Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Cível
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 - ACRL de 27-11-2018   Inversão do Onús da Prova. Dever médico. Dever de informação do Consentimento do lesado.
Sumário (elaborado pela relatora e da sua inteira responsabilidade)
1 - A inversão do ónus da prova, sendo uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material (art. 417°, n.° 1 do Código de Processo Civil), depende da verificação de dois pressupostos: que a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer; que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título de culpa, não bastando a mera negligência.
2 - Ainda que a recusa da contraparte torne culposamente a prova impossível ou particularmente difícil tal não significa que o facto controvertido se tenha por verdadeiro, mas apenas que passa a caber à parte recusante a prova da falta de realidade desse facto.
3 - O dever do médico de registar as observações clínicas efectuadas no paciente reduz os riscos de erro e as falhas de comunicação, mas não visa directamente facilitar a prova em casos de responsabilização por danos ocorridos, ainda que constitua uma vantagem para esse efeito.
4 - A não apresentação do processo clínico pelo médico terá as consequências previstas no artigo 430.° ex vi 417.°, n.° 2 do Código de Processo Civil, designadamente, a condenação em multa e a livre apreciação pelo Tribunal desta recusa, e ainda, havendo lugar a tal mecanismo, à inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.°, n.° 2 do Código Civil, caso essa falta de apresentação ou a sua inexistência, tenha tornado a prova culposamente impossível ao paciente ou a tenha tornado particularmente difícil.
5 - Não tendo tais registos sido solicitados ao próprio médico ou ao estabelecimento hospitalar onde as intervenções cirúrgicas/internamentos tiveram lugar, nem tendo o Tribunal diligenciado nesse sentido, não se pode afirmar a sua inexistência ou falta de apresentação, o que inviabiliza a inversão do ónus da prova.
6 - Entende-se hoje que a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual quando o paciente e o médico estão ligados por um contrato que se forma, se de outro modo não se provar, pela circunstância de este, ao ter o seu consultório aberto ao público, ser um proponente contratual, onde o doente se dirige, necessitando de cuidados médicos, e assim manifesta a sua aceitação a tal proposta.
7 - Ainda que se deva distinguir as intervenções ou actos médicos em que se exige um resultado certo, de outras em que a aleatoriedade das condições do paciente e interacção com outros factores impedem a garantia de um resultado, em termos genéricos, o médico apenas se compromete a proporcionar os cuidados conforme as leges artis e os seus conhecimentos pessoais, vinculando-se à prestação de assistência mediante cuidados ou tratamentos normalmente exigíveis, com o intuito de curar. Trata-se de uma obrigação de meios e não de resultado.
8 - Em tais circunstâncias, cabe ao paciente demonstrar que o médico cumpriu defeituosamente a sua prestação, não empregando todos os meios, não praticando todos os actos normalmente necessários para a prossecução da finalidade da sua actuação, ou seja, cabe-lhe a prova da desconformidade objectiva entre a conduta adoptada pelo médico e as leis da arte e da ciência médica; ao médico caberá demonstrar a inexistência de culpa, alegando e provando que, naquelas circunstâncias concretas, não podia ou não devia ter agido de outra forma.
9 - O paciente deve assumir a responsabilidade perante a intervenção, pelo que tem direito a uma informação suficiente, legível, clara, que lhe permita conhecer os riscos para a sua saúde, devendo ser-lhe transmitidos, pelo menos, os riscos relacionados com as suas circunstâncias pessoais ou profissionais e os prováveis em condições normais.
10 - O consentimento do lesado é causa de exclusão de ilicitude (cf. art. 340°, n.° 1 do Código Civil), sendo um dos requisitos da licitude da actividade médica (cf. art.° 5° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Biomedicina e art.° 3°, n.° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).
11 - O dever de informação recai sobre o médico e o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico, a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento (artigo 157° do Código Penal); se o consentimento não existe ou é ineficaz, a actuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada.
12 - Os bens jurídicos tutelados que justificam a exigência do dever de informação são o direito à integridade física e moral e o direito à liberdade, pelo que os danos ressarcíveis são não só os que resultam da violação da liberdade da vontade, mas também as dores, os incómodos e a lesão da incolumidade pessoal (cf. art. 70° do C. Civil).
13 - Enquanto facto impeditivo do direito da apelante competia ao réu/recorrido (médico), fazer a prova do consentimento informado.
Proc. 18450/16.9T8LSB.L1 7ª Secção
Desembargadores:  Micaela Sousa - Maria Amélia Ribeiro - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
_______
Processo n.° 18450/16.9T8LSB.L1 - Recurso de Apelação
Tribunal Recorrido - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Instância Central Cível
- Juiz 1
Recorrentes - J...
L...
Recorridos - L...
J...
Sumário (elaborado pela relatora e da sua inteira responsabilidade)
1 - A inversão do ónus da prova, sendo uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material (art. 417°, n.° 1 do Código de Processo Civil), depende da verificação de dois pressupostos: que a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer; que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título de culpa, não bastando a mera negligência.
2 - Ainda que a recusa da contraparte torne culposamente a prova impossível ou particularmente difícil tal não significa que o facto controvertido se tenha por verdadeiro, mas apenas que passa a caber à parte recusante a prova da falta de realidade desse facto.
3 - O dever do médico de registar as observações clínicas efectuadas no paciente reduz os riscos de erro e as falhas de comunicação, mas não visa directamente facilitar a prova em casos de responsabilização por danos ocorridos, ainda que constitua uma vantagem para esse efeito.
4 - A não apresentação do processo clínico pelo médico terá as consequências previstas no artigo 430.° ex vi 417.°, n.° 2 do Código de Processo Civil, designadamente, a condenação em multa e a livre apreciação pelo Tribunal desta recusa, e ainda, havendo lugar a tal mecanismo, à inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.°, n.° 2 do Código Civil, caso essa falta de apresentação ou a sua inexistência, tenha tornado a prova culposamente impossível ao paciente ou a tenha tornado particularmente difícil.
5 - Não tendo tais registos sido solicitados ao próprio médico ou ao estabelecimento hospitalar onde as intervenções cirúrgicas/internamentos tiveram lugar, nem tendo o Tribunal diligenciado nesse sentido, não se pode afirmar a sua inexistência ou falta de apresentação, o que inviabiliza a inversão do ónus da prova.
6 - Entende-se hoje que a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual quando o paciente e o médico estão ligados por um contrato que se forma, se de outro modo não se provar, pela circunstância de este, ao ter o seu consultório aberto ao público, ser um proponente contratual, onde o doente se dirige, necessitando de cuidados médicos, e assim manifesta a sua aceitação a tal proposta.
7 - Ainda que se deva distinguir as intervenções ou actos médicos em que se exige um resultado certo, de outras em que a aleatoriedade das condições do paciente e interacção com outros factores impedem a garantia de um resultado, em termos genéricos, o médico apenas se compromete a proporcionar os cuidados conforme as leges artis e os seus conhecimentos pessoais, vinculando-se à prestação de assistência mediante cuidados ou tratamentos normalmente exigíveis, com o intuito de curar. Trata-se de uma obrigação de meios e não de resultado.
8 - Em tais circunstâncias, cabe ao paciente demonstrar que o médico cumpriu defeituosamente a sua prestação, não empregando todos os meios, não praticando todos os actos normalmente necessários para a prossecução da finalidade da sua actuação, ou seja, cabe-lhe a prova da desconformidade objectiva entre a conduta adoptada pelo médico e as leis da arte e da ciência médica; ao médico caberá demonstrar a inexistência de culpa, alegando e provando que, naquelas circunstâncias concretas, não podia ou não devia ter agido de outra forma.
9 - O paciente deve assumir a responsabilidade perante a intervenção, pelo que tem direito a uma informação suficiente, legível, clara, que lhe permita conhecer os riscos para a sua saúde, devendo ser-lhe transmitidos, pelo menos, os riscos relacionados com as suas circunstâncias pessoais ou profissionais e os prováveis em condições normais.
10 - O consentimento do lesado é causa de exclusão de ilicitude (cf. art. 340°, n.° 1 do Código Civil), sendo um dos requisitos da licitude da actividade médica (cf. art.° 5° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Biomedicina e art.° 3°, n.° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).
11 - O dever de informação recai sobre o médico e o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico, a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento (artigo 157° do Código Penal); se o consentimento não existe ou é ineficaz, a actuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada.
12 - Os bens jurídicos tutelados que justificam a exigência do dever de informação são o direito à integridade física e moral e o direito à liberdade, pelo que os danos ressarcíveis são não só os que resultam da violação da liberdade da vontade, mas também as dores, os incómodos e a lesão da incolumidade pessoal (cf. art. 70° do C. Civil).
13 - Enquanto facto impeditivo do direito da apelante competia ao réu/recorrido (médico), fazer a prova do consentimento informado.

