Incumbe ao sócio-gerente, que invoca ter feito pagamentos de dívidas da sociedade, exibir o comprovativo documental de que realizou transferências a favor dos fornecedores, ou que se registaram fluxos financeiros da sua conta bancária pessoal em benefício da empresa.
II) Provando-se que a representante legal, nos dois anos anteriores à apresentação à insolvência, vendeu o património da sociedade sem qualquer contrapartida para esta, de valor suficiente para liquidar os créditos reclamados, esta conduta é subsumível ao disposto no art. 186° n° 2 alínea d) do CIRE.
Proc. 2436/17.9T8BRR-B.L1 6ª Secção
Desembargadores: Ana Paula Carvalho - Gabriela Marques - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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SUMÁRIO ELABORADO PELO RELATOR
- Incumbe ao sócio-gerente, que invoca ter feito pagamentos de dívidas da sociedade, exibir o comprovativo documental de que realizou transferências a favor dos fornecedores, ou que se registaram fluxos financeiros da sua conta bancária pessoal em benefício da empresa.
II - Provando-se que a representante legal, nos dois anos anteriores à apresentação à insolvência, vendeu o património da sociedade sem qualquer contrapartida para esta, de valor suficiente para liquidar os créditos reclamados, esta conduta é subsumível ao disposto no art. 186° n° 2 alínea d) do CIRE.
Processo Nº 2436/17.9T8BRR-B.L1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Barreiro - Juízo Comércio - Juiz …, Incidente qualificação insolvência (CIRE), apelação
Recorrente: MAR...
Recorrido: Ministério Público
Relatora: Ana Paula Albarran Carvalho
Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
PER..., Lda, pessoa coletiva número 5..., com sede no Montijo …, Loja …, Estrada nacional 5, … Montijo, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número, foi declarada insolvente por sentença de 11 de Julho de 2017, transitada em julgado.
O Administrador da Insolvência veio propor a qualificação da insolvência como culposa, indicando como proposto afetado pela qualificação a gerente MAR... e indicando o preenchimento do disposto no art. 186° n°2, als. a), b), d, e), f) e h) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Alega, em síntese, que os veículos pertencentes à sociedade foram vendidos à gerente sem qualquer contrapartida e que esta se apresentou à insolvência quando já não tinha quaisquer bens para liquidar. Mais alega que a sociedade apresentou sempre resultados negativos, pelo menos desde o final do ano 2015, tendo a sócia gerente reconhecido em ata que estava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas pelo que deveria ter requerido a insolvência mais cedo e não dois anos depois, em 30 de junho de 2017.
O Ministério Público propôs igualmente a qualificação da insolvência como culposa, concordando com o parecer do Sr. Administrador da Insolvência, sustentando que, dos elementos carreados para os autos, resulta que MAR..., enquanto única gerente da insolvente, fez sua a quantia resultante da alienação do veiculo de marca Renault …, matrícula …, sem que tenha ocorrido qualquer pagamento à empresa, realizou negócios consigo mesmo em prejuízo da sociedade, que se mostram ruinosos para o regular desenvolvimento da sua actividade e, sobretudo, lesivos das garantias gerais dos credores da empresa e, não obstante conhecer da situação de insolvência, pelo menos desde o dia 3 de Outubro de 2015, continuou com a actividade da empresa, alienou em seu favor pessoal diverso património, e apenas requereu a declaração- de insolvência no dia- 30 de Junho de 2017, quando a empresa já não possuía qualquer património. Conclui que estão verificadas as circunstãncias previstas nas alíneas a), b), d), f) e g) do n.° 2 do art. 186° do CIRE e a alínea do n2 3 a) da mesma disposição legal.
