Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Cível
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 - ACRL de 07-06-2018   Ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais. Comunicação do MP. Menor em perigo. Suspensão provisória da guarda partilhada.
1. Deve permanecer junta aos autos, de regulação do exercício das responsabilidades parentais, a comunicação de magistrada do MP, dirigida a magistrada do MP no TFM, na qual informa de circunstâncias relativas a menor, de que tomou conhecimento no âmbito de processo crime em que se investiga crime de abusos sexuais cometido na pessoa daquele por meio irmão, que fazem temer pela saúde e bem estar do menor, por corresponder ao cumprimento das competências e deveres do MP na salvaguarda do superior interesse da criança.
2. Deve ser suspensa provisoriamente a guarda partilhada e fixado regime provisório que atribua a guarda do menor à mãe e fixe regime de visitas ao pai, logo que deduzido despacho de acusação por um crime de abuso sexual de criança agravado de que é vitima o menor e agente o meio irmão, que reside na morada do progenitor de ambos, local onde o crime foi cometido.
Proc. 7976/13.6TBCSC-E.L1 6ª Secção
Desembargadores:  Gilberto Jorge - Maria de Deus Correia - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Apelação n.° 7976/13.6TBCSC-E.L1
Acordam, na 6.ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Lisboa
I Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Família e Menores de Cascais - Juiz 3, encontram-se pendentes uns autos de regulação das responsabilidades parentais intentado por An... contra Ar..., pais do menor Ra..., nascido a 03 de Janeiro de 2011.
Percorrendo o presente recurso de apelação em separado, dele consta a seguinte promoção do Ministério Público:
Veio a progenitora do menor requerer a suspensão do regime provisório fixado pelo facto de o Da... se encontrar acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças, na pessoa do menor Ra....
Conforme resulta dos autos, o Da... não reside com o seu progenitor e também do menor Ra..., encontrando-se presentemente fora do País, a frequentar o programa Erasmos.
Não obstante no inquérito crime não ter sido aplicada medida de afastamento, apenas TIR, o certo é que o progenitor do menor comprometeu-se perante este Tribunal a assegurar que o Da... não contactasse nem convivesse com o seu irmão Ra..., o que de facto tem acontecido.
O progenitor apresenta-se como um pai competente que assegura um ambiente protector e estável ao filho, existindo relação de vinculação entre criança e o pai.
O menor Ra... é uma criança em desenvolvimento que tem tido por parte do pai a atenção esperada, bem como uma relação afectiva consistente.
Proteger o Ra... não é permitir nem legitimar o afastamento do pai.
O Ra... tem direito a ter ambos os progenitores presentes na sua vida. e o regime provisório em vigor satisfaz o seu superior interesse.
Assim, promovo se indefira o requerido.
Na sequência de tal promoção, em 23.06.2017, a Mm.a Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
I - Relativamente ao expediente de fls. 809 a 815 e conforme se deixou expresso na última diligência realizada, determina-se o seu desentranhamento dos autos, por não consubstanciar documento válido que possa ser atendido pelo Tribunal e pelas partes e pelos fundamentos que se seguem.
(…)
II - Da suspensão do regime provisório requerida a fls. 978 dos autos: Considerando que:
a) O regime provisório fixado assenta no pressuposto de que os dois irmãos não devem contactar entre si, o que até à presente data tem sido cumprido pelo progenitor, sendo que a progenitora nunca logrou fazer prova do contrário (ao contrário do que veio alegar);
b) A progenitora interpôs recurso do despacho referente ao regime provisório;
c) O despacho de acusação nada altera o que já consta dos presentes autos; e dando aqui por integralmente reproduzidas todas as considerações tecidas na promoção que antecede, com a qual se concorda na integra, indefere-se o requerido.
Inconformada com tal decisão, Ar..., progenitora do Ra..., interpôs recurso que foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
A apelante apresentou alegações sintetizadas do modo seguinte:
(...)