Acordam as Juízas na 7a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO
J... intentou contra L... a presente acção declarativa de condenação, com processo comum pedindo a condenação do réu no pagamento, a título de indemnização relativa a danos patrimoniais emergentes, do montante global de € 2 674,42 (dois mil seiscentos e setenta e quatro euros e quarenta e dois cêntimos); a título de indemnização por danos não patrimoniais o montante global de € 95 000,00 (noventa e cinco mil euros); de todas as despesas, medicamentos, intervenções cirúrgicas ou tratamentos que a autora tenha necessidade de efectuar após a instauração da presente petição inicial, e que sejam causa directa ou indirecta da intervenção e tratamentos efectuados pelo Réu; tudo acrescido de juros de mora à taxa legal, calculados sobre os montantes reclamados, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Alega para tanto, muito em síntese, o seguinte:
Ø Em finais de Janeiro de 2009 foi diagnosticado à autora um prolapso moderado do útero, sendo aconselhada a consultar o aqui réu, médico com experiência na matéria, que propôs a realização de uma histerectomia que resolveria o problema;
Ø No dia 17 de Fevereiro de 2010, no Hospital Particular de Lisboa, o réu procedeu a uma intervenção cirúrgica à autora, histerectomia uterina, por via vaginal, durante a qual colocou uma rede para a incontinência urinária (TVT-O);
Ø O réu não informou a autora que lhe seria colocada a prótese (rede) e esta não deu autorização para tanto;
Ø Antes da operação a autora nunca tinha apresentado queixas relacionadas com dificuldades urinárias e fecais e depois passou a ter dificuldade em urinar, a usar fraldas e a ter infecções urinárias causadas pela rede colocada pelo réu;
Ø Em consequência da operação a autora teve uma anemia aguda e outras complicações, correndo risco de vida, e permaneceu internada até 23 de Fevereiro de 2010;
Ø Em 2 de Junho de 2010 foi submetida a nova intervenção, tendo alta em 5 de Junho de 2010, sofrendo nova infecção originária em 10 de Junho e operada novamente em 15 de Dezembro de 2010, em que o réu retirou a prótese colocada em 17 de Fevereiro, por ter sido errada a sua colocação e colocou uma nova prótese, também sem a sua autorização;
Ø Por força da cirurgia, foi posteriormente detectada à autora uma estenose da cúpula vaginal, que não é uma consequência normal da intervenção a um prolapso urogenital de grau II;
Ø Em 15 de Outubro de 2012, a autora foi submetida a nova intervenção cirúrgica para correcção da sinequia vaginal e construção de uma neovagina;
Ø Por força destas intervenções a autora incorreu em despesas com exames e consultas, ficou a padecer de sequelas físicas e psicológicas, tendo suportado desgostos, dores e diminuição da sua auto-estima, ficando a padecer de síndrome depressivo grave, pelo que pretende ser indemnizada conforme pedidos que deduziu.
O réu contestou alegando, em síntese, que observou a autora em 15 de Fevereiro de 2010, diagnosticando um prolapso do compartimento anterior de Grau III e do compartimento médio e posterior de Grau II, pelo que era um prolapso complexo dos três compartimentos; a autora não tinha indicação de tratamento conservador do prolapso mas sim tratamento cirúrgico, com o que concordou; a aplicação de prótese sub uretral foi para cura de incontinência urinária de esforço, oculta pela existência de prolapso da parede anterior de grau III, procedimento de que a autora foi informada; as complicações ocorridas no pós-operatório são típicas, previsíveis e frequentes; concluiu que cumpriu todas as regras técnicas e de informação que lhe são exigíveis enquanto médico e pugnou pela improcedência da acção.
Procedeu-se à realização de audiência prévia, com prolação do despacho saneador que aferiu positivamente todos os pressupostos processuais relevantes e identificação do objecto do litígio e fixação dos temas de prova, sem reclamação.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença (cf. fls. 226 a 246) que julgou parcialmente procedente o pedido e condenou o réu no pagamento à autora da quantia de € 7 500,00 (sete mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação e até pagamento.
É desta sentença que autora e réu recorrem.
A autora concluiu assim as respectivas alegações:
A
I - O Recorrido tratou a Recorrente, e o seu processo clínico, com tanta leviandade que, para os Senhores Médicos peritos que se debruçaram sobre os registos clínicos, não foi sequer possível apurar, nomeadamente, a concreta prótese utilizada à revelia da Recorrente...
II - Estabelecendo-se entre médico e paciente um contrato, sobre o médico recai, por força da aplicação do regime da responsabilidade contratual, em caso de incumprimento, a presunção de culpa que o art.° 799°, n.° 1 do C.C. prevê.
III - Todo o processo clínico da Recorrente foi sujeito a duas perícias, uma levado a cabo pelo Dr. A..., especialista em Ginecologia e Obstetrícia, com o Grau de Consultor, Responsável da Unidade de Uroginecologia do Hospital de Santa Maria, cuja realização foi ordenada pelo Ministério Público no âmbito do processo n.° ..., e no qual se concluiu, nomeadamente: O processo e os dados fornecidos são muito imprecisos vagos e inespecíficos; nos processos de internamento faltam dados fundamentais e essenciais, nomeadamente o diagnóstico preciso, as intervenções realizadas, as próteses colocadas e o registo de complicações. Não me parecem registos adequados quer à natureza dos procedimentos quer ao grau de complicações que alegadamente ocorreram.
IV - A conduta do Recorrido, enquanto médico, e em relação às intervenções cirúrgicas efectuadas à Recorrente, com vista a apurar a existência de eventual negligência médica, foi objecto de análise do Conselho Médico Legal, tendo o mesmo concluído que: Dos registos clínicos não resulta a informação necessária para respondermos a este quesito, muito embora a omissão dos registos constitua em si uma má prática.
V - O Recorrido tinha obrigação de manter um registo clínico da Recorrente ... de forma clara e detalhada, os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-os ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo médico.
VI - No caso sub judice a má prática levada a cabo pelo Recorrido, expressamente declarada pelo Conselho Médico Legal, impossibilitou a Recorrente de, se necessário, efetuar prova: ... o cumprimento defeituoso, ou facto ilícito, consubstanciando-se este numa prática objetivamente desadequada, desconforme às legis artis; ... não só os danos sofridos como também o nexo causal entre tais danos e a má prática médica.
VII - Como refere Vera Lúcia Raposo, in Do ato médico ao problema jurídico, Almedina, pág. 293: ...a inexistência de um processo clínico actualizado e rigoroso, poderá fazer funcionar contra o médico a presunção de culpa do art.° 344°/2 CC.
VIII - No caso sub judice sempre teria que operar o disposto no artigo 344°, n.° 2 do C. Civil: Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado...
IX - Ao contrário do defendido pelo Tribunal a quo, na sua sentença, no caso sub judice operou-se uma inversão do ónus da prova, pelo que, não estava a Recorrente obrigada a provar uma má prática, em violação das Legis Artis por parte do Recorrido, este é que tinha que provar que na histerectomia que realizou, quer a técnica cirúrgica utilizada (transvaginal), quer a efectiva prestação, foram adequadas ao fim proposto ou ao estado clínico da Recorrente, e que foram corretamente realizadas;
X - Em relação à colocação das próteses TVT e biológica pelvi - soft de 4X7 cm, era ao Recorrido que competia provar que actuou prudentemente aplicando ou executando a técnica cirúrgica com perícia e atenção, e que as consequências posteriores aos actos praticados, nomeadamente, surgimento de um hematoma, baixo nível de hemoglobina, retenção urinária, infecções urinárias, e surgimento de estenose da cúpula vaginal, não resultaram de culpa sua;
XI - Isto porque como o Tribunal a quo concluiu a colocação das referidas próteses foram efectuadas sem o consentimento da Recorrente;
XII - Competia, igualmente, ao Recorrido provar que as intervenções cirúrgicas a que a Recorrente foi sujeita, após a sua primeira intervenção, que se realizou em 17/02/2010, nomeadamente, em 02/06/2010, 10/06/2010, 15/12/2010 e 15/10/2012 não resultaram de má prática da primeira intervenção.
XIII - Contudo, o Tribunal a quo, com o devido respeito, cm clara violação do artigo 344., n.° 2, do C. Civil entendeu que era à Recorrente que competia fazer a prova e não ao Recorrido;
XIV - Mas mesmo que assim não se entendesse, ou seja, que não operou a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344°, n.° 2, do C. Civil, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se coloca, em função das partes e do contrato em apreço, Contrato de Prestação de Serviços de Saúde, sempre existia um ónus probandi a favor do paciente.
XV - No caso em apreço, como resulta do ponto 16, da matéria de facto dada como provada, o objetivo da terapêutica cirúrgica a que a Recorrente se submeteu era aliviar os sintomas, restaurar a anatomia e corrigir alterações funcionais quer sejam sexuais, eventual incontinência ou fecal.
XVI - Após as intervenções cirúrgicas levadas a cabo pelo Recorrido aquilo que a Recorrente obteve foram alterações funcionais de natureza sexual, dificuldades de micção, e problemas pós operatórios de vários níveis;
XVII - Nesta medida o Tribunal a quo deveria ter considerado que todas as lesões, dores, intervenções cirúrgicas e privações que a Recorrente padeceu, se ficaram a dever a urna má prática médica susceptível de obrigar o Recorrido a indemnizar a Recorrente.
B
BA) DA MATÉRIA DE FACTO QUE DEVERIA TER SIDO DADA COMO NÃO PROVADA
XVIII - Entende a Recorrente que, em face da prova constante dos autos e produzida em audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo não poderia dar como provados os pontos 71°, 72°, 73° e 74° da matéria de facto dada como provada, os quais deveriam ter sido dados como não provados;
XIX - Quanto ao ponto 71:
O Tribunal a quo não refere em momento algum, na sua Sentença, em que prova se baseou para dar como provado o referido facto, o que poderia consubstanciar urna nulidade da mesma por falta de fundamentação;
Contudo, essa omissão resulta, apenas e só, do facto de que nenhuma prova foi feita quanto a essa matéria;
Conforme constatou o Sr. Dr. A..., no seu relatório pericial, junto como doc. 12, com a petição inicial de fls. 10, O processo e os dados fornecidos são muito imprecisos, vagos e inespecíficos;
nos processos de internamento faltam dados fundamentais e essenciais, nomeadamente o diagnóstico preciso, as intervenções realizadas, as próteses colocadas e o registo de complicações. Em face da total ausência de prova desse facto, não poderia o Tribunal a quo ter dado o mesmo como provado;
Quanto ao ponto 72:
Dos registos clínicos das intervenções levada a cabo pelo Recorrido não resulta a existência de qualquer incontinência urinária oculta;
O Dr. B... nem o Dr. V... participaram em qualquer das intervenções cirúrgicas levadas a cabo, sendo, apenas, médicos amigos do Recorrido;
Sem a existência de registos clínicos que permitissem retirar essa conclusão não poderia o Tribunal a quo dar como provado tal facto;
Quanto ao ponto 73:
O referido ponto configura matéria conclusiva e não qualquer facto;
Afirmar-se que Todas as complicações que se seguiram à realização da operação, são típicas, e passíveis de se verificarem num pós-operatório deste tipo., configura uma conclusão, a qual apenas se poderia retirar de factos concretos, da prova das complicações em concreto que eram expectáveis ou verificáveis;
Mas mesmo que se considerasse que aquilo que se encontra vertido no ponto 73 configura matéria de facto, o mesmo nunca poderia ser dado como provado;
A fls. 6, 5° parágrafo, do Relatório Pericial junto como doc. 12 com a petição inicial, refere-se o seguinte: A doente apresentou uma anemia aguda tendo sido sujeita a transfusão sanguínea no pós operatório imediato. É uma complicação rara, que ocorre em menos de 5/prct. das histerectomias vaginais por prolapso, sendo uma das causas o hematoma pélvico.