MAR... veio deduzir oposição, pedindo a qualificação da insolvência como fortuita, e alegando, em síntese, que na assembleia de 03 de outubro de 2015 foi decidido proceder à venda de quatro veículos, sendo os valores obtidos com a venda pertencentes à sócia gerente, porque esta a titulo pessoal tinha efectuado o pagamento da despesas da empresa. Estes valores e a devolução de grande parte dos materiais adquiridos foi uma tentativa de liquidar algumas dívidas. O veículo BMW matrícula … foi adquirido pela sócia e pago integralmente por esta e devidamente facturado. O veículo de matrícula … da marca Opel foi igualmente adquirido pela sócia em 05 de julho de 2014 tendo sido liquidado por esta. O veículo de matricula … da marca Opel … foi recebido pela empresa para pagamento de uma dívida para com a insolvente, tendo posteriormente sido vendido para a sucata. O veículo de matrícula … da marca Renault … foi vendido pela insolvente a 06 de fevereiro de 2017, pelo valor de €3.000,00 à SOF... S.A., tendo o valor obtido entrado nas contas da sociedade. A transmissão da sociedade para a SOF... S.A não chegou a efetivar-se porque entretanto incidiu sobre esta uma penhora. A sócia utilizou o produto da venda do ativo para pagamento de dívidas, designadamente, do IVA gerado com a devolução de material.
Foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e seleccionados os temas da prova, que não sofreram qualquer reclamação.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com inteiro respeito pelo legal formalismo e foi elaborada a sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 1869, n° 1 e 2, alíneas d) e h) e 189° Os 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, qualifico como culposa a insolvência de PER..., Lda, pessoa coletiva número 5..., com sede no Montijo …, Loja …, Estrada nacional 5, … Montijo, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número e, em consequência:
a).Declaro afetada pela qualificação a sua gerente MAR...;
b). Declaro MAR... inibida, pelo período de dois anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c). Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por MAR....
d). Condeno MAR... a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos nos autos, até às forças do respetivo património, sendo o valor da indemnização o devido, de acordo com os créditos reclamados.
Custas do incidente pela afetada pela qualificação - art. 303º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Registe e notifique.
Remeta certidão à Conservatória do Registo Civil competente, nos termos e para os efeitos previstos no art. 189º n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.»
Não se conformando, a requerida afetada pela qualificação, enquanto gerente da sociedade insolvente, interpôs recurso de apelação, pedindo a revogação da decisão, com a sua correspondente absolvição.
A apelante formula as seguintes conclusões das alegações de recurso:
«A. Proferida sentença de insolvência, veio o Administrador de Insolvência requerer o Incidente de qualificação culposa, propondo como afectada a Sócia Gerente da PER... Lda.
B. Alega a verificação de todas as alíneas do n.° 2 do artigo 186.º do CIRE.
C. Quando citada, a Sócia Gerente apresenta a sua Oposição, alegando que o Administrador de Insolvência procedeu à elaboração do Parecer que determinou a abertura do presente incidente de qualificação com base em elementos contabilísticos genéricos, tendo apenas solicitado toda a documentação contabilística da Insolvente em momento muito posterior à elaboração de tal peça processual, e estando em crer, que este não a consultou de todo.
D. Alega igualmente que procedeu à venda dos veículos e do imobilizado para fazer face às dívidas da Insolvente, grande parte liquidada aquando da constatação da sua incapacidade para continuar a laborar.
E. Não consegue fazer prova dos factos por si elencados, uma vez que não possui cópia da documentação entregue ao Administrador de Insolvência.
F. Em sede de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, tendo conhecimento de tal facto, não solicita, oficiosamente, a consulta dos 80 (oitenta) dossiers da contabilidade, fundando todas as suas convicções no testemunho do Administrador de Insolvência e nos documentos contabilísticos genéricos apresentados pelo mesmo.
G. Verifica-se uma desconsideração dos restantes testemunhos, mais precisamente da última T.O.C. da Insolvente, cujas declarações contradizem as ilações do Administrador de Insolvência.
H. Em sede da Douta Sentença, são dados como provados factos que poderão ser desmentidos por prova documental essencial, constante dos dossiers mencionados.
I. Os comprovativos da aplicação do valor proveniente da venda dos três veículos, na liquidação de dívidas da Insolventes encontram-se arquivados nesse espólio documental da Empresa.
J. De todas as situações imputadas à Sócia Gerente da PER…, Lda., ao abrigo do n.º2 do artigo 186.º do CIRE, o Tribunal apenas lhe subsume o pressuposto constante da alínea d), e mesmo assim, admite ter dúvidas se a Exma. Sra. MAR... não terá efectivamente disposto da totalidade, ou de parte de tais valores em prol da Empresa.