H - Ainda assim e porque foi sua convicção que - pese embora as suas enormíssimas divergências com o recorrido - a figura paterna é importantíssima no crescimento de qualquer criança, requereu que fosse fixado provisoriamente um regime de permitisse contactos do menor com o pai (nomeadamente, mas não exclusivamente, aos fins-de-semana, de 15 em 15 dias).
(...)
P - Exemplo claro disso mesmo, foi o episódio que ocorreu em 11.10.2016, descrito e relatado pela digníssima Magistrada do Ministério Púbico, Cr..., na comunicação que dirigiu à Exm.a Senhora Procuradora junto do Tribunal de Família e Menores de Cascais, Ma..., onde refere, entre outros factos, que «Foi para mim evidente que o menor procurou na minha pessoa um interlocutor que sensibilizasse o pai, para que este acreditasse nele e que o mesmo está infeliz com a postura por este assumida, fazendo-o vir desmentir o que tinha dito, bem como que o mesmo se sente mais feliz e seguro com a mãe, uma vez que a primeira coisa que ele disse quando entrou no meu gabinete foi tenho saudades da minha mãe, o que agora penso ter sido um pedido de ajuda, que me sinto obrigada a transmitir não só em face das minhas funções, mas também em face da confiança que sinto que foi depositada em mim por esta criança bem como (...) postura do progenitor comum de ambos, ponderando-se não só das eventuais consequências gravosas na formação e lesões psicológicas nesta criança, que senti em profundo sofrimento quando saiu do meu gabinete, e dos riscos para a conservação e veracidade da prova no âmbito do processo-crime, que não se mostra possível de assegurar com medidas de coação sobre o arguido».
Q - Em resposta à comunicação feita pela digníssima Procuradora, Cristina Henrique, supra referida, a Mma. Juíza do Tribunal a quo, claramente ao arrepio daquele que é o superior interesse da criança, proferiu o despacho de que ora se recorre, determinando o desentranhamento da referida comunicação dos autos, por considerar que a mesma não consubstancia documento válido que possa ser atendido pelo Tribunal e pelas partes.
U - Perante o despacho de acusação proferido e atendendo ao facto de que a postura do recorrido perante os factos relatados pelo Ra... não se havia alterado, a recorrente, tendo sempre em vista a salvaguarda do bem-estar do seu filho, apresentou, em 18.05.2017, novo requerimento perante o Tribunal a quo, solicitando uma vez mais que fosse suspenso o regime provisório actualmente em vigor, isto é, que fosse suspensa a guarda partilhada, devendo a guarda do menor ser atribuída exclusivamente à requerida, requerendo ainda que fosse estabelecido um regime de visitas que permitisse ao menor continuar a conviver com o seu pai.
V - Contudo, uma vez mais (no despacho recorrido) o Tribunal a quo indeferiu o pedido da recorrente, mantendo o regime provisório de guarda partilhada.
W - No que concerne à decisão de desentranhamento da comunicação realizada pela Digníssima Procuradora Cr..., constante do despacho recorrido, não se pode aceitar a mesma.
X - Salvo o devido respeito, não tem razão a Mm.a Juíza do Tribunal a quo quando afirma que a comunicação supra reproduzida, realizada pela Digníssima Procuradora Cr... à Exm.a Senhora Procuradora Ma..., relatando o episódio que presenciou envolvendo o menor Ra... e o ora recorrido «mais não é do que um testemunho sem qualquer enquadramento legal» e muito menos razão tem, s.m.o., quando afirma que a mesma viola os deveres funcionais e éticos decorrentes das funções que a Senhora Procuradoria-Adjunta exerce».
(...)
Z - Tendo em consideração a situação relatada pela Digníssima Magistrada do Ministério Público Cr..., fácilmente se conclui que, com a comunicação feita ao processo de família, esta Magistrada procurou somente assegurar a defesa dos direitos e interesses do Ra..., uma vez que considerou, e bem, que o mesmo se encontrava em perigo.
