4. (D) Das declarações da testemunha L... resulta que a menor M... terá sido, alegadamente, incitada pelo operador de camara a bater com mais força na mesa, cuspir comida, empurrar a mãe e chamar nomes à mãe (cf. gravação da sessão de audiência de julgamento, constante de ficheiro electrónico com a referência 20180316110146 4036980_2871358, minutos 00:15:04 a 00:15:19; 00:15:47 a 00:16:04 e 00:29:31 a 00:29:41).
5. (E) Tendo em conta que constitui objecto dos presentes autos aferir as repercussões do programa S... na personalidade moral e psíquica das menores que nele participaram, e atendendo aos factos que têm sido alegados por ambas as partes, jamais se poderá dizer que é irrelevante determinar se os comportamentos exibidos no primeiro episódio eram efectivamente os comportamentos da menor M... ou, pelo contrário, se foram incentivados por um terceiro durante a gravação do programa.
6. (F) A verificação quanto à verdade ou não dos factos invocados pela testemunha L... é importante para avaliar a existência ou não de repercussões negativas do programa na personalidade da menor, verificando se houve ou não estímulo, incentivo ou ordem de prática de actos em causa pela menor, exacerbando ou promovendo traços negativos de educação e personalidade.
7. (G) Com efeito, o incentivo à adopção de comportamentos que, na realidade, não são seus, é susceptível de criar confusão emocional para a criança, de tal modo que a mesma não se vai conseguir rever naqueles comportamentos.
8. (H) Por outro lado, se os espectadores esperam ver comportamentos reais de determinado menor e se, afinal, tais comportamentos são encenados, tal tem consequências directas para a imagem que o espectador pode ter criado em relação ao menor em causa, levando a que se crie, de modo propositado, uma imagem não correspondente à realidade.
9. (I) Como tal, atendendo ao artigo 526.°, n.° 1, d. Código de Processo Civil, cabia ao Tribunal a quo ter oficiosamente ou, pelo menos, na sequência do requerimento da SIC, ordenado a notificação do operador de câmara a que a testemunha L... fez referência durante a sua inquirição, para vir depor sobre se a menor M... foi ou não incentivada a adoptar determinados comportamentos durante as gravações do programa S..., de tal modo que aqueles comportamentos que foram exibidos foram exacerbados, não correspondendo, por isso, à realidade.
10. (J) Nestes termos, a norma constante do artigo 526.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que a indução de um menor a adoptar comportamentos negativos não é um facto relevante para a boa decisão da causa, no âmbito de um processo de tutela da personalidade em que se avalia o significado e o impacto desses actos no desenvolvimento da personalidade do menor é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 20.°, n.° 4 e 26.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que se deixa arguida para todos os efeitos legais.
Da alegação de factos novos e do direito a produzir prova
11. (K) Mediante inquirição da testemunha L..., que referiu que o operador de camara identificado incitou a menor M... a bater com mais força na mesa, a cuspir comida, a empurrar a mãe e a chamar nomes à mãe, foi introduzido um facto novo nos autos, o que levou a SOC… a requerer a notificação do operador de camara para que fosse produzida prova no sentido de apurar se aquelas afirmações correspondem à verdade.
12. (L) Este facto constitui um facto concretizador dos factos alegados pelo Ministério Público, na medida em que o alegado potencial dano para o livre desenvolvimento dos menores em causa será mais elevado se estiverem em causa comportamentos fíccionados e não comportamentos reais.
13. (M) Nos termos do artigo 5.°, n.° 2, alínea b) e 3.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artig. 549.0, n.° 1, do mesmo diploma, perante a introdução deste facto novo a SOC… tem o direito de produzir prova.
14. (N) O Tribunal a quo, ao indeferir o requerimento da SIC para audição do operador de camara por considerar que as eventuais declarações do mesmo não integram factos relevantes para a boa decisão da causa, impediu que a SOC… produzisse a prova que entendia necessária para descoberta da verdade e relativamente a um facto novo trazido para o processo, violando os seus direitos de defesa, ao contraditório, à prova e à igualdade de armas
15. (O) A esta luz, a norma constante do artigo 5.°, n.° 2, alínea b), do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que os factos concretizadores não estão sujeitos ao contraditório e contraprova é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 2.°, 3.°, e 20.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que se deixa desde já arguida para todos os efeitos legais.