K. Pois, não se verificou efectivo aproveitamento dessas quantias, por parte da Sócia Gerente.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO E SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V.EX.AS. DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO ANULANDO-SE A SENTENÇA DO TRIBUNAL A QUO”: ABSOLVENDO-SE A RECORRENTE, EM CONFORMIDADE COM O EXPOSTO, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!»
Foram apresentadas contra-alegações pelo Ministério Público, pugnando pela manutenção da sentença proferida.
Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.
Questões a decidir:
O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635° nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).
Importa apreciar as seguintes questões:
a). Se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto considerada provada nos pontos 12°, 13°, 21° e 22° e de toda a factualidade não provada pelos motivos invocados?
b). Se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao qualificar como culposa a insolvência da sociedade, declarando afectada pela qualificação a apelante, nos termos do artigo 186° n° 1 e n° 2, alínea d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas?
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade provada e não provada consignada na sentença recorrida é a seguinte:
1 - PER..., Lda. foi declarada insolvente por sentença de 11 de Julho de 2017, transitada em julgado.
2 - Tem por objeto social o comércio de viaturas automóveis e suas peças, montagem, equipamentos para viaturas, reparação e manutenção de viaturas e mecânica em geral, tendo sido constituída em 14 de Fevereiro de 2013.
3 - A insolvente encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número 5..., constando, desde novembro de 2015, como única sócia e gerente MAR....
4 - A declaração de insolvência foi requerida pela sociedade em 29 de junho de 2017.
5- O Administrador de Insolvência não procedeu a apreensão de quaisquer bens, tendo informado no relatório apresentado nos autos que a devedora procedeu, em 2016 e 2017, à venda dos veículos com as matrículas …, …, …, … e dos bens e equipamento pertencentes à insolvente, propondo a liquidação do património após a resolução dos negócios jurídicos subjacentes.
6 - Foram reconhecidos créditos sobre a insolvência no valor total de €152.395,27, tendo, no entanto, sido reclamados apenas créditos no valor total de €8 980,04, os demais créditos reportam-se a um crédito reconhecido a MAR... no valor de €77.644,90 por suprimentos da sócia, e de um crédito reconhecido a FRA... no valor de €58 790,00 por rendas em atraso não reclamado - cfr. sentença de reclamação de créditos constante do apenso A dos autos.
7 - A propriedade do veículo da marca BMW, de matrícula … encontrava-se inscrita desde 15-10-2014 a favor da insolvente PER…, Lda. - cfr. resultado da consulta da base de dados do registo automóvel de fls. 87 a 90.
8 - Em 05 de Setembro de 2016, a sociedade PER..., Lda. declarou vender a ANC..., o veículo de marca BMW …, matrícula …, pelo preço de €12.500,00, o que aquele declarou aceitar.
9 - Para pagamento do preço acordado, em 06.09.2016, ACM..., companheira de ANC..., transferiu para a conta bancária de MAR..., a quantia de €12.500,00, quantia que esta fez sua. - cfr. documento bancário fls. 9 vs do apenso C dos autos.
10 - A transmissão da propriedade do referido veículo para ANC... foi inscrita na respetiva conservatória em 05.09.2016.
11 - A propriedade do veículo da marca Renault …, de matrícula … encontrava-se inscrita desde 08.10.2013 a favor da insolvente PER…, Lda - cfr. resultado da consulta da base de dados do -registo automóvel de fls. 91 a-93------
12 - Em data não apurada anterior a março de 2017, a sociedade PER..., Lda. declarou vender a MAR... o veículo de marca Renault …, de matrícula …, o que aquela declarou aceitar.
13 - Em consequência, a propriedade do veículo da marca Renault …, de matrícula …, foi inscrita a favor de MAR... em 28.03.2017 - cfr. informação da conservatória de fls. 8.
14 - A propriedade do veículo da marca Opel …, de matrícula …, encontrava-se inscrita desde 11-09-2014 a favor da insolvente PER…, Lda - cfr. resultado da consulta da base de dados do registo automóvel de fls.94.