AA - E, contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, constante da decisão recorrida, fê-lo, precisamente, ao abrigo e no cumprimento das suas competências e deveres enquanto magistrada do Ministério Público.
BB - Ao efectuar a mencionada comunicação, a Digníssima Magistrada limitou-se a agir no âmbito das suas competências e funções, por entender que estava perante um menor em perigo, chegando mesmo a sugerir a abertura de um Processo de Promoção e Protecção, se a Exm.a Senhora Procuradora adjudicada ao Tribunal de Família e Menores assim o entendesse por conveniente e adequado, enquanto titular do dever de protecção e defesa do menor no âmbito do processo tutelar cível.
CC - De facto, toda a pressão pelo recorrido sobre a criança, pressão essa de que a própria Procuradora-Adjunta Cr... foi testemunha no sentido de forçar o menor a alterar as declarações que havia prestado no âmbito do processo-crime e desmentir a ocorrência dos abusos sexuais de que terá sido vítima, abusos sexuais esses que terão sido praticados pelo seu meio irmão Da... Martins, é claramente enquadrada na al. O do artigo 3.° da Lei de Protecção de Criança e Jovens em Perigo, onde se dispõe Considera-se que a criança ou jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações: está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional.
DD - Atendendo ao exposto, resulta absolutamente claro que não só a Digníssima Procuradora Adjunta Cr... agiu ao abrigo das suas funções/deveres enquanto Magistrada do Ministério Público ao proceder à comunicação em apreço, dirigida à Procuradora Adjunta adjudicada ao processo de regulação das responsabilidades parentais, de uma situação testemunhada por si que a levou a concluir que o menor Ra... poderia encontrar-se em perigo, para efeitos do disposto na Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, como tal comunicação consiste num meio de prova importantíssimo, pois permite demonstrar, por um lado, a forma leviana como o recorrido encara o processo crime onde o Ra..., seu filho de apenas 6 anos, figura como vítima e, por outro, a total desconsideração que tem pelo seu filho menor, não estando minimamente preocupado com a salvaguarda dos seus interesses ou bem-estar.
EE - A decisão sub judice não só revela que o Tribunal a quo não terá minimamente em conta os factos relatados pela Digníssima Procuradora Adjunta Cr... nas declarações a proferir no que concerne à regulação das responsabilidades parentais do menor - factos que demonstram claramente que o progenitor, pai do Ra..., coloca em perigo o próprio filho, descurando, em absoluto, a sua segurança psíquica e emocional - como pretende eliminar totalmente dos presentes autos o elemento de prova em causa.
FF - Nestes termos, requer-se que a decisão de desentranhamento do expediente de fls. 809 a 815 (comunicação feita pela Procuradora Adjunta Cr..., em 13 de Outubro de 2016, dirigida à Exm.° Senhora Procuradora Ma...) seja revogada, devendo tal documento ser considerado como um meio de prova essencial à descoberta da verdade material e, consequentemente, essencial para determinar o regime de exercício das responsabilidades parentais que de melhor forma salvaguarda e assegura a realização do superior interesse do Ra..., em conformidade com o disposto no artigo 3.° da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990.
GG - Entender de forma contrária e permitir que o Tribunal a quo continue a proferir nos presentes autos decisões em que, sem qualquer prova ou fundamento, protege o progenitor e os interesses pessoais deste, em detrimento da defesa do superior interesse do menor Ra..., eliminando todas as provas de que o referido progenitor coloca efectivamente o Ra... em perigo - o que apenas se considera a mero benefício de raciocínio, sem conceder - será não apenas violador da Lei, como dos mais basilares princípios constitucionais e, ainda, de todos os princípios de defesa dos direitos das Crianças constantes da Convenção dos Direitos da Criança adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, bem como dos direitos previstos na Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças, ratificada por Portugal pelo Decreto do Presidente da República n.° 3/2014 de 27 de Janeiro.