O Relatório Pericial junto como doc. 12, obrigava o Tribunal a dar como não provado o referido facto;
Quanto ao ponto 74:
Conforme o Tribunal a quo refere as testemunhas Dr.. AN... e também o Dr. P..., pronunciaram-se sobre o hematoma que surgiu no pós-operatório, mas não sobre as intercorrências da primeira cirurgia;
Não tendo o Recorrido elaborado os respectivos registos clínicos não poderia o Tribunal a quo dar como provado que A primeira cirurgia correu sem intercorrências;
XX - Assim, em face da total ausência de prova segura e credível deveria o Tribunal a quo dar como não provados os pontos 71°, 72°, 73° e 74° (1ª parte) da matéria de facto dada como provada.
BB) DA MATÉRIA DADA COMO NÃO PROVADA QUE DEVERIA TER SIDO DADA COMO PROVADA
XXI - O Tribunal a quo considerou, erroneamente, que não ficaram provados os artigos 75°, 95º, 132º, 133º e 144º da Petição inicial, os quais, ao contrário do decidido, deveriam ter sido dados como provados.
Quanto ao Ponto 75°:
O concreto meio probatório deste facto resulta da própria confissão clínica do Recorrido, conforme documento 20, junto com a petição inicial;
É o próprio Recorrido a afirmar, expressamente: Na cirurgia foi retirado a prótese de TVT-O (Trans Free Vaginal Tape Via Obturador)...
A testemunha Dr. P..., ouvido na audiência de discussão e julgamento de 14/11/2017, pelas 14:33, conforme depoimento que se encontra gravado no CD único, passagens a testemunha Dr. P..., colega de consultório do recorrido, passagens 07:05 a 07:14, ao contrário do referido pelo Tribunal a quo referiu expressamente que era possível remover a prótese e que isso configurava uma má prática;
Quanto ao ponto 95:
Resulta da matéria de facto dada como provada que:
50. Antes das operações levadas a cabo pelo Réu a Autora tinha uma vagina perfeitamente normal.
51. Antes das operações levadas a cabo pelo R. a A. não tinha qualquer estenose da cúpula vaginal.
No decurso do ano 2010 o único médico que operou a Recorrente via vaginal foi o Recorrido; No decurso desse mesmo ano, está provado que: 47. Em 29.11.2010 a Autora realizou uma Ressonância Magnética pélvica a qual revelou, nomeadamente: Há ainda perda da configuração em H da vagina, aspetos que são sugestivos de perda parcial do suporte fascial lateral, e ainda que Há também descida e protusão anterior do reto (...) aspetos compatíveis com fraqueza do suporte muscular posterior e ligeiro retrocele.
Pelo que, tendo a Recorrente uma vagina perfeitamente normal, sem qualquer estenose da cúpula vaginal, antes das operações levadas a cabo pelo Recorrido, e após as intervenções cirúrgicas de 17/02/2010, 02/06/2010 e 10/06/2010, tendo-lhe sido diagnosticada uma sinequia vaginal a mesma, evidentemente, só se pode concluir que resultou dessas intervenções cirúrgicas;
Por outro lado, corno acima se referiu, a propósito de presunção de culpa do Recorrido, este não demonstrou que a referida perturbação não tivesse resultado de comportamento ilícito seu;
Quanto aos pontos 132, 133 e 144:
Está claramente demonstrado e provado que, no decurso do ano 2010 o Recorrido operou a Recorrente 4 (quatro) vezes: em 17/02/2010, 02/06/2010, 10/06/2010 e 15/12/2010; Assim, como está provado que em 29/11/2010 e 17/06/2011 a Recorrente realizou ecografia pélvica e ressonância magnética, pontos 47 e 48 da matéria de facto dada como provada, que confirmaram o diagnóstico de existência de uma sinequia vaginal;
Está, igualmente, provado que apenas em 15/10/2012 a Recorrente foi submetida a nova intervenção cirúrgica para correção da sinequia vaginal e construção duma neovagina, ponto 49 da matéria de facto dada como provada;
No relatório pericial que elaborou, doc. 12, junto com a petição inicial, fls. 10, o senhor médico perito Dr. A..., afirmou expressamente que: O impacto na função sexual do encurtamento vaginal é evidente;
Sobre esta matéria pronunciou-se a Dr. M..., médica de família da Recorrente, ouvida na audiência de discussão e julgamento do dia 14/11/2017, pelas 09:56, conforme depoimento gravado no CD único Passagens: 00:05:19 a 00:06:35, 00:07:18 a 00:08:47 e 00:21:19 a 00:22:22;
A testemunha G..., ouvida na audiência de julgamento do dia 14/11/2017, com inicio do depoimento pelas 12:17, cujo depoimento se encontra gravado no CD único passagens: 00:05:38 a 00:06:01 e 00:06:32 a 00:07:05;
Testemunha O..., ouvida na audiência de discussão e julgamento do dia 14/11/2017, com início do depoimento as 14:14:26, cujo depoimento se encontra gravado no CD único Passagens: 00:03:34 a 00:03:55 e 00:05:38 a 00:05:58;
Testemunha MA..., ouvida no dia 14/11/2017, com início às 14:25:43, cujo depoimento se encontra gravado no CD único, Passagens: 00:01:17 a 00:03:07 e 00:04:30 a 00:05:30;
Depoimento escrito prestado pela Senhora juíza Desembargadora Dr.ª I…, junto aos autos a fls.: 71
BC) DA MATÉRIA DE FACTO DESCONSIDERADA PELO TRIBUNAL A QUO E QUE DEVERIA TER SIDO DADA COMO PROVADA
XXII - Por se revelarem, no nosso modesto entendimento, factos essenciais e ou instrumentais à
boa decisão da causa, nomeadamente, para prova da má prática médica do Recorrido, o Tribunal a quo deveria ter dado corno provados os seguintes factos vertidos na Petição inicial da Recorrente: 41°, 42°, 57°, 59°, 74°, 84°, 104°, 107°, 108°, 109°, 110°, 113°, 114°, 115°;
Quanto ao artigo 41° da P.I.:
A prova deste facto resulta da análise do documento n.° 13, junto com a petição inicial, e do Relatório Técnico Científico elaborado pelo Conselho Médico Legal, junto como doc. 14 com a Petição inicial, onde na fls. 2, na numeração dada pela Recorrente se refere: Foi internada no hospital Particular de Lisboa no dia 17.02.2010 e nesse mesmo dia submetida a cirurgia da qual não consta nenhum registo médico efetuado pela equipa cirúrgica....No dia 01.06.2010 a doente é novamente internada no Hospital Particular de Lisboa, não constando nenhum registo médico referente a este internamento. ...No dia 10.06.2010 a doente foi internada pela 3° vez no Hospital Particular de Lisboa, não constando nenhum registo clínico efectuado pelo médico.
Quanto ao artigo 42° da P.I.
Este facto resulta do Relatório Pericial efetuado à A., junto como doc. 12, fls. 5, 1° parágrafo, com a petição inicial;
Quanto ao artigo 57° da P.I.
A prova deste facto resulta do depoimento da testemunha G..., ouvida na audiência de discussão e julgamento do dia 14/11/2017, pelas 12:17:11, cujo depoimento se encontra gravado no CD Único, Passagens: 00:04:30 a 00:05:26;
Quanto ao artigo 59° da P.I.
A prova deste facto decorre do Relatório Médico junto com a P.I. como doc. 5;
Do depoimento da testemunha Dr.. M... ouvida em 14/11/2017, com inicio pelas 09:56, cujo depoimento se encontra gravado no CD Único, Passagens: 00:05:19 a 00:05:58 e 00:09:53 a 00:10:05;
Testemunha G... ouvida na audiência de discussão e julgamento do dia 14/11/2017, pelas 12:17:11, cujo depoimento se encontra gravado no CD único, Passagens: 00:02:56 a 00:04:54;
O artigo 74° da P.I.
A prova do artigo 74° da P.I. resulta do documento n.° 20 junto com a P.I.
O artigo 84° da P.I.
A prova do que se encontra escrito no artigo 84° da P.I. resulta diretamente do site citado: in http://www.fda.gov/cdrh/safety/102008-surgicalmesh.html
O artigo 104° da P.I.
A prova do artigo 104° resulta do documento n.° 22 junto com a P.I.:
Os artigos 108°, 109° e 110°
O que se encontra vertido nos artigos 108°, 109° e 110°, é a transcrição do relatório pericial
junto como documento n.° 12, com a P.I.
Os artigos 113°, 114° e 115° da P.I.