15 - Em Março de 2016, a sociedade PER..., Lda. declarou vender a ARL... o veículo de marca Opel …, de matrícula …, pelo preço de €11.500,00, o que aquele declarou aceitar.
16 - Para pagamento do preço acordado, em 04.03.2016, ARL... transferiu para a conta bancária de MAR... a quantia de €10.500,00, quantia que esta fez sua. - cfr. documento bancário fls. 6 e 7 do apenso D dos autos.
17- A transmissão da propriedade do referido veículo para ARL... foi inscrita na respetiva conservatória em 10.03.2016.
18 - No dia 27 de Dezembro de 2016, a insolvente emitiu a factura n.° 1374, onde declarou a venda do veículo de marca BMW, matrícula … a MAR…, pelo valor de € 6.000,00 - cfr. fls. 6vs.
19 - No dia 27 de Dezembro de 2016, a insolvente emitiu a factura n.° 1375, onde declarou a venda do veículo de marca Opel …, matrícula … a MAR…, pelo valor de € 2.460,00 - cfr. fls. 7.
20 - No dia 6 de Fevereiro de 2017, a insolvente emitiu a factura n.° 33, onde declarou a venda do veículo de marca Renault …, matrícula … a sociedade SOF..., SA, pelo valor de € 3.690,00 - cfr. fls. 7vº.
21 - À data da declaração de insolvência, a sociedade PER…, Lda não possuía qualquer património.
22 - Desde a sua constituição até à apresentação à insolvência a sociedade apresentou sempre resultados negativos.
Com interesse para a decisão da causa não se provou:
- A PER..., Lda. declarou transmitir a propriedade dos veículos da marca BMW, matrícula … e Opel …, de matrícula … para MAR..., nas datas descritas em 19. e 20. dos factos assentes.
- O valor recebido por MAR... como contrapartida das vendas mencionadas em 9. e 16. dos factos assentes destinou-se ao pagamento de dividas a terceiros da insolvente PER..., Lda.
- O veículo de matrícula … da marca Opel … foi recebido pela empresa para pagamento de uma divida para com a insolvente, tendo posteriormente sido vendido para a sucata.
- O veículo de matrícula … da marca Renault … foi vendido pela insolvente a 06 de fevereiro de 2017, pelo valor de €3.000,00 à SOF... S.A, tendo o valor obtido entrado nas contas da sociedade.
FUNDAMENTACÃO DE DIREITO
a). Se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto considerada provada nos pontos 12º, 13º, 21º e 22º e de toda a factualidade não provada pelos motivos invocados?
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o principio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414° do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof Doutor José Lebre de Freitas, Vol. 1.
Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de anormal se passou na formação dessa apontada convicção, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
A apelante insurge-se contra a factualidade provada nos pontos 12º e 13º, ou seja, a venda do veículo de marca Renault, modelo …, com a matrícula …, à Recorrente, tendo esta inscrito a propriedade do veículo a seu favor, por entender que «tal venda foi, na realidade, efectivada à Empresa SOF..., S.A., conforme extractos bancários juntos à contabilidade».
A fundamentação do tribunal recorrido, a este respeito, é a seguinte no essencial:
«Quando confrontada por não ter o preço dos veículos sido depositado na conta da insolvente, se se destinava a pagar dívidas desta, respondeu que não podia ser porque a conta bancária já estava penhorada numa execução instaurada pelo credor NOR..., Ldª, crédito que ainda se mantém em divida. Quanto à venda do veículo Renault … apesar de MAR… ter afirmado que o vendeu a um fornecedor SOF... S.A, pelo valor de €3.000,00, a verdade é que a propriedade deste foi inscrita a favor da própria MAR... não tendo sido junta qualquer prova da transmissão do veiculo para aquela empresa e/ou do pagamento do preço. Dos extractos bancários da insolvente consta uma transferência no valor de €2.292,38 a 20.01.2017, contudo, sem qualquer outro elemento de prova, não é possível apurar se este movimento teve qualquer relação com a venda do veículo como alega, até porque a insolvente também vendeu equipamento e outros bens a esta sociedade.»