HH - No despacho recorrido, a Mm.a Juíza do Tribunal a quo, em resposta ao requerimento apresentado pela recorrente, em 18.05.2017, solicitando a suspensão do regime provisório actualmente em vigor, mais uma vez, sem qualquer outra diligência probatória e sem sequer averiguar o actual estado do Ra..., manteve a sua decisão de manter a guarda partilhada.
II - Salvo melhor opinião, a Mm.a Juíza do Tribunal a quo ao decidir como decidiu no despacho de que ora se recorre teve - contrariamente ao exigido por lei, designadamente pelo artigo 3.° da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990 - em conta não o superior interesse do Ra... mas o superior interesse do recorrido.
(...)
KK - Atendendo à gravidade dos factos relatados pelo Ra... que culminaram no despacho de acusação, mas sobretudo tendo presente a leviandade com que o recorrido tem vindo a encarar as acusações proferidas pelo menor contra o seu meio irmão Da..., toma-se por demais evidente que a manutenção de um regime de guarda que permita que uma criança de seis anos esteja constantemente a ser pressionada pelo seu pai, para alterar os depoimentos por si prestados no âmbito do processo-crime movido contra o seu meio-irmão é completamente contrário àquele que é o seu superior interesse.
(...)
00 - Atendendo ao exposto, é por demais evidente que o caso sub judice estamos perante factos extremamente graves que plenamente justificam a suspensão do regime de guarda partilhada, com semanas alternadas, pelo menos até que existam dados mais concretos que permitam ao julgador concluir pela ausência ou séria redução do perigo para a criança.
( ...)
QQ - Relembre-se também que em causa está a segurança e bem-estar físico e psíquico de uma criança de seis anos, não devendo o Tribunal bastar-se, atendendo à gravidade da situação, com a mera palavra de um pai que abertamente declara que os alegados abusos sofridos pelo próprio filho, nada mais são do que invenções da recorrente e que, conforme comprovado pela Digníssima Procuradora Cr..., não tem qualquer problema em pressionar o filho a desmentir tais factos.
RR - Óbviamente que também é no superior interesse da criança conviver com o seu pai, razão pela qual propôs a recorrente, no requerimento que apresentou no passado dia 18.05.2017, que fosse estabelecido um regime que permitisse o convívio regular entre o Ra... e o recorrido, mas que não implicasse a pernoita da criança em casa do pai, principalmente por longos períodos de tempo.
SS - Releva também ter em linha de conta que a casa do recorrido é o local onde terão ocorrido os abusos, pelo que obrigar o Ra... a frequentar tal espaço poderá ter no menor o efeito de estar constantemente a reviver toda a situação, o que, como é evidente, é absolutamente nefasto para o equilíbrio psíquico da criança.
TT - Por último, reitere-se que o Tribunal a quo continua a tomar decisões como a decisão ora sob recurso sem nunca mais ter promovido qualquer diligência com vista a apurar o actual estado psicológico e emocional do Ra... e sem sequer ter requerido qualquer diligência de audição do mesmo. Ou seja, o Tribunal a quo - mesmo perante provas indiscutíveis em contrário - continua a, sem qualquer prova concreta ou fundamentação minimamente consistente, subscrever o entendimento de que o recorrido é um pai competente que assegura um ambiente protector e estável ao filho.
UU - Importa não esquecer que o critério do superior interesse da criança obriga a que contrariamente ao que acontece no processo penal onde vigora o princípio in dúbio pro reo, no âmbito dos processos tutelares cíveis se decida, sobretudo quando em causa estão situações que podem implicar um risco para a criança, de acordo com a máxima in dúbio pro criança.
VV - De facto, estando em causa uma criança, sobretudo de tão tenra idade, é essencial, em primeira linha, garantir que a mesma se encontra em segurança, devendo os contactos entre os progenitores realizar-se em ambientes absolutamente seguros e harmoniosos, o que não se verifica no presente caso, uma vez que o recorrido não se coíbe de estar constantemente a proferir comentários depreciativos relativamente à recorrente, inclusivamente na presença do Ra....