Os artigos 113°, 114° e 115°, reproduzem o Parecer elaborado pelo Conselho Médico Legal,
junto com a petição inicial domo doc. 14;
C
XXIII - No caso sub judice é manifesto que:
m Recorrido não efetuou um diagnóstico cuidado e ponderado sobre a situação clínica da Recorrente;
O Recorrido não informou a Recorrente corretamente, nomeadamente, sobre os problemas que poderiam advir da intervenção cirúrgica que pretendia realizar;
m Recorrido violou as mais elementares regras de conduta médica, nomeadamente, omitindo por completo os registos clínicos das intervenções que levou a cabo;
m Recorrido, sem o conhecimento e consentimento da Recorrente, aplicou-lhe uma prótese TVT-O, bem como uma prótese biológica pélvi—soft de 4 X 7 cm (Bard) rectal;
XXIV
Da matéria de facto dada como provada resulta, de forma evidente, que a atuação ilícita do Recorrido não se resumiu única e exclusivamente à colocação de próteses sem o consentimento da Recorrente;
XXV - O Recorrido não demonstrou que a anemia, o hematoma, a transfusão sanguínea, a sinequia vaginal, as consequentes intervenções cirúrgicas de que foi alvo, fossem situações normais e expectáveis neste tipo de intervenções;
XXVI - Mas mais grave, se essas eram situações expectáveis para o Recorrido então a Recorrente deveria ter sido informada dessa situação antes da operação, até porque, como é evidente, estando a mesma perante um prolapso classificado como leve ou moderado, ponto 7 da matéria de facto dada como provada, seguramente que se a mesma soubesse que lhe iria acontecer o que aconteceu, ou pudesse acontecer o que aconteceu, nunca teria aceite aquela intervenção cirúrgica;
XVII - O comportamento do Recorrido é a todos os níveis reprovável;
XXVIII - O Recorrido violou, nomeadamente os artigos 19°, 20°, 40°, 93° e 99° do Regulamento Deontológico, bem como a norma n.° 015/2013, de 03/10/2013 da Direcção Geral de Saúde;
XXIX - A indemnização dos danos não patrimoniais tem como objetivo compensar a Recorrente daqueles danos, através duma quantia em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar e
o acesso a bens recreativos e culturais, enquanto naturais contrapontos das dores e angústias passadas e futuras, da perda da auto estima, da frustração da sociabilidade.
XXX - Por outro lado, a condenação no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais tem também subjacente a ideia de reprovar a conduta do Recorrido, o qual, como acima se referiu, no caso sub judice, atenta a sua conduta, especialmente censurável, deverá ser especialmente castigado civilisticamente;
XXXI - Como bem se acentua no Ac. STJ de 15/01/2002, in www.dgsi.pt, na esteia do daquilo que é defendido pelo professor Antunes Varela: No caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista. É que, não obstante visar reparar, de algum modo, mais do que indemnizar, também não se alheia da ideia de reprovar ou castigar no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado a conduta do agente. (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol.I, pág. 607, 608)
XXXII - Tendo em conta a gravidade e multiplicidade dos danos não patrimoniais sofridos pela Recorrente e que foram descritos ao longo do presente Recurso, a ausência de culpa da sua parte, a sua idade e condição sócio - económica média, o juízo de equidade que constitui o
critério decisivo da fixação do montante indemnizatório (Art.° 496 n.°3 primeira parte do C. Civil), deveria o Recorrido ter sido condenado a pagar à Recorrente o montante peticionado de 95.000€ (Noventa e Cinco Mil Euros);
XXXIII - Encontrando-se provado, o ponto 52 da matéria de facto dada como provada, deveria, igualmente, o Recorrido ter sido condenado a pagar à Recorrente 2.674,42€ (Dois Mil Seiscentos e Setenta e Quatro Euros e Quarenta e Dois Cêntimos) a título de danos patrimoniais.
XXXIV - Assim, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 344°, n.°2, 494º, 496º, 798° e 799°, todos do Código Civil.
Nestes termos e nos melhores de Direito [...I deve o presente Recurso ser recebido e obtendo provimento deve a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser substituída por Acórdão que condene o Recorrido nos termos peticionados pela Recorrente, ou seja: A pagar a título de indemnização relativa a danos patrimoniais emergentes o montante global de 2.674,42€ (Dois Mil Seiscentos e Setenta e Quatro Euros e Quarenta e Dois Cêntimos); A título de indemnização por danos não patrimoniais o montante global de 95.000€ (Noventa e Cinco Mil Euros); A pagar todas as despesas, medicamentos, intervenções cirúrgicas ou tratamentos que a Autora tenha necessidade de efectuar após a instauração da presente petição inicial, e que sejam causa directa ou indirecta da intervenção e tratamentos efectuados pelo Réu. Deverá ainda o Recorrido ser condenado a pagar à Autora juros de Mora à taxa legal, calculados sobre os montantes ora reclamados, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Contra-alegou o réu/recorrido sustentando que redigiu os relatórios clínicos após cada intervenção cirúrgica, com a informação que entendeu pertinente, em conformidade com as normas então em vigor, não estando reunidos os pressupostos para a inversão do ónus da prova; os factos provados e não provados impugnados pela autora/recorrente devem manter-se inalterados; a autora/recorrente tomou conhecimento de que tinha uma incontinência urinária em 29 de Dezembro de 2009; as intervenções cirúrgicas foram consentidas; não foi estabelecido qualquer nexo causal entre a alegada falta de prestação de informação e os danos elencados pelo tribunal a quão, sobremaneira, quanto à lesão à integridade física e dignidade pessoal, pelo que não deveria o recorrido ter sido condenado no pagamento da indemnização, concluindo, assim, pela improcedência do recurso.
Por sua vez, tendo também interposto recurso da sentença, o réu concluiu as suas alegações do seguinte modo:
A. O Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo tribunal a quo que julgou parcialmente procedente a acção apresentada pela Autora J…, tendo condenado o Recorrente ao pagamento de uma indemnização no valor de 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros).
B. O Recorrente entende que o tribunal não deveria, face à prova produzida em audiência de julgamento e aos documentos juntos aos Autos, ter dado como não provado que Por outro lado, não se provou que o Réu informou a Autora que lhe seria colocada uma prótese/rede, ou que a Autora tenha dado autorização para tal procedimento; bem como não se provou que o Réu informou a Autora que, para além da histerectomia, realizaria qualquer intervenção na bexiga. Donde, não se dá como provado o alegado em sede de contestação, como seja que o Réu sempre informou a autora de todo o procedimento, nomeadamente que lhe seria colocada uma prótese/rede, dando-lhe conhecimento de todo o processo em causa, e os órgãos em concreto que seriam intervencionados.
C. Na verdade, resulta do depoimento em audiência de julgamento do Recorrente que antes de fazer a cirurgia a 17.02.2010 estudou a Autora/Recorrida, tendo, inclusivamente, pedido ao seu colega Dr. V... um estudo urodinâmico, junto aos Autos como Documento 11 da Contestação.
D. Do referido estudo urodinâmico resultou que a Autora/Recorrida sofria de uma incontinência urinária oculta pelo Prolapso que já lhe havia sido diagnosticado pelo Dr. B…
testemunha no processo, e que levou a Autora ao consultório do Recorrente para fazer a cirurgia de correcção do prolapso.
E. Resultou, igualmente do depoimento do Recorrente que a Autora quando chegou ao consultório do Recorrente que Ela quando chegou ao consultório já sabia que ia ter cirurgia vaginal (...) já lhe tinha sido transmitido pelo Dr. B....
F. Acresce que, do depoimento do Dr. V... resultou claro que o mesmo se recorda de ter feito um estudo urodinâmico à Autora — uma vez que consultou o arquivo — e que tal estudo foi-lhe pedido antes da cirurgia da Autora, tendo assinado o relatório final em 29 de Dezembro de 2009.
G. Resultou provado na sentença proferida pelo tribunal a quo que a colocação da prótese TVT-0 se apresenta como um tratamento adequado à uma incontinência urinária que iria deixar de ser oculta, na sequência da histerectomia.
H. É na sequência do estudo urodinâmico já referido e depois de receber em consulta a Autora/Recorrida e de lhe explicar o procedimento sugerido pelo colega Dr. B..., histerectomia e colocação da prótese necessária na sequência do resultado apresentado no estudo, que o Recorrente avança para a cirurgia, no dia 17 de Fevereiro de 2010, conforme facto 24. dado como provado na sentença do tribunal a quo.
1. Quanto ao procedimento de histerectomia, o tribunal não teve dúvidas de que o Recorrente explicou o procedimento e a Autora consentiu no mesmo, não compreendendo, porém, porque não teve o mesmo entendimento quanto à colocação da prótese se os esclarecimentos foram prestados na mesma altura.
J. Do documento n.º 1 junto com a contestação Impresso de Autorização, entregue à Autora/Recorrida na sequência da consulta onde foram prestados todos os esclarecimentos, refere expressamente Desde há um ano, Dezembro de 2008, refere sintomas de Prolapso da vagina e IUC (Incontinência Urinária) oculta pelo grande Cistoncelo, sendo certo que se faz referência nesse mesmo documento à prescrição de uma prótese TVT-0.
K. Pelo que deveria o tribunal a quo ter dado como provado que o Recorrente explicou o procedimento cirúrgico à Autora, incluindo a colocação da prótese/rede TVT-O para correcção da incontinência urinária oculta verificada no estudo urodinâmico elaborado pelo Dr. V... em 29 de Dezembro de 2009, em face dos depoimentos transcritos e, bem assim, do Documento junto com a petição inicial como Documento 11 e do documento junto como Documento 1 junto com a contestação.
L. No que respeita ao consentimento prestado na cirurgia referida nos pontos 31. e 46. da matéria dada como provada da sentença do tribunal a quo, entende, também o tribunal que tal consentimento não é válido, pese embora este esteja junto aos Autos como documento 4 junto com a Contestação Consentimento Livre e Esclarecido para Actos médicos.