16. (P) Assim, deve a decisão do Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que determine a identificação do operador de camara e sua notificação para prestar depoimento nos presentes autos.
Conclui, assim, pela revogação da decisão proferida pelo Tribunal de 1.a instância e pela sua substituição por outra que determine a identificação do operador de câmara e pela sua notificação para prestação de depoimento, nos termos por si requeridos.
O MINISTÉRIO PÚBLICO contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
A) A douta decisão recorrida fez adequada e correta interpretação do disposto no artigo 526.°, do Código de Processo Civil, porquanto desenvolveu uma avaliação sobre a potencial utilidade probatória da diligência requerida, relacionando-a com o objeto da ação e não com aspetos laterais que em pouco ou nada se cruzam com o seu thema decidendum;
B) A ação instaurada não visa a avaliação do comportamento sério, ou não sério, quanto à forma como se produz o programa. Visa, isso sim, avaliar o formato, com violação da reserva da vida privada das crianças, atenta ou não contra a sua personalidade. E isso basta-se com a visualização dos programas exibidos;
C) A eventual inquirição do dito operador de camara, além de constituir um ato inútil, proibido por lei, teria a virtualidade de expor a Autora Margarida à sua tomada de declarações enquanto parte, o que equivaleria, face ao próprio objeto da ação, um ato contrário aos seus interesses e mais uma violação da sua personalidade;
D) Em processo civil, a valoração do depoimento indireto é permitida, desse que o Tribunal, em liberdade, materialize, citicamente, a sua convicção, nos termos do disposto no artigo 607.° do Código de processo Civil.
E) O depoimento da testemunha L..., na parte que interessa para o presente recurso, visou demonstrar probatoriamente factos alegados na contestação do Requerido Lu..., em concreto, a foram como viu e interpretou a imagem da sua filha retratada no programa S….
Conclui, assim, pela manutenção da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Com a concordância dos Exmos. Adjuntos, foram dispensados os vistos no processo tendo, no entanto, sido dado prévio cumprimento ao disposto no artigo 657.°, n.°s 2 e 4, do Código de Processo Civil Revisto, pelo Relator deste recurso.
Cumpre decidir.
II. FACTOS PROVADOS
1. Na Acta de Audiência de Julgamento de 16 de Março de 2018, após audição da testemunha Lis..., consta a seguinte transcrição:
Após finalização do depoimento da testemunha, pelo ilustre mandatário da Sic foi pedida a palavra a qual foi concedida e no seu uso disse:
Findo o depoimento da testemunha L... a requerida SOC… considera que o depoimento sem prejuízo da avaliação natural que o Tribunal poderá fazer que o depoimento não é credível, apresenta contradições manifestas, mais do que uma e também algumas dualidades no que se refere à razão de ciência, ao facto da testemunha numas ocasiões apresentar conhecimento direto e noutras ocasiões já não tem conhecimento. Mas se há um ponto que é verdadeiramente fundamental e essencial para a Requerida SOC… é que a testemunha alega que a menor Margarida foi instada a simular comportamentos, designadamente nas palavras da testemunha: a cuspir para a mesa e a bater na mesa com mais força por uma presumivelmente da produção do programa que referiu se chamar Miguel.
Para a Requerida SOC… não podem restar quaisquer dúvidas neste processo sobre se houve ou não algum tipo de incitamento a comportamentos que pudessem ser vistos como negativos ou prejudicais aos menores. Também para a descoberta da verdade e com profunda ligação à ameaça dos interesses dos menores, importa verificar tanto quanto possível se esta alegação desta testemunha que reitero nos mereceu credibilidade corresponde ou não à verdade. Para evitar trazer aqui a Margarida, na opinião da requerida o que dispenso de me justificar o que parece ser indesejável, a única alternativa viável será identificar o tal camara men Miguel e requere que o mesmo preste depoimento, para saber se afinal instou a Margarida a realizar comportamento, a exacerbar comportamento ou a intensificar comportamentos.