Conciliando o teor das declarações de parte prestadas, com a documentação identificada, chega-se à mesma valoração que o tribunal recorrido fez, que se mostra lógica e coerente, bem como adequada às regras da experiência. Na verdade, incumbia à requerida fazer a demonstração de que o produto da venda dos veículos tinha ingressado nos cofres da sociedade, ou teria sido utilizado para fazer pagamentos aos credores desta, o que não foi feito. Tal como refere a testemunha SUR..., técnica oficial de contas a partir de 2014, e a instâncias do tribunal, «se assim fosse, teria de existir recibo, ou fatura-recibo na contabilidade; se o sócio faz o pagamento, tem de apresentar o comprovativo e informar que pagou através deste movimento».
Por outro lado, e fazendo apelo às contra-alegações, não merece acolhimento o argumento da recorrente de que o tribunal «não teve em conta a existência de cerca de 80 dossiers de contabilidade», quando durante o julgamento que decorreu em duas sessões, em dias distintos, não efectuou qualquer requerimento para que tal consulta fosse efectuada. E de igual modo «a circunstância de não possuir cópias da documentação entregue ao Sr. Administrador da Insolvência não é lesiva de qualquer direito que quisesse fazer valer, pois tal documentação sempre estava disponível à recorrente, que até o poderia fazer através de mero requerimento dirigido ao Tribunal, o que não sucedeu».
Também é objecto de impugnação o facto provado no ponto 21, por se defender que foi manifestado na petição inicial, e na oposição apresentada pela apelante, que «existiam à data da interposição do presente processo de insolvência, não só um saldo cativo (na conta da Insolvente junto do Millennium BCP), à ordem do Processo executivo n.º 2169/...6T8A.. que, por efeito do processo de Insolvente teria de ingressar no activo da massa insolvente, além de uma indemnização devida pela antiga TOC da Insolvente, cujo pagamento se encontrava a ser exigido judicialmente - 3812/...0T8…, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo de Execução de … - Juiz …-, e que reverteria, igualmente, para a massa insolvente».
Estão, assim, em causa créditos litigiosos, que dizem respeito a acções judiciais pendentes, e relativamente às quais a ora recorrente não produziu qualquer elemento probatório (prova documental) de que teriam obtido provimento. Não estão sequer incluídos no Relatório do Administrador da Insolvência, elaborado nos termos do artigo 155º do CIRE.
Por último, foi ainda considerado como facto provado no ponto 22 que a Insolvente teria apresentado, desde a sua constituição, resultados negativos. No entender da apelante «o Tribunal criou a sua convicção única e exclusivamente nas ilações proferidas pelo Administrador de Insolvência, subjacente (apenas!) nas IES fornecidas pela Insolvente, visto que, como já mencionado, o Dr. RAM... só quis ter acesso à contabilidade da Insolvente em momento muito posterior ao da elaboração do Relatório previsto no CIRE, mas igualmente muito curto para a leitura atenta dos 80 (oitenta) dossiers antes da prestação do seu testemunho em sede de audiência de discussão e julgamento». Além disso, essas ilações encontram-se «em clara contradição com as considerações proferidas pela TOC da Insolvente, a Exma. Sra. Dra. SUR..., que lidava diariamente com a vida económico financeira daquela, e estava em crer que à excepção do dois últimos anos, a Empresa conseguira manter-se estável, não apresentando lucro, mas também não apresentando prejuízo».
Da audição integral do depoimento desta testemunha, não resulta qualquer elemento que refute a apreciação feita pelo Administrador da Insolvência, e já constante do Relatório apresentado nos termos do artigo 155°. Na parte em que se analisa o Balanço (pág. 4), é referido que até «ao ano de 2015, o valor do ativo corrente da empresa, apresenta-se suficiente para fazer face ao passivo corrente, invertendo-se tal situação nos anos de 2016 e 2017;». E, na pág. 3 (alínea g) é esclarecido que «a empresa, logo no final do ano da sua constituição, 2013, passou a apresentar Capitais Próprios negativos, os quais se foram agravando nos exercícios seguintes».