M. Não podemos concordar com o entendimento do tribunal a quo no que diz respeito à análise do documento referido no artigo anterior, porquanto o mesmo foi assinado pela Autora, sendo certo que no mesmo documento consta a seguinte menção Não hesite em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido..
N. [...]
O. Pelo que caberia à Autora/Recorrida alegar e demonstrar que estamos no âmbito de aplicação da legislação referente às cláusulas contratuais, mormente do Decreto-Lei 446/86, para poder beneficiar da inversão do ónus da prova e consequentemente incumbir ao Recorrente/Autor demonstrar que prestou todos esclarecimentos à Autora quanto à colocação da Prótese biológica pelvi-soft de 4 x 7 cm (Bard) rectal, o que não aconteceu.
P. Devendo, consequentemente, o Tribunal ter dado como provado que a Autora/Recorrida foi esclarecida e deu o seu consentimento para a colocação da prótese supra referida.
Q. Entendeu o tribunal a quo que Estando em causa danos não patrimoniais como a lesão do direito à autodeterminação, integridade física e dignidade pessoal, considerando que as intervenções cirúrgicas a que foi sujeita causaram à autora padecimentos como dores, imobilização, período de recuperação longo; que tais padecimentos causaram ainda à autora significativa tristeza e perda de vitalidade e alegria de viver, entende-se ser adequada a fixação de uma indemnização no valor de 7.500,00€.
R. Sendo certo que não é estabelecido qualquer nexo causal entre o alegado facto ilícito falta de prestação de informação e os danos elencados pelo tribunal a quo, mormente, a lesão à integridade física e dignidade pessoal, considerando que as intervenções cirúrgicas a que foi sujeita causaram à autora padecimentos como dores, imobilização, período de recuperação longo; que tais padecimentos causaram ainda à autora significativa tristeza e perda de vitalidade e alegria de viver.
S. Nos termos do artigo 483.º, n.º 1 e 342.º, n.º 1, ambos do Código Civil incumbia à Autora/Recorrida alegar e provar que tais danos resultam, concretamente, da violação do dever de informar do médico.
T. Ora, tal alegação e prova não foi feita pela Autora/Recorrida, pelo que não deveria o Recorrente ter sido condenado no pagamento da indemnização a que alude a Conclusão P.
U. É que não pode a Autora/Recorrida alegar danos que alegadamente decorrem de um alegado facto ilícito (má prática médica) que o tribunal a quo considera não ter existido, condenando posteriormente o Recorrente, precisamente pelos danos alegados, mas com uma fonte de ilicitude diferente — concretamente a alegada falta de informação e consentimento na colocação da prótese TVT-0.
V. Termos em que deveria o tribunal a quo ter julgado a acção totalmente improcedente, absolvendo o Réu do pedido.
Nestes termos e nos mais de Direito [...] dever ser reapreciada a prova gravada, nos termos e para os efeitos do artigo 638.º/7 do CPC e parcialmente revogada a sentença proferida pelo tribunal a quo, sendo substituída por sentença que julgue a acção totalmente improcedente por não provada e consequentemente absolva o Réu/Recorrente do pedido.
A autora/recorrida não apresentou contra-alegações.
II- OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.°s 635.°, n.° 4 e 639.°, n.° 1 do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635°, n.° 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cf. n.° 4 do mencionado art. 635°). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas (cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 97).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas - e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5°, n.° 3 do CPC) - de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608°, n° 2 do CPC, ex vi art. 663°, n.° 2, do mesmo diploma).
Assim, perante as conclusões da alegação da autora/apelante e do réu/apelante, o objecto dos presentes recursos consiste em:
a) Apreciar a impugnação da matéria de facto;
b) Aferir sobre a responsabilidade civil contratual do réu decorrente de má prática médica e/ou por violação do dever de informação;
c) Adequação do valor da indemnização arbitrada. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. - FUNDAMENTOS DE FACTO
Na primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. Em 11/10/2011, a Autora apresentou a queixa junta aos autos a fls. 21 a 25 contra o Réu, no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, a qual correu termos sob o n.° ..., da 6ª Secção do DIAP de Lisboa, imputando-lhe os factos que descreve nessa queixa e a comissão pelo mesmo de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelo art.° 148°, n.° 3 do Cód. Penal, em concurso real com a comissão de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punido pelos art.°s 150°, n.° 2 e 156°, n.° 1 do Cód. Penal - cfr. doc. de fls. 21 verso a 25. (A)
2. Por despacho proferido nos autos de inquérito referidos em A), em 22/04/2016, foi determinado o arquivamento daqueles autos de inquérito - cfr. doc. de fls. 28 a 33. (B)
3. Prolapso genital é uma patologia que resulta da perda dos suportes vaginais e pélvicos normais (musculares, aponevróticos e ligamentosos), determinando a cedência ou queda dos órgãos pélvicos através do canal vaginal - bexiga, uretra, intestino e recto. (C)
4. Os órgãos pélvicos (aparelho urinário baixo, aparelho genital e recto), são suportados por um sistema de músculos, fasciais (membranas ou planos fibrosos) e ligamentos. A vagina é uma zona de fragilidade que em caso de falha ou deficiência destas estruturas de suporte permite que esses órgãos pélvicos possam descer da sua posição, chegando a sair para o exterior. (D)
5. Os prolapsos genitais podem ser dos seguintes tipos:
- Prolapso vaginal anterior - também conhecido como cistocele ou vulgarmente bexiga descaída, por estar usualmente implicada a bexiga;
- Prolapso vaginal posterior - também conhecido como rectocele por ser o recto o órgão preferencialmente envolvido;
- Prolapso do compartimento médio - normalmente envolve os vários compartimentos e órgãos pélvicos, tais como a bexiga, intestino delgado e grosso e assume essencialmente duas formas: Prolapso Uterino (procidência) e Prolapso da Cúpula Vaginal após histerectomia (conhecido como enterocele);
- Prolapso rectal - por vezes confundido com patologia hemorroidária. (E)
6. Em função da gravidade do Prolapso, o mesmo pode ser classificado nos seguintes
graus:
- Grau O - ausência de prolapso;
- Grau I - ponto de maior prolapso está localizado até 1 cm para dentro do hímen (¬1 cm.);
- Grau II - o ponto de maior prolapso está localizado entre 1 cm acima e 1 cm abaixo do hímen;
- Grau III - o ponto de maior prolapso está a mais de 1 cm para fora do hímen, sem ocorrer eversão total;
- Grau IV - eversão total do órgão prolapsado. O ponto de maior prolapso fica, no mínimo, no comprimento vaginal menos 2 cm. (F)
7. Considerando a classificação atribuída, os Prolapsos de Grau I e Grau II são classificados como leves ou moderados. (G)
8. Um exame ginecológico é suficiente para o diagnóstico do prolapso. No entanto, para compreender e esclarecer a completa natureza do problema existem diversos exames complementares que podem ser efectuados, nomeadamente, ressonância magnética, ecografia, estudos urodinâmicos, testes de avaliação do tónus muscular e cistourestroscopia. (H)
9. Todos os exames complementares referidos em H) ajudam o cirurgião a seleccionar o melhor método e o tipo de cirurgia a efectuar na correcção do prolapso. (I)
10. A Autora foi submetida a um exame: estudo urodinâmico em pré-operatório, a análises clínicas e a uma ecografia pélvica endovaginal. (J)
11. No relatório pericial efectuado à Autora no âmbito do processo referido em A) refere-se que: O prolapso urogenital de grau II (o sistema de classificação actual mais aceite internacionalmente é o POP-Q vai de 0-4) tem indicação cirúrgica se for sintomático para a paciente e interferir na sua qualidade de vida. Infiro ter sido o caso dado a doente ter aceite a proposta cirúrgica realizada por dois diferentes ginecologistas. (K)
12. Num Prolapso de grau II só em casos de grande perturbação na qualidade de vida da paciente é recomendada a intervenção cirúrgica. (L)
13. A diversa literatura médica sobre as seguintes abordagens do tratamento refere que para mulheres assintomáticas ou levemente sintomáticas, o tratamento expectante é apropriado. Para as mulheres sintomáticas o tratamento pode ser conservador ou cirúrgico. A escolha do tratamento depende do tipo e gravidade dos sintomas, da idade e das comodidades médicas, do desejo de função sexual futura e/ ou fertilidade e dos factores de risco para recorrência. O tratamento deve ter como objectivo o alívio dos sintomas, mas os benefícios devem pesar mais do que os riscos. (M)
14. O tratamento cirúrgico está indicado se a condição causar algum sintoma ou disfunção que interfira nas actividades normais da paciente. (N)
15. Pacientes com pequenos prolapsos não associados a outras anormalidades ginecológicas e sem manifestações clínicas, ao invés de serem imediatamente submetidas ao tratamento cirúrgico, devem ser acompanhadas quanto à evolução. (0)
16. O objectivo da terapêutica cirúrgica é aliviar os sintomas, restaurar a anatomia e corrigir alterações funcionais quer sejam sexuais, eventual incontinência urinária ou fecal. (P)