Pelo exposto, vem a requerida SOC…, requerer em alternativa a contradita da testemunha nos termos do artigo 521° e 522° do CPC, caso o Tribunal venha a considerar ser recebida a contradita indicar para prova da contradita a identificação e o testemunho do referido Miguel, ou caso, entenda não ser de receber a contradita que pelo menos o Tribunal ordene à W…, nomeadamente a identificação do camara men Miguel e ordene o seu posterior depoimento para a final esclarecer se houve algum tipo de incitamento ou não à Margarida.
De seguida, pelo ilustre mandatário da requerida W… foi pedida a palavra a qual foi concedida e no seu uso disse:
A W… requerida nos autos, acompanha o requerimento da Ré SOC…, mais fazendo notar que considera o conteúdo das declarações da testemunha atentatórias do seu bom nome e da sua idoneidade profissional enquanto sociedade e como tal para além de acompanhar o requerimento da requerida SOC…, mais requer que a prova seja também feita com o testemunho do citado camara men, Miguel, que poderá ser melhor identificado pela própria W... como das demais pessoas que estiveram presentes durante a gravação das referidas cenas, nomeadamente da cena em que a Margarida cuspiu para a mesa, chamou a mãe de estúpida, empurrou a mãe e bateu com a mesa , os quatro episódios que foram citados pela testemunha.
De seguida, a Mm. a Sra. Juiz profere o seguinte: DESPACHO
O Tribunal considerando que o depoimento da testemunha acabada de ouvir e relativamente as declarações que são aqui colocadas em causa, é um depoimento indirecto e portanto tem na sua base as declarações de uma criança, sendo certo que a prova é livremente apreciada pelo Tribunal e considerando que para que fosse verdadeiramente apurada o fundamento desta contradita, teria que necessariamente ouvir a criança, sendo certo que isso não está aqui a ser requerido neste caso, sendo certo ainda que decorre do regime expresso da contradita do artigo 522° do n° 3 que: as testemunhas sobre a matéria da contradita têm de ser apresentadas e inquiridas imediatamente; os documentos podem ser oferecidos até ao momento em que deva ser proferida decisão sobre os factos da causa, o que não está a suceder, com base nestes fundamentos o Tribunal indefere o requerido incidente da contradita, porque tem na sua base um depoimento meramente indirecto.
De seguida foi fornecido aos autos o nome do operador de camara: Mi....
De seguida, pela Mma Sra. Juiz foi proferido o seguinte: DESPACHO
Relativamente ao requerido pela SIC, o Tribunal vai-se pronunciar na parte da tarde.
(ficou gravado no sistema Habilus média studio, de rot. 11:01:46 a 11:56:58).
2. Na sequência do determinado no antecedente Ponto 1, aberta a Audiência de Julgamento na parte de tarde desse mesmo dia, consta da respetiva Acta despacho com o seguinte teor:
Reaberta a presente audiência de julgamento, pelas 14h40m, a Mma Sra. Juiz concedeu as ilustres mandatárias dos restantes requeridos e à Digna Magistrada do Ministério Público para se pronunciarem sobre a requerida inquirição da pessoa mencionada no depoimento da testemunha L....
Pelas mesmas foi dito nada terem a requerer.
Pela Digna Magistrada do ministério público foi dito:
Presumo do seu despacho que foi indeferida a contradita e com base nos seus fundamentos e porque entendo que não à pertinência na audição oponho-me à inquirição
De seguida, a Mm. a Sra. Juiz proferiu o seguinte:
DESPACHO,
Relativamente à inquirição requerida pela SOC…, de acordo com o artigo 526° do CPC, quando no decurso da acção haja razões para presumir que determinada pessoa não oferecida como testemunha tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o Juiz ordenar que seja notificada para depor.
Ora, no nosso entendimento, as eventuais declarações do operador de camara à menor identificada nas declarações da testemunha L... não integram factos importantes para a boa decisão da presente causa, porquanto o que esta em analise no processo é o preciso conteúdo dos programas já exibidos e o que foi produzido, mas não exibido, e nas suas repercussões na personalidade física ou moral dos menores, já não de que modo os menores participantes foram ou não instruidos a comportarem-se durante a gravação daqueles programas.