WW - Nestes termos e atendendo ao exposto, é essencial garantir que a decisão proferida pela Mm.a Juíza no despacho de que ora se recorre seja substituída por outra, que assegure devidamente o superior interesse do Ra..., em conformidade com o que é exigido pelo n.° 1 do artigo 3.° da Convenção sobre os Direitos da Criança, ou seja, que seja substituído o regime provisório de guarda partilhada actualmente em vigor, por outro, que atribua a aguarda do menor à mãe, devendo ser fixado um regime que permita o convívio regular entre o Ra... e o recorrido mas que não implique a pernoita da criança em casa do pai, principalmente por longos períodos de tempo.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo tanto no que concerne ao (injustificado e ilegal) desentranhamento dos autos da comunicação da Digníssima Procuradora Cr..., como no que concerne a decisão proferida nesse mesmo despacho de 23 de Junho de 2017, no sentido da manutenção do regime provisório actualmente em vigor.
Não consta dos presentes autos de recurso em separado que tenha sido apresentado contra alegações.
Colhidos os vistos legais das Exm.as Juízes Desembargadoras Adjuntas cumpre agora apreciar e decidir ao que nada obsta.
II -
Fundamentação de facto
A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso é a que resulta do precedente relatório cujo teor aqui se dá por reproduzido e para todos os efeitos legais. Mais constando dos autos a seguinte factualidade:
- Da..., filho de An... e de Carla do Céu Ramos Coelho, nascido em 27 de Setembro de 1995;
- Ra..., filho de An... e de Ar..., nascido em 03 de Janeiro de 2011;
- Entre Agosto de 2015 e 12 de Fevereiro de 2016, o ofendido/Ra... costumava frequentar, em semanas e fins-de-semana alternados, a casa do seu pai, An..., sita na R…,…, …, M…, Cascais, onde também residia o arguido, Da... - despacho de acusação, fls. 75;
- Em datas não concretamente apuradas, mas localizadas naquele período temporal, o arguido quando se encontrava sozinho em casa com o ofendido, por diversas vezes, chamava o ofendido para o seu quarto - fls. 75, idem;
- E, nessas alturas, em pelo menos duas ocasiões, em horas não concretamente apuradas, o arguido deitado na sua cama, puxou para junto de si o ofendido e, após baixar as cuecas, obrigou o ofendido a introduzir o seu pénis erecto na boca - fls. 76, idem;
- Após o que, o arguido friccionou repetidamente o seu pénis na boca do ofendido até ejacular - fls. 76, idem;
- O arguido sabia que o seu irmão Ra... era menor e que tinha a idade de 5 (cinco) anos e agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de praticar os aludidos actos sexuais com um menor de 14 (catorze) anos de idade, para satisfazer a sua libido através do corpo do menor, abusando da sua inexperiência, bem sabendo ainda que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual - fls.
76, idem;
- O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal - fls. 76, idem.
Fundamentação de direito
À luz das conclusões da alegação da apelante - delimitadoras do objecto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, atentas as regras plasmadas nos arts. 608.° n.° 2 in fine, 635.° n.° 4 e 639.° n.° 1 todos do CPC - as questões colocadas ao Tribunal ad quem prende-se com a admissibilidade da junção de documento e com a fixação do regime provisório de guarda e de visitas em relação ao menor Ra....

Primeira questão
A apelante não se conforma com o despacho que determinou o desentranhamento de fls. 809 a 815 por no entender do Mm.° Juiz a quo:
Não consubstanciar documento válido que possa ser atendido pelo Tribunal e pelas partes e pelos fundamentos que se seguem:
O expediente em questão foi directamente dirigido à Senhora Procuradora da Republica Ma... e consiste numa exposição escrita feita pela Senhora Procuradora Adjunta Cr.... Considerando que mais não é do que um testemunho sem qualquer enquadramento legal e que, em nosso entender, viola os deveres funcionais e éticos decorrentes das funções que a Senhora Procuradora Adjunta exerce, determina-se o seu desentranhamento destes autos e determina-se se devolva, mediante oficio dirigido ao respectivo Coordenador para os fins tidos por conveniente.