17. Dentre as cirurgias incompatíveis com a função reprodutora, assinalam-se a histerectomia uterina.
18. A histerectomia uterina está indicada nos casos de prolapso de grau III e IV. (Q)
19. A Autora sentia um ligeiro desconforto quando andava. (R)
20. O Réu foi aconselhado à Autora como sendo um médico com enorme experiência na matéria. (S)
21. A Autora contratou os serviços do Réu. (T)
22. O Réu informou a Autora, pelo menos, que considerando o prolapso uterino de que padecia, o problema ficaria resolvido com a histerectomia uterina, via vaginal; (U)
23. Antes de efectuar a intervenção cirúrgica, nas análises que efectuou a Autora tinha hemoglobina de 12,0 g/ dl. (V)
24. No dia 17 de Fevereiro de 2010, nas instalações do Hospital Particular de Lisboa, o Réu procedeu a uma intervenção cirúrgica à Autora, tendo realizado àquela, pelo menos, uma histerectomia uterina, por via vaginal, ou seja, uma operação com remoção do útero. (W)
25. Durante a intervenção cirúrgica referida em W), o Réu colocou na Autora uma rede para a incontinência urinária (TVT-O). (Y)
26. Nessa intervenção cirúrgica a Autora perdeu sangue e houve necessidade de lhe fazer uma transfusão de sangue. (X)
27. A Autora deu o seu consentimento à intervenção cirúrgica, histerectomia de 17/02/2010. (Z)
28. No dia 02/06/2010, a Autora foi submetida a nova intervenção cirúrgica pelo Réu. (AA)
29. Na sequência da intervenção cirúrgica referida em AB), a Autora teve alta hospitalar em 05/06/2010. (AB)
30. No dia 10 de Junho de 2010, a Autora teve um terceiro internamento. (AC)
31. A Autora realizou nova cirurgia efectuada pelo Réu. (AD)
32. A Autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica em 15.10.2012. (AE)
33. Por sentença proferida em 04.02.2015, nos autos de divórcio litigioso que o marido da Autora instaurou contra a última, Proc. …, do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância Central, 3ª Sec. F. Men., J3, foi decretado o divórcio entre a Autora e o seu marido - cfr. doc. de fls. 125 verso a 126. (AF)
34. Antes das cirurgias a Autora não apresentava queixas relacionadas com dificuldades urinárias e fecais. (AG)
35. A Autora nasceu em 30-08-1948.
36. No final do ano 2009 foi diagnosticado à Autora, pelo Sr. Dr. B..., ginecologista, um Prolapso Urogenital do II Grau.
37. Em Janeiro de 2010 a médica de família da autora diagnosticou-lhe um prolapso uterino.
38. Após consulta com a Autora, a mesma foi informada pelo Réu que o tratamento adequado à sua situação clínica seria realizar uma histerectomia para remoção do útero.
39. A Autora, antes da operação, nunca tinha apresentado quaisquer queixas relacionadas com dificuldades urinárias e fecais.
40. Dois dias após a operação levada a cabo pelo Réu, ou seja, em 19-02-2010, a hemoglobina da Autora desceu ao valor de 6,8 g/ dl.
41. A Autora foi sujeita à transfusão de duas unidades de sangue para correcção da anemia.
42. Subsequentemente à operação levada a cabo pelo Réu, foi diagnosticado à autora um hematoma o qual demorou cerca de quatro meses a ser reabsorvido.
43. O referido hematoma em 23-02-2010 tinha a dimensão 56X42X34, em 04-03-2010 tinha a dimensão de 62X58X40mm, em 11-03-2010 tinha a dimensão de 56X53X52mm, em 12-04-2010 tinha a dimensão de 42X37X36 mm, em 13-05-2010 tinha a dimensão de 33X29X24 mm.
44. Em consequência das complicações pós-operatórias, a Autora teve que permanecer internada até ao dia 23 de Fevereiro de 2010.
45. A intervenção realizada em 02-06-2010 visou unicamente libertar/aliviar a tensão da prótese/ rede que o Réu havia colocado na Autora.
46. A cirurgia referida em AD realizou-se em 15-12-2010, na qual foi colocada na autora prótese biológica pelvi-soft de 4 X 7 cm (Bard) rectal.
47. Em 29-11-2010 a Autora realizou uma Ressonância Magnética pélvica a qual revelou, nomeadamente: Há ainda perda da configuração em H da vagina, aspectos que são sugestivos de perda parcial do suporte fascial lateral., e ainda que Há também descida e protrusão anterior do reto (...) aspectos compatíveis com fraqueza do suporte muscular posterior e ligeiro retocele.
48. Na sequência de consulta no Hospital dos Lusíadas, com o Sr. Dr. AA..., realizada em 17-06-2011, a autora realizou ecografia pélvica e ressonância magnética, sendo confirmado um diagnóstico duma sinequia vaginal, na união do terço superior da vagina com os dois terços inferiores, na parede central permitindo lateralmente dois túneis até à cúpula vaginal. Apesar de no total a vagina ter 8 cm de comprimento, sob ponto de vista funcional só existiam 5 cm, o que a transformava numa vagina curta.
49. Em 15-10-2012 a Autora foi submetida a nova intervenção cirúrgica para correcção da sinequia vaginal e construção duma neovagina.
50. Antes das operações levadas a cabo pelo Réu a Autora tinha uma vagina perfeitamente normal.
51. Antes das operações levadas a cabo pelo R. a não tinha qualquer estenose da cúpula vaginal.
52. A Autora realizou despesas com exames de diagnóstico e consultas médicas constantes dos documentos de fls. 68 verso a fls. 125.
53. A Autora ficou a padecer das já descritas sequelas físicas, e também psicológicas, em consequência das intervenções cirúrgicas e respectivo resultado.
54. Sofreu muitos momentos de desgosto e constrangimento.
55. Viveu angustiada e amargurada.
56. Ficou abalada e perturbada emocionalmente.
57. Sofreu diminuição de auto estima.
58. A Autora sentiu-se diminuída.
59. A Autora dava por si a chorar compulsivamente.
60. E sentiu-se revoltada.
61. A Autora durante cerca de um ano ficou a padecer de dificuldades urinárias, com retenção e perdas.
62. E a ter que usar fraldas.
63. E a padecer de dores.
64. A Autora, para realização das operações levadas a cabo pelo Réu esteve acamada em unidade hospitalar cerca de 15 (quinze) dias.
65. A Autora era mulher dinâmica e feliz, com muita vontade de viver.
66. A Autora tornou-se uma mulher triste, sem alegria de viver.
67. Agressiva e com constantes recaídas depressivas.
68. Quando o Réu observou a Autora em 15 de Fevereiro de 2010, diagnosticou-lhe um prolapso do compartimento anterior de Grau III e do compartimento médio e posterior de Grau II.
69. A Autora chegou ao consultório do réu através da recomendação do Exmo. Sr. Dr. B..., médico ginecologista, com informação clínica para correcção cirúrgica do prolapso dos órgãos pélvicos sintomático.
70. A intervenção cirúrgica adequada à situação clínica da Autora, incluía histerectomia para remoção do útero, e reforçar os três compartimentos do prolapso.
71. O Réu, além da remoção do útero, corrigiu os três compartimentos, nomeadamente o problema da incontinência urinária ocultada pelo Prolapso do compartimento anterior.
72. A Autora apresentava um problema de incontinência urinária oculta, sendo imperativo para correcção da mesma a aplicação na Autora de uma prótese TVT-O.
73. Todas as complicações que se seguiram à realização da operação, são típicas, e passíveis de se verificarem num pós-operatório deste tipo.
74. A primeira cirurgia correu sem intercorrências, 48 horas depois da mesma, o hemograma revelou anemia com necessidade de correcção com transfusão.
75. A causa da anemia foi diagnosticada com um hematoma localizado entre a bexiga e a vagina.
76. Segundo a literatura médica, o hematoma diagnosticado é uma complicação frequente neste tipo de cirurgias, respeitante a uma hemorragia de um pequeno vaso.
77. Como resultado desse diagnóstico, prolongou o internamento e a algaliação permanente.
78. A hemoglobina poderá ter ficado baixa devido ao sangue ter ficado retido no hematoma, sendo certo que foi decidido que esse hematoma fosse reabsorvido naturalmente pelo organismo da autora.
79. No segundo dia do pós-operatório, verificou-se também como complicação disfunção miccional com retenção urinária, pelo que fez algaliação permanente por retenção urinária.
80. A 23 de Fevereiro de 2010 teve alta hospitalar por melhoria da dor e estabilização dos valores analíticos da anemia e foi seguida em ambulatório, para vigilância clínica e laboratorial do hematoma referido.
81. No dia 2 de Junho de 2010 foi submetida a nova intervenção cirúrgica.
82. Em 10 de Junho de 2010 a autora tem um terceiro internamento de urgência, por retenção urinária com globo vesical e dor na região renal esquerda.
83. Em 13 de Junho de 2010, tem alta hospitalar após 3 dias de internamento para terapêutica médica, do quadro clínico de infecção do aparelho urinário inferior e superior esquerdo.