De outra banda, nas alegações de recurso é objecto de impugnação a factualidade considerada não provada com o fundamento de que o tribunal recorrido «consolidou a sua convicção somente nas declarações do Administrador de Insolvência, e escusando-se na afirmação de que a aqui Recorrente não fez prova desses pagamentos, quando era de seu conhecimento que isso seria uma prova diabólica, atendendo ao facto não ter acesso à documentação da contabilidade da Insolvente, que se encontrava na posse do Dr. RAM...», e quanto, «à documentação que o Tribunal menciona ter valorado na fixação da sua decisão, cumpre-nos salientar que tais documentos não passam de elementos contabilísticos genéricos, nada reflectindo sobre os movimentos económico-financeiros levados a cabo no dia-a-dia da Empresa».
Em sintonia com a apreciação já feita, a documentação contabilística estava ao dispor da apelante, que nunca requereu a respetiva consulta. Além disso, nas declarações prestadas, a própria MAR... admitiu grande parte dos factos, mostrando-se adequado reproduzir a fundamentação do tribunal recorrido:
«O Tribunal fundou a sua convicção em toda a documentação constante dos autos principais e apensos, designadamente certidão do registo comercial de fls.4 vs e 5; sentença proferida nos autos principais e relatório entregue pelo administrador de insolvência; sentença proferida no apenso de reclamação de créditos; informação da conservatória do registo automóvel relativamente as inscrições de propriedade dos veículos, as quais têm por subjacente o preenchimento e entrega das respectivas declarações de venda; elementos bancários comprovativos das transferências efetuadas para pagamento do preço para a conta de MAR... (factos que a própria admitiu); ata da assembleia da sociedade realizada em 03.10.2015, onde a sócia gerente MAR... deliberou a venda dos três veículos e que os valores obtidos com as mesmas seriam da propriedade da sócia para pagamento do valor da sua aquisição constante de fls. 5 vs e 6; facturas emitidas pela insolvente de fls. 6 vs a 7 vs com vista a justificar a venda dos veículos propriedade da sociedade. Elementos conjugados com as declarações da socia gerente MAR... a qual, no essencial em causa, confessou os factos, admitindo ter procedido à venda dos veículos e ao recebimento do preço, tentando justificar a sua conduta alegando que o preço da aquisição dos mesmos tinha sido pago com dinheiro pessoal e afirmando ter destinado, posteriormente, o produto da venda a pagamentos a fornecedores. Confrontada com elementos constantes dos apensos C e D, relativos à venda dos veículos da marca BMW, matrícula … e Opel …, de matrícula … confirmou a venda e os valores.
As declarações da parte foram ainda conciliadas com o depoimento da testemunha ANC... comprador do veículo BMW, matrícula …, o qual de modo isento e objetivo relatou como teve conhecimento da venda do veículo e como procedeu para a sua aquisição e pagamento.»
É, por consequência, manifesto que a fundamentação do tribunal recorrido se baseia em prova documental concreta e devidamente identificada, que não foi refutada pela recorrente, nem pelo testemunho da actual contabilista, que explicou qual o procedimento correto, «se o sócio faz o pagamento, tem de apresentar o comprovativo e informar que pagou através deste movimento». Ou seja, não basta elaborar uma ata em que a única sócia e gerente delibera e aprova em seu favor a venda dos veículos da empresa, com a pretensa justificação de que o preço da aquisição dos mesmos tinha sido pago com dinheiro pessoal e o produto da venda seria posteriormente destinado a pagamentos a fornecedores. Seria ainda necessário juntar a documentação comprovativa destes fluxos financeiros e de que foram realizadas transferências pecuniárias da sócia e gerente em proveito da sociedade. Aliás, nas declarações de parte, a requerida confirma que emitiu as faturas de fls. 6 verso a 7 verso, seguindo as instruções da contabilista, o que é perfeitamente natural. Mas não fez a prova que lhe incumbia de ter realizado os correspondentes pagamentos, ou de ter assegurado a satisfação de dívidas da empresa no valor correspondente.
Não há, por conseguinte, fundamento para alterar a decisão sobre a matéria de facto.
b). Se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao qualificar como culposa a insolvência da sociedade, declarando afectada pela qualificação a apelante, na qualidade de gerente, nos termos do artigo 186º nº 1 e nº 2, alínea d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas?