De salientar ainda que sendo mencionada a pessoa em questão desempenhando as funções de operador de camara, sempre teria de ser averiguado se o operador de camara tinha agido do modo descrito com autorização/ conhecimento da sua entidade patronal.
Assim, essa matéria e caso algum dos intervenientes processuais a queiram melhor apurar deverá adoptar os mecanismos legais à sua disposição para o efeito.
Em suma, porque a factualidade em apreço não é essencial parta a boa decisão da causa, indefere-se a requerida inquirição da pessoa mencionada no depoimento da testemunha L....
Notifique.
(gravado no sistema Habilus média studio, de rot. 14:41:53 a 14:44:25),
III. FUNDAMENTAÇÃO
O conhecimento das questões por parte deste Tribunal de recurso encontra-se delimitado pelo teor das conclusões ali apresentadas salvo quanto às questões que são de conhecimento oficioso - desde que o processo contenha elementos que permitam esse mesmo conhecimento -, e aquelas que importem distinta qualificação jurídica - artigos 5.°, n.° 3, 635.°, n.°s 3 a 5 e 639.°, n.° 1, do Código de Processo Civil Revisto.
O conteúdo de tais conclusões deve obedecer à observância dos princípios da racionalidade e da centralização das questões jurídicas objeto de tratamento, para que não sejam analisados todos os argumentos e/ou fundamentos apresentados pelas partes, sem qualquer juízo crítico, mas apenas aqueles que fazem parte do respetivo enquadramento legal, nos termos do disposto nos artigos 5.° e 608.°, n.° 2, ambos do Código de Processo Civil Revisto.
Excluídas do conhecimento deste Tribunal de recurso encontram-se também as questões novas, assim se considerando todas aquelas que não foram objeto de anterior apreciação pelo Tribunal recorrido.
Uma vez que as alegações de cada um dos recursos acima identificados versam sobre o mesmo objeto e contêm conclusões em si mesmas muito semelhantes (salvo o entendimento quanto a verificação das inconstitucionalidades invocadas pela Apelante SOC…], por razões de economia processual, o seu conhecimento será realizado em conjunto.
Assim, e quanto à questão concretamente colocada neste recurso, reportada ao pedido de audição de pessoa referenciada por uma testemunha sobre um facto a que essa mesma testemunha não presenciou, ou seja, que lhe foi relatado por terceiro não indicado como testemunha e/ou a que o Tribunal irá tomar declarações [sua filha menor de sete anos], desde já se adianta que não assiste razão às Apelantes.
Com efeito, e numa abordagem muito simples, sempre se dirá que, em abstrato, concordamos com os argumentos utilizados pelas Apelantes que estão, aliás, em conformidade com as disposições legais ali citadas. A questão é que, em concreto, tais preceitos não têm qualquer relação com a decisão a proferir no processo, isto é, são estranhas ao seu desenvolvimento e posterior decisão.
Assim, desde logo retenha-se o teor do artigo 526.°, n.° 1, do Código de Processo Civil Revisto:
Quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor.
Deste preceito legal entendemos ser de sublinhar o segmento em que se refere: tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa. Na verdade, os conhecimentos da pessoa a ouvir devem dirigir-se a um fim bem determinado: a boa decisão da causa que está a ser discutida. É esta que constitui a pedra de toque que deve nortear a decisão judicial para determinar, ou não, a audição de pessoa não oferecida como testemunha e referenciada no decurso de um depoimento.