A primeira instância considerou não provados os seguintes factos que identificou por mera referência aos artigos da petição mas que aqui se reproduzem:
a) Optando-se pela cirurgia é imperioso ter a exacta noção dos órgãos que vão ser intervencionados, isto porque, a eliminação do prolapso, seja de que natureza for, pressupõe uma única intervenção cirúrgica (artigo 18° da petição inicial);
b) Como alternativa ao tratamento cirúrgico é aconselhada a colocação de pessários, actualmente fabricados em silicone, no caso sub judice, considerando o tipo de prolapso da ofendida, seria aconselhável um pessário para preenchimento (artigo 23° da petição inicial);
c) A A. não foi informada que existia outro tipo de tratamento para o seu problema, sendo-lhe a intervenção cirúrgica apresentada como única solução (artigo 33° da petição inicial);
d) Os exames anteriores à operação não revelavam qualquer incontinência urinária (artigo 44° da petição inicia);
e) A A. esteve em risco de morrer (artigo 47° da petição inicial);
f) A A. no decurso da operação e nos momentos seguintes perdeu grandes quantidades de sangue (artigo 48° da petição inicial);
g) A autora passou a ter que usar fraldas (artigo 51° da petição inicial);
h) E a ter infecções urinárias (artigo 52° da petição inicial);
i) Na operação de 15 de Dezembro de 2010 o R. retirou a prótese que tinha colocado em 17 de Fevereiro de 2010, por ter sido manifestamente errónea a sua colocação (artigo 75° da petição inicial);
i) Essa mesma prótese retirada em Dezembro de 2010 levou à anterior operação de Junho de 2010 (artigo 76° da petição inicial);
k) A A. não necessitava da colocação de qualquer prótese TVT ou TVT-O, como o R. veio a reconhecer com a operação de 15/12/2010 (artigo 77° da petição inicial);
1) A estenose da cúpula vaginal foi decorrente da intervenção cirúrgica levada a cabo pelo R. (artigo 95° da petição inicial);
m) Sendo certo que, a estenose da cúpula vaginal não é uma consequência normal da intervenção cirúrgica a um Prolapso Urogenital de grau II (artigo 96° da petição inicial);
n) A estenose da cúpula vaginal apenas ocorreu devido a um mau acompanhamento clínico por parte do R. e a uma intervenção cirúrgica mal efectuada (artigo 97° da petição inicial);
o) Após consultar o Dr. AA..., o qual solicitou que a ofendida realizasse diversos exames, apurou-se que, em consequência das operações levadas a cabo pelo R. a ofendida ficou com uma sinequia vaginal, na união do terço superior da vagina com os dois terços inferiores, na parede central permitindo lateralmente dois túneis até à cúpula vaginal. Apesar de no total a vagina ter 8 cm de comprimento, sob ponto de vista funcional só existiam 5 cm o que a transformava numa vagina curta (artigo 100° da petição inicial);
p) Esta situação foi provocada por uma má prática levada a cabo pelo R. (artigo 101° da petição inicial);
q) Em consequência da conduta do R. a A. ficou a padecer de síndrome depressivo grave (artigo 130° da petição inicial);
r) E a ter que receber acompanhamento psicológico e psiquiátrico (artigo 131° da petição inicial);
s) A A. desde Fevereiro de 2010 não mais conseguiu ter relações sexuais (artigo 132° da petição inicial);
t) Toda esta situação levou a que o marido da A. se afastasse desta (artigo 133° da petição inicial);
u) A A. durante cerca de um ano ficou a padecer de incontinência (artigo 134° da petição inicial);
v) A A. foi sujeita a três anestesias gerais (artigo 137° da petição inicial);
w) A. viu a sua vida completamente destruída (artigo 140° da petição inicial);
x) Verifica-se que a autora se apresenta uma pessoa agressiva e revoltada, situação esta motivada pela destruição de uma vida saudável que mantinha até à data da primeira cirurgia em Fevereiro do ano 2010 (artigo 143° da petição inicial - cf. fls. 150 verso dos autos);
y) Em consequência de todos os acontecimentos motivados pelas cirurgias praticadas pelo réu, o marido da autora saiu de casa acabando por pedir o divórcio por não se sentir totalmente realizado quanto à vida conjugal que mantinha com a autora (artigo 144° da petição inicial - cf. fls. 160 dos autos);
Da Contestação
z) O réu sempre informou a autora de todo o procedimento, nomeadamente que lhe seria colocada uma prótese/rede (artigo 48° da contestação);
aa) A autora teve conhecimento sobre todo o processo em causa, nomeadamente, que lhe seria colocada uma prótese para a incontinência urinária (TVT-O) (artigo 50° da contestação);
bb) Informou ainda a autora os órgãos em concreto que seriam intervencionados (artigo 51° da contestação);
cc) Após ter sido prestada toda a informação respeitante ao procedimento a aplicar ao caso sub judice da autora, por parte do réu, aquela autorizou a colocação de prótese/rede (artigo 52° da contestação).
3.2. — APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da Impugnação da Matéria de Facto (Apelação da autora)
Estabelece o art.° 662° n.° 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Ao assim dispor, pretendeu o legislador que a Relação fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau
de jurisdição em relação à matéria de facto — cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-12-2016, relator Garcia Calejo, processo n.° 437/11.0TBBGC.G1.S1 disponível na base de dados do ITIJ com o endereço www,.dgsi.pt.
Dispõe o art.° 640°, n.° 1 do CPC:
Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
À luz do normativo transcrito, afere-se que em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo - documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escritos - depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se exige no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com
o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre
o que realmente pretende o recorrente - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 142, nota 228.
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2016, relatado por Maria Amélia Ribeiro, proferido no processo n. 1393/08.7YXLSB11-7 disponível, em www.dgsi.pt refere-se:
É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum.
Analisadas as alegações de recurso verifica-se que a recorrente cumpriu o ónus impugnatório que sobre si impendia, identificando os factos que considera incorrectamente julgados, a prova ou ausência dela que justifica a alteração da matéria de facto provada e propondo a decisão que considera correcta.
Ainda antes de se passar à apreciação da matéria de facto impugnada importa analisar a questão suscitada pela recorrente quanto à pretensão de ver reconhecida a verificação dos pressupostos para a inversão do ónus da prova, sendo certo que esta matéria releva em sede de apreciação da matéria de facto, momento processualmente adequado para a sua aplicação (cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-04-2018, relatora Rosa Tching, processo n.° 744/12.4TVPRT.P1.S1, disponível na base de dados do ITIJ com o endereço www.dgsi.pt - [...] a decisão de inversão do ónus da prova está dependente da livre apreciação que o julgador faz ex post facto (isto é, depois da produção de prova em julgamento), designadamente sobre a necessidade de recorrer, ou não, ao sobredito mecanismo legal de inversão do ónus da prova).
Não obstante a recorrente conclua, nesta parte da sua alegação, no sentido de que essa inversão do ónus da prova deve conduzir à afirmação de que todas as lesões, dores, intervenções cirúrgicas e privações que padeceu, descritas nos pontos da matéria de facto que elencou, se ficaram a dever a uma má prática por parte do recorrido, a questão atinente à inversão do ónus da prova releva em sede de apuramento dos factos (sendo coisa distinta, a presunção de culpa - relativa ao incumprimento/ilicitude - que a recorrente parece querer desde já imputar ao réu/recorrido, matéria a apreciar em sede de análise jurídica do litígio).
Com efeito, sustenta a autora/apelante que o Tribunal a quo, em violação do disposto no art. 344°, n.° 2 do Código Civil, entendeu erradamente que lhe competia provar a violação pelo recorrido das leges artis, porquanto o médico omitiu do processo clínico da paciente dados fundamentais e essenciais para apurar a conformidade da sua prática médica, circunstância que foi notada quer no parecer elaborado pelo Dr. A..., especialista em Ginecologia e Obstetrícia, com o grau de Consultor, responsável da Unidade de Uroginecologia do Hospital de Santa Maria, quer no parecer emitido pelo Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP, tendo, assim, violado os normativos constantes do Regulamento de Deontologia Médica aprovado pelo Regulamento n.° 707/2016, de 21 de Julho, que lhe impunha a manutenção de um registo clínico claro e detalhado, o que impossibilitou a recorrente de efectuar a prova do cumprimento defeituoso ou facto ilícito consistente numa prática desadequada e desconforme às leges artis.
Nas suas contra-alegações o recorrido alerta para o facto de o Regulamento de Deontologia Médica citado pela recorrente ainda não estar em vigor à data dos factos, vigorando então o Código Deontológico dos Médicos, aprovado pelo Regulamento 14/2009, de 13-01, de acordo com o qual estava obrigado apenas a registar cuidadosamente os resultados que considerasse relevantes das observações clínicas dos seus doentes, o que fez, sendo que do processo constam registos clínicos, como os constantes dos documentos 13, 20, 21 e 22 juntos com a petição inicial e documentos 2, 5 e 6 juntos com a contestação; mais refere que o registo clínico não é o único modo de provar a inobservância das leges artis, para além do que em momento algum existiu um comportamento culposo do recorrido com vista a tornar impossível a prova à recorrente.
O art.° 342.° do Código Civil estabelece que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
O art.° 417.° do Código de Processo Civil (CPC) com a epígrafe Dever de cooperação
para a descoberta da verdade dispõe:
1. Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, devem prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.
2. Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que furem pussiueis; se u recusurile for parte, o tribunal aprecia livremente o valor riu recusa pura efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.° 2 do artigo 344.° do Código Civil.
O art. 344°, n.° 2 do C. Civil prescreve que há «inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de
processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações».
A situação consagrada neste normativo legal é a de a parte contrária ter destruído, feito desaparecer ou impedido a produção de um meio de prova e dessa forma ter tornado impossível à parte onerada fazer a prova dos factos que lhe compete demonstrar. Será o caso, por exemplo, da destruição de um documento, do encobrimento de uma coisa ou do impedimento da realização de um exame pericial quando tais meios de prova sejam imprescindíveis para a demonstração do facto, designadamente por serem os únicos meios de prova possíveis para demonstração do facto, ou, ao menos, tenham especial relevância para esse efeito, designadamente em função do valor probatório particular que lhes seria atribuído e do menor valor probatório dos remanescentes meios probatórios possíveis.
Não se torna necessário que o meio de prova inviabilizado pela conduta culposa da parte seja o único idóneo para a demonstração do facto, sendo suficiente que se trate de meio de prova de especial relevância, ou seja, que por si só fosse idóneo para garantir a procedência da acção — cf. Freitas Rangel, O Ónus da Prova no Processo Civil, pág. 301 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-02-2012, relator Bettencourt de Faria, processo n.° 994/06.2TBVFR.P1.S1 disponível www.dgsi.pt.
A inversão do ónus da prova depende, assim, da verificação de dois pressupostos:
a) que a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer;
b) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título de culpa, não bastando a mera negligência — cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12¬04-2018, acima mencionado.
A propósito do comportamento do recusante susceptível de determinar a inversão do ónus da prova, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre referem que Tal acontece quando a recusa impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs.: 313, n° 1 CC; art. 364 CC), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos [...] - cf. Código de Processo Civil Anotado, Volume 2°, 3° edição, pp. 222 e 223.