Nesta parte, a apelante sustenta o seguinte nas conclusões recursórias:
«J. De todas as situações imputadas à Sócia Gerente da PER…, Lda., ao abrigo do n.°2 do artigo 186.° do CIRE, o Tribunal apenas lhe subsume o pressuposto constante da alínea d), e mesmo assim, admite ter dúvidas se a Exma. Sra. MAR... não terá efectivamente disposto da totalidade, ou de parte de tais valores em prol da Empresa.
K. Pois, não se verificou efectivo aproveitamento dessas quantias, por parte da Sócia Gerente.»
A fundamentação do tribunal recorrido, no segmento relevante, é do seguinte teor:
«Com relevância para este efeito, apurou-se a realização de três vendas dos veículos automóveis pertencentes a sociedade insolvente e a transferência das quantias pagas a título de preço, quanto a dois dos veículos, na conta pessoal da sócia-gerente. É verdade que não se apurou e fica a dúvida se a sócia se apropriou da totalidade destas quantias ou se as destinou em parte a pagamentos por conta da sociedade. Contudo, ainda que, como alega, estas transferências para as contas pessoais se destinassem a pagar a fornecedores, a verdade é que o intuito de desviar estas quantias para que não fossem penhoradas pelos credores que já tivessem executado as dividas da sociedade, facto admitido pela própria, consiste também uma disposição dos valores em proveito de terceiros que certamente agrava a situação económica da sociedade. Como se provou, a representante legal entre 2016 e 2017 vendeu todo o património da sociedade e depois apresentou-se à insolvência. Da análise das reclamações de créditos apresentadas resulta que o valor de venda de apenas um dos veículos já era suficiente para liquidar estes créditos que, no total, ascendem a €8 980,04. Os créditos derivados dos suprimentos feitos pelos sócios não podem ser pagos antes dos demais credores. Deste modo, se a legal representante tivesse liquidado os créditos evitaria a situação de insolvência. Ao actuar desta forma foi esta diretamente responsável pela situação de impossibilidade da sociedade em liquidar os créditos vencidos.
Perante os factos provados temos que concluir que se mostra verificada a alínea d) uma vez que a celebração destas vendas sem dar entrada do correspectivo preço na conta da sociedade revelam o intuito de impedir a satisfação dos credores com a liquidação do património. Esta delapidação do património foi a causa da situação da insolvência e é imputável à socia gerente MAR... que sabia que ao atuar deste modo impedia os credores, designadamente o trabalhador DEM... e o credor NOR…, Lda que já tinha instaurado execução, a verem satisfeitos os seus créditos.
É, assim, manifesta a verificação da previsão da alínea d) do nº2 do art. 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sendo esta imputável tanto à requerida.»
A fundamentação jurídica da decisão recorrida não tem, claramente, o sentido que a apelante lhe imputa. Pelo contrário, é desmontado o argumento utilizado de que o produto obtido com as vendas dos veículos se destinava em parte a pagamentos por conta da sociedade, designadamente, a pagar a fornecedores, pois ainda que tal atuação correspondesse à realidade, a verdade é que a representante legal vendeu todo o património da sociedade e depois apresentou-se à insolvência, provando-se que o valor da venda de um dos veículos teria sido suficiente para liquidar os créditos reclamados pelos credores (com exceção dos créditos subordinados reclamados pela própria sócia e gerente), o que evitaria a situação de insolvência. Além disso, a recorrente não demonstrou, conforme lhe incumbia, que o preço recebido com a celebração das vendas tivesse dado entrada nos cofres da empresa ou tivesse sido inscrito nas receitas da sociedade e, por esta via, constatou-se que foram desviadas quantias pecuniárias em detrimento dos credores.
Nesta sequência, a solução jurídica preconizada na decisão recorrida de subsumir os factos provados ao disposto no artigo 186° n° 2 alínea d) do CIRE não merece qualquer censura ou reparo, em desabono das pretensões da apelante.
DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em manter a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.
Lisboa, 11.10.2018,
(Ana Paula Albarran Carvalho)
(Gabriela Fátima Marques)
(Adeodato Brotas)