Vejamos, agora, o objeto desta causa proposta pelos seis menores devidamente identificados no processo - crianças e jovens - e aqui representados pelo Ministério Público, tendo presentes os pedidos ali formulados:
1. Relativamente aos programas n°s 1 e 2 já exibidos em 14 e 21 de janeiro de 2018, respectivamente, deverá a requerida SIC, sem a oposição dos demais Requeridos, ser condenada a:
Retirar o acesso a qualquer conteúdo dos referidos programas, bem como quaisquer outras retransmissões do mesmo, sendo o acesso bloqueado em todos os meios onde os conteúdos possam estar ou vir a ser colocados acessíveis (incluindo nomeadamente sítios internet, redes sociais, canais que disponibilizam streamings de vídeo como o youtube e afins), por forma a não ser consultado pelo público;
ii. Garantir que não há quaisquer conteúdos do referido programa acessíveis ao público em qualquer meio de comunicação de entidades com as quais tem relações de grupo;
iii. A fazer valer os seus direitos de propriedade junto de quaisquer entidades, também em qualquer meio de comunicação, para que o acesso a quaisquer conteúdos dos programas referidos que tenham sido colocados acessíveis sejam imediatamente bloqueados por essas entidades (vg, redes sociais, canais que disponibilizam streaming de vídeo como o youtube e afins);
II. Relativamente ao programa n.° 3, já filmado e a exibir no próximo dia 28 de Janeiro, respeitante aos Requerentes Lo..., To… e Ca…, deverá SIC, sem oposição dos demais, ser condenada
iv. A não exibir o programa; Ou, caso assim se entenda mais adequado,
v. A sua exibição deverá ficar expressamente condicionada à utilização de filtros de imagem e de voz que permitam, de modo inequívoco, evitar que as crianças e jovens sejam suscetíveis de ser identificados;
III. Relativamente a cada um dos segmentos condenatórios, pede-se que, nos termos do n.° 4 do artigo 879.°, do Código de Processo Civil, seja aplicada e fixada sanção pecuniária compulsória pro cada dia de atraso no montante de 15.000,00€ (quinze mil euros).
IV. E que, a final, a decisão provisória requerida seja convertida em definitiva e que vincule as Requeridas SIC e W.B. a que todos os eventuais e futuros programas do mesmo formato apenas possam ser exibidos nos moldes que o Tribunal venha a determinar.
Como podemos constatar pelos pedidos formulados, e salvo sempre o devido respeito, é irrelevante, no âmbito desta ação saber se os comportamentos mantidos pelos menores antes e/ou durante a gravação do programa foram, ou não, induzidos aos menores por terceiros, trabalhadores das Apelantes. O que verdadeiramente importa é, conforme foi referido pela senhora Juiz do Tribunal de 1.0 instância e secundado pelo Ministério Publico em representação desses mesmos menores, é saber se a exibição pública daquele formato de programa é,
objetivamente e em si mesmo, prejudicial para os legítimos interesses dos menores, única questão de que este processo se ocupa.
Acresce que, como as Apelantes não podem deixar de saber, a audição da testemunha pelas mesmas referenciada, com base num depoimento indireto (a testemunha refere um episódio que lhe terá sido contado por uma menor, no caso, sua filha de sete anos) em nada poderia ser esclarecedora para os autos tendo em conta o seu objeto.
Com efeito, a testemunha L... não presenciou os factos; a menor M… de sete anos, não foi nem será ouvida em Audiência de Julgamento, pelos motivos que foram já por várias vezes ali referidos sendo certo que também não foi pedida a sua audição no processo e que sendo-o, sempre a mesma audição constituiria, em si mesma, uma nova violação dos direitos desta menor; a testemunha mencionada em depoimento indireto, se ouvida, em nada iria esclarecer os factos que constituem o objeto deste processo, tanto mais que o seu depoimento jamais seria passível de contraditório, no caso, em face do que terá sido narrado pela menor M… à testemunha L..., sua mãe.
Assim sendo, sempre seria de perguntar qual a utilidade prática deste pedido de realização de prova. Possivelmente, poderá ter muito interesse para as aqui Requeridas e Apelantes, em outro tipo de ação, com um outro objeto, mas não nesta ação de que nos ocupamos.
De forma distinta, sempre as Apelantes teriam, se assim o entendessem, recurso direto ao esclarecimento dos factos que aqui pretendem apurar, através de diligências a realizar no âmbito das relações laborais mantidas com os seus colaboradores sendo certo que, no que ao desfecho deste processo importa, sempre estaríamos perante
conclusões inócuas para os diretamente ofendidos com a exibição daquelas imagens - artigo 500.° do Código Civil.