Assim, não existindo outra prova dos factos em causa ou, existindo, for insuficiente, a recusa pode dar lugar à inversão do ónus da prova, que ficará a cargo da parte não cooperante.
A inversão do ónus da prova configura-se, então, como uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material, consagrado no art. 417°, n.° 1 do CPC, quando essa falta de colaboração vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte podia e devia agir de outro modo (art. 344°, n.° 2 do CC e art. 417°, n.° 2 do CPC).
E isto é assim, porquanto não se afigura justo que aquele a quem incumbe a prova do facto não o possa produzir devido a culpa da outra parte. Com efeito, esta inversão tem de ser considerada como sancionatória de uma menor lisura na litigância, nomeadamente, uma infracção ao princípio da cooperação do art.° 519° do mesmo código, quando esta infracção vai ao ponto de tornar impossível a produção de prova por parte daquele que tem de provar. Daqui que não baste a mera negligência e seja de exigir a intencionalidade da falta de cooperação. -cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-02-2012 acima referido.
Cumpre notar que o facto de a recusa da contraparte tornar culposamente a prova impossível ou tornar particularmente difícil a prova, não acarreta, de imediato, que o facto controvertido se tenha por verdadeiro (situação em que se estaria então perante um meio de prova com força probatória plena, o que não é o caso) - cf. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pág. 239 - Não considera a lei o facto controvertido como irrefutavelmente provado, mas inverte quanto a ele o ónus da prova com base na regra da experiência de que quem coloca entraves excessivos, ou mesmo insuperáveis, à descoberta da verdade material é quem mais descrê da consistência do seu direito, para além de que viola o princípio básico da cooperação entre as partes, na(s) sua(s) vertente(s) da colaboração processual instrutória e probatória (art.° 417, n.° 1).
Relevar a recusa nos termos apontados significa apenas que passa a caber à parte recusante a prova da falta de realidade desse facto, não estando, por isso, as instâncias dispensadas de valorar essa recusa para efeitos da formação da sua convicção com vista a dar, como provado, ou não, o facto em causa - cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-04-2018, acima mencionado.
Na situação sub judice importa ter presente que se está perante uma acção em que a demandante pretende imputar ao réu a responsabilidade civil decorrente de uma má prática médica.
A responsabilidade médica pode ser civil, criminal ou disciplinar (esta num plano de tutela de autoridade médica pública ou num plano disciplinar laboral privado).
A pretensão da autora/recorrente situa-se no âmbito da responsabilidade civil do médico contratado para lhe prestar cuidados médicos na sequência do diagnóstico de um prnlapsn urngenital do compartimento anterior de Grau III e do compartimento médio e posterior de Grau II.
A responsabilidade médica assenta na necessidade decorrente da lei de obrigar aquele que causa danos a outrem a colocar o ofendido na situação em que estaria sem a lesão, o que origina a obrigação de indemnização do lesado com vista à supressão do dano.
No nosso ordenamento jurídico civil a responsabilidade baseia-se, em princípio, na culpa, só existindo obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, nos casos especificados na lei (cf. art. 483°, n.°s 1 e 2 do C. Civil).
A lei portuguesa não prevê em sede de responsabilidade médica casos de responsabilidade objectiva ou por factos lícitos danosos (situações em que apesar do carácter conforme ao direito da actuação do sujeito, parece injusto não dar à pessoa sacrificada uma reparação).
A responsabilidade civil médica admite a responsabilidade contratual, ou seja, a que deriva da violação de uma obrigação em sentido técnico e a extracontratual ou aquiliana que resulta da violação de um dever geral de abstenção contraposto a um direito absoluto (no caso direito de personalidade). Na actuação do médico, o não cumprimento pelo mesmo dos deveres de cuidado e protecção a que está obrigado, podem ser causa de responsabilidade contratual, na medida em que viola deveres laterais a que contratualmente está obrigado, mas também causa de responsabilidade delitual, na medida em que a referida violação represente igualmente um facto ilícito extracontratual. Não é pacífica a questão de saber qual das responsabilidades prevalece nem a de saber se é admitido o recurso a qualquer uma delas por parte do lesado. [] maioritariamente, a doutrina e jurisprudência têm entendido que gozando o lesado da tutela contratual e da tutela que deriva da responsabilidade extracontratual, poderá o mesmo optar pelo regime que lhe for mais favorável. — cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-06-2001, relator Pinto Monteiro, processo n.° 01A1008, publicado na base de dados do ITIJ com o endereço www.dgsi.pt.
Miguel Teixeira de Sousa refere que a responsabilidade civil médica é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais fl. Em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art. 483°, n° 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde). - in Sobre o Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica, Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, edição da AAFDUL, pág. 127 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011, relator Gregário Silva Jesus, processo n.° 209/06.3TVPRT.P1.S1 publicado na base de dados do ITIJ.
É conhecido o debate entre saber se neste tipo de contrato de prestação de serviços médicos surge para o prestador uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado.
A obrigação de meios existe quando o devedor apenas se compromete a desenvolver, de modo cuidado e diligente, uma determinada actividade com vista à obtenção de um certo efeito mas sem assegurar que este venha a ter lugar; diversamente, na obrigação de resultado, o devedor garante a produção de um determinado resultado em benefício da contraparte ou de terceiro.
O médico não está obrigado a determinado resultado material ou imaterial (a cura como evento incerto), mas deve desenvolver uma actividade profissional tecnicamente qualificada na escolha e utilização dos meios mais idóneos a conseguir a cura.
A presunção de culpa do devedor inadimplente estende-se ao cumprimento defeituoso (este ocorre sempre que haja desconformidade entre as prestações devidas e aquelas que foram efectivamente realizadas pelo prestador de serviços médicos) - cf. art. 799°, n.° 1 do C. Civil.
Assim, quem invoca tratamento defeituoso como fundamento de responsabilidade civil contratual tem de provar, além do prejuízo, a desconformidade (objectiva) entre os actos praticados e as leges artis, bem como o nexo de causalidade entre defeito e dano.
Feita esta prova, o médico só se exonera de responsabilidade, se provar que a desconformidade não é devida a culpa sua.
Assim, qualificando-se a obrigação contratual do médico interveniente num contrato de prestação de serviços médicos celebrado com o paciente como uma mera obrigação de meios (como, em regra, a doutrina e jurisprudência a vem qualificando, com excepção de determinadas actividades ou intervenções para as quais se exige um resultado certo, como próteses, análises clínicas, exames oftalmológicos, etc.), terá, necessariamente, de se pôr a cargo do doente, em termos de distribuição do ónus da prova entre médico e paciente, o ónus de alegar e demonstrar que o médico, ao realizar a sua prestação, incorreu num acto ilícito, consubstanciado aqui na inobservância das regras da arte (leges artis) prescritas pela ciência médica — cf. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra Editora, pág. 715.
De facto, estando em causa obrigações de meios, cabe ao credor [o paciente] demonstrar que o devedor [o médico] cumpriu defeituosamente a sua prestação, não empregando todos os meios, não praticando todos os actos normalmente necessários para a prossecução da finalidade da sua actuação. Essa demonstração supõe a alegação e a prova - a cargo do credor/lesado [o paciente] - da desconformidade objectiva entre a conduta adoptada pelo devedor [o médico] e as leis da arte e da ciência médica; ao devedor/lesante [o médico] apenas incumbe demonstrar a inexistência de culpa, alegando e provando que, naquelas circunstâncias concretas, não podia ou não devia ter agido de outra forma. - cf. Rui Torres Vouga, A Responsabilidade Médica, pág. 116, Centro de Estudos Judiciários, Responsabilidade Civil Profissional, disponível em http:/lwww.cej.mj.pt/ceyrecursos/ebooks/civil/eb_ResponsabilidadeProfissional.pdf.
Ora, é precisamente esta prova que a recorrente pretende inverter, ou seja, louvando-se no alegado facto de o recorrido não ter mantido um registo clínico da paciente devidamente preenchido, pretende fazer recair sobre ele a prova de que na sua actuação médica não violou as regras aplicáveis de acordo com o estado actual da medicina.
Parece estar sedimentada a inversão do ónus da prova em situações de documentação incompleta ou errada. Tendo o médico o dever de documentar toda a actividade clínica e terapêutica, se não cumprir tal dever ou não o cumprir correctamente, terá lugar uma inversão do ónus da prova a favor do paciente, desde que as dificuldades para esclarecer a matéria de facto não possam ser ultrapassadas por causa dessa falta de documentação - cf. André Dias Pereira, op. cit., pág. 784.
Na verdade, a prova documental assume especial relevância nos processos de responsabilidade médica atento o dever de documentação a que o profissional está sujeito e que existe independentemente de se estar ou não perante um contrato entre médico e paciente, dado que contende com os deveres acessórios de segurança a que as partes estão adstritas no contexto da tutela geral da personalidade.
Por outro lado, são as próprias regras da profissão de médico que impõem a manutenção de um registo do acompanhamento que é feito ao doente, desde consultas, exames, tratamentos e tudo aquilo que possa ser clinicamente relevante.
Nessa sede, a recorrente invocou o estatuído nos art.°s 39° e 40° do Regulamento de Deontologia Médica, aprovado pelo Regulamento n.° 707/2016, de 21-07, sendo que, tal como alerta o recorrido, este ainda não se encontrava em vigor à data dos factos em discussão nestes autos, que tiveram lugar ao longo do ano de 2010.
Assim, para efeitos de delimitação do dever de documentação que impendia sobre o aqui recorrido há que lançar mão do Código Deontológico dos Médicos aprovado pelo Regulamento n.° 14/2009, de 13-01, sendo certo que, ao contrário do sustentado por aquele, não se afigura que, nessa parte, contenha normas essencialmente diversas das que hoje se encontram vertidas no art. 40° do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