(...)
O escrito em causa reporta-se a um episódio ocorrido em 11.10.2016, descrito e relatado pela Magistrada do Ministério Púbico, Cr..., na comunicação que dirigiu à Exm.a Procuradora junto do Tribunal de Família e Menores de Cascais, Ma..., onde refere, entre outros factos, que «Foi para mim evidente que o menor procurou na minha pessoa um interlocutor que sensibilizasse o pai, para que este acreditasse nele e que o mesmo está infeliz com a postura por este assumida, fazendo-o vir desmentir o que tinha dito, bem como que o mesmo se sente mais feliz e seguro com a mãe, uma vez que a primeira coisa que ele disse quando entrou no meu gabinete foi tenho saudades da minha mãe, o que agora penso ter sido um pedido de ajuda, que me sinto obrigada a transmitir não só em face das minhas funções, mas também em face da confiança que sinto que foi depositada em mim por esta criança bem como (...) postura do progenitor comum de ambos, ponderando-se não só das eventuais consequências gravosas na formação e lesões psicológicas nesta criança, que senti em profundo sofrimento quando saiu do meu gabinete, e dos riscos para a conservação e veracidade da prova no âmbito do processo-crime, que não se mostra possível de assegurar com medidas de coação sobre o arguido».
Salvo melhor entendimento, não nos parece que se tenha ajuizado correctamente.
Vejamos
O escrito contendo as referidas declarações da Exm.a Procuradora não só não é ilícito uma vez que não resulta da prática de um acto ilícito (furto, gravação ilegal, violação de correspondência, etc.), como também não vemos que haja algum obstáculo à sua incorporação no processo, tanto mais que tudo indica ter sido junto aos autos com base no dever geral de colaboração na descoberta da verdade que impende sobre as partes e terceiros e de modo muito especial sobre o M.° P.°, conforme se alcança do art. 72.° n.° 3 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, segundo o qual compete ao Ministério Público representar as crianças e jovens em perigo, propondo acções, requerendo providências tutelares cíveis e usando de quaisquer meios judiciais necessários à promoção e defesa dos seus direitos e à sua protecção.
Também não nos parece que se trate de escrito irrelevante e/ou desnecessário, pois que tem relação com o objecto da causa.
A tudo acresce o princípio da livre apreciação das provas a ter lugar em sede julgamento, no qual, se for caso disso, se procederá ao aproveitamento ou utilização/valoração das provas, incluindo o escrito em causa - interpretando a matéria de facto expressa na referida declaração escrita, articulada com outros meios de prova, documentos e/ou testemunhas - para efeitos da decisão definitiva.
Aqui chegados, procedem pois as conclusões recursivas relacionadas com o pedido de revogação do despacho que ordenara o desentranhamento do escrito em causa.

Segunda questão
Em termos abstractos, o poder paternal é hoje pacificamente encarado como um conjunto de poderes-deveres dos pais que na sua globalidade permitem qualificá-lo como uma função, um verdadeiro ofício.
Como refere o Prof. Castro Mendes, em Direito de Família, Lições do Curso Jurídico de 1978-1979, F.D.L., pág. 274 «(...) O poder paternal não é um direito subjectivo; é uma situação jurídica complexa, em que avultam poderes funcionais, mas ao lado de puros e simples deveres. Por conseguinte, o poder paternal não é um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e de exercício livre, mas de faculdades de conteúdo altruísta, que devem ser exercidas primariamente no interesse do menor (e não dos pais), e de exercício vinculado ou funcional (...)».
Esse conjunto de poderes-deveres, o exercício dessa função deve ser colocado ao serviço dos interesses do menor. De tal modo que, quando chamado a intervir, o Tribunal tem de orientar a sua decisão numa perspectiva plena do interesse do menor.