Seja como for, e como voltamos a frisar, para o que importa decidir nesta ação, é inócuo apurar-se se os comportamentos assumidos pelos menores foram, ou não, induzidos por terceiros - em relação aos programas que foram ou estavam para ser exibidos pelas Apelantes.
A análise que nos centra é tão só a de qualificar o conteúdo dessas imagens em face da proteção devida aos menores ali identificados e que, nos presentes autos, está a ser legitimamente assegurada e protegida pelo Ministério Público.
Contrariamente ao afirmado pelas Apelantes, nesta ação não estamos aqui a averiguar se os comportamento exibidos pelas crianças no programa televisivo foram induzidos por terceiros e/ou se são traços naturais da sua personalidade. A questão é saber se essa mesma exibição - induzida e/ou natural - consubstancia uma situação de perigo que interfere com o núcleo de direitos da criança.
Esta é, a questão central do processo e é aquela a que as Apelantes têm pretendido dar uma dimensão distinta, como podemos verificar por este terceiro recurso em separado de decisões proferidas ao longo das sessões de Audiência de Julgamento.
Ao pretenderem desviar o centro de atenção do processo, da proteção da imagem e direitos dos menores, para o da veracidade das imagens captadas e transmitidas aos telespectadores, mais uma vez as Apelantes demonstram o papel secundário que atribuem aos direitos dos menores aqui em apreciação, antes dando primazia à informação que pretendem alcançar com a mediatização do assunto visado pelo programa.
Dir-se-ia que, na inversão de valores desta pirâmide criada entre o direito das crianças à proteção da sua imagem, o direito dos telespectadores à informação/recreação e o dever que as Apelantes entendem deter para procederem à transmissão desse mesmo conteúdo informativo, os primeiros são deixados sem garantias, legitimando as Apelantes a sua atuação na prossecução dos segundo e terceiro vértices desta questão.
Neste quadro de facto, a audição da pessoa indicada pela testemunha Lisa, em depoimento indireto que produziu, queda como inócua para o esclarecimento dos factos em discussão nesta ação e, como tal, não se integram no estatuído no artigo 526.° do Código de Processo Civil Revisto pelo que, cumpre tão só confirmar a decisão aqui em recurso.
Em relação às inconstitucionalidades invocadas pela Apelante SOC…, e pelas razões que já acima se deixaram esplanadas, as mesmas não se verificam e, tal como em anteriores recursos interpostos por decisões proferidas pela senhora Juiz do Tribunal de 1.a Instância, no decurso da Audiência de Julgamento, se dirá que não têm qualquer fundamento.
A decisão aqui em apreciação não violou qualquer norma constitucional antes se tendo mantido no âmbito do poder/dever imposto ao Juiz de dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, tendo sempre em vista o objeto e o fim do processo, em conformidade com o determinado pelo artigo 6.° do Código de
processo Civil Revisto, preceito a que, desde já se enfatiza, tem sido dado correto cumprimento legal.
IV. DECISÃO
Face ao exposto, julgam-se improcedentes as Apelações interpostas por W... TELEVISION PRODUCTION ESPANA, S.L. SUCURSAL PORTUGAL, SOC..., SA, confirmando-se a decisão proferida pela senhora Juiz do Tribunal de 1.a Instância na Audiência de Julgamento de 16 de Março de 2018.
Custas pelas Apelantes.
Lisboa, 29 de maio de 2018
Dina Maria Monteiro
Luís Espírito Santo
Maria da Conceição Saavedra
SUMÁRIO:
I. Para se aferir do deferimento de audição de pessoa com conhecimento para a decisão de uma causa, tendo presente o teor do artigo 526.°, n.° 1, do Código de Processo Civil Revisto, é de sublinhar o segmento em que se refere: tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa.
II. Na verdade, os conhecimentos da pessoa a ouvir devem dirigir-se a um fim bem determinado: a boa decisão da causa que está a ser discutida. É esta que constitui a pedra de toque que deve nortear a decisão judicial para determinar, ou não, a audição de pessoa não oferecida como testemunha e referenciada no decurso de um depoimento.