A intervenção do tribunal deve atender prioritáriamente aos interesses e direitos do menor, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade de interesses no caso concreto.
Dito de outro modo, havendo necessidade de regular o seu exercício sempre a lei obriga a atender prioritáriamente ao interesse do menor com vista ao seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral e não aos interesses particulares/egoístas dos pais.
Neste sentido, dispõe o art. 36.° n.° 5 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
A este propósito escreveram os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, pág. 108, que (...) O direito dos pais à educação dos filhos não é uma simples garantia institucional ou uma simples norma programática. O dever de educação dos filhos, além de um dever ético-social, é um dever jurídico, nos termos estabelecidos na lei civil (arts. 1877.° e segs.) (...).
Assim, explicita o citado art. 1878.° n.° 1 do C.Civil que compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.
Sendo que a Constituição da República Portuguesa consagra, expressamente, a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges quanto à manutenção e educação dos filhos - art. 36.° n.° 3 da nossa Lei Fundamental.
Tal princípio foi concretizado no Código Civil, conforme se alcança do art. 1901.° n.° 1, nos termos do qual, na constância do matrimónio, o exercício das responsabilidades parentais pertence a ambos os pais. Acrescentando o n.° 2 do mesmo preceito legal que os pais exercem as responsabilidades parentais de comum acordo e, se este faltar em questões de particular importância, qualquer deles pode recorrer ao tribunal, que tentará a conciliação; se esta não for possível - dispõe o n.° 3 do mesmo preceito legal - o tribunal ouvirá o filho, antes de decidir, salvo quando circunstâncias ponderosas o desaconselhem.
Sendo que, nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, os interesses dos menores mostram-se acautelados por força das disposições previstas nos arts. 1905.° e 1906.° ambas do Cód. Civil.
Preceituando o citado art. 1906.° n.° 1 que as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
Optando claramente o nosso legislador pela postura consensual do exercício conjunto do poder paternal nos casos de divórcio ou separação de facto dos cônjuges.
Ou seja, pretende a lei que haja, sempre que possível, um entendimento entre os progenitores, de forma a que o poder paternal seja exercido em comum por ambos, em condições idênticas às que vigoravam para o efeito na constância do matrimónio.
Por conseguinte, o ideal será que os cônjuges separados/divorciados tenham a capacidade de encontrar plataformas de entendimento que lhes permitam, superando as suas divergências, decidir em comum as questões referentes ao poder paternal dos seus filhos menores.
Sendo certo que a separação dos progenitores não implica o afastamento da criança de qualquer deles, antes impondo o esforço de manutenção dos seus laços afectivos com ambos, equidistante dos problemas e conflitos que estiveram na origem da separação dos progenitores.
No caso em apreço, o pedido de alteração do regime provisório de regulação das responsabilidades parentais, na vertente guarda partilhada, assenta não numa situação standard de incumprimento das responsabilidades parentais, mas sim no facto do Da..., meio-irmão do menor Ra..., se encontrar acusado pelo M.° P.° da prática, como autor material, de um crime de abuso sexual de criança agravado p. e p. pelos arts. 171.° n.°s 1 e 2 e 177.° n.° 1 al. a) , ambos do Cód. Penal, na pessoa do menor Ra....
Não obstante constar da promoção do M.° P.° que ... o progenitor apresenta-se como um pai competente que assegura um ambiente protector e estável ao filho, existindo relação de vinculação entre
criança e o pai... e inclusive, no processo penal vigorar o princípio in dubio pro reo, ainda assim afigura-se-nos, salvo melhor entendimento, prudente suspender a guarda partilhada, assim acolhendo a pretensão da progenitora/apelante no sentido de o regime provisório de guarda partilhada actualmente em vigor ser substituído pela guarda do menor provisóriamente atribuída em exclusivo à progenitora, a par de um regime de visitas que permita ao menor Ra... continuar a conviver com o pai.
Como salientou a apelante ... De acordo com Maria Clara Sottomayor (em Regulação do Exercício do Poder Paternal nos casos de Divórcio, 4.a Edição, Almedina, Janeiro de 2008, págs. 91 e segs.) a medida de suspensão ou modificação do direito de visita pode e deve ser aplicada quando a gravidade dos factos e o terror de que a situação seja irreversível o aconselhem, devendo, naturalmente, a mesma lógica ser aplicada quando em causa está, não o direito de visita, mas um regime de guarda com semanas alternadas entre os progenitores... - conclusão recursiva NN.
Sendo certo que o direito da criança, filha de pais separados/divorciados, impõe a manutenção regular de relações pessoais e contactos diversos com ambos, salvo se tal se mostrar contrário aos seus superiores interesses.
No caso sub judice, os autos nada revelam em desabono do pai do Ra..., contudo o local onde terão ocorrido os alegados abusos é a residência do progenitor, pelo que, como refere a apelante, obrigar o Ra... a frequentar tal espaço poderá ter no menor o efeito de estar constantemente a reviver toda a situação, o que, como é evidente, pode ser absolutamente nefasto para o equilíbrio psíquico da criança.
Afigura-se-nos, pois, desadequado, nesta fase processual, ainda por cima de composição provisória e de situação controvertida em que há necessidade de assegurar a efectividade da tutela jurisdicional, manter a guarda e residência partilhada/alternada face à ocorrência alegadamente vivenciada pelo menor Ra... motivada pela conduta do seu meio-irmão Da... e ao conflito entre os progenitores e ainda ao facto do Ra... ser uma criança actualmente apenas com sete anos de idade.
Pelo que, a nosso ver, se imponha acautelar o menor Ra... de eventuais pressões do progenitor relacionadas com os factos de que vem acusado o seu meio irmão Da..., bem como evitar prolongada estadia na casa do progenitor por forma a minimizar os possíveis encontros entre os irmãos.
Assim, enquanto perdurar a pendência dos autos crime e até ao seu desfecho final, pensamos que os superiores interesses do Ra... - físico, intelectual, moral e social - ficarão mais acautelados com vista a não comprometer o seu normal e saudável crescimento colocando o menor a residir com a mãe, atribuindo-se-lhe a guarda exclusiva, embora assistindo ao pai o direito a ter consigo o filho Ra..., todos os sábados ou domingos - de acordo com a disponibilidade do progenitor - entre as 10h00 e as 20h00, para além de poder desfrutar da sua companhia, dentro daquele horário, no dia de aniversário do pai, dia do pai (sem prejuízo das suas actividades escolares), bem como alternadamente almoçar ou jantar nos dias feriados, devendo para tanto, em qualquer dos casos, o progenitor ir buscá-lo e levá-lo a casa da progenitora.
Por tudo quanto se deixou dito, o recurso merece proceder, impondo-se consequentemente alteração dos despachos sob censura.
IV - Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam-se os despachos recorridos e em sua substituição determina-se:
- Que se admita a junção aos autos do escrito cujo desentranhamento tinha sido ordenado pelo Tribunal recorrido;
- O seguinte regime provisório: - o menor Ra... passará a residir com a mãe/ Ar... atribuindo-se-lhe a guarda exclusiva, embora assistindo ao pai/ An... o direito a ter consigo o filho Ra..., todos os sábados ou domingos - de acordo com a disponibilidade do progenitor - entre as 10h00 e as 20h00, para além de poder desfrutar da sua companhia, dentro daquele horário, no dia de aniversário do pai, dia do pai (sem prejuízo das suas actividades escolares), bem como nos dias feriados, almoçar ou jantar, ora com o pai ora com a mãe, alternadamente, devendo para tanto, em qualquer dos casos, o progenitor ir buscá-lo e levá-lo a casa da progenitora.
Custas a cargo do apelado.
Lisboa, 07 de junho de 2018
Gilberto Martinho dos Santos Jorge
Maria Teresa Batalha Pires Soares
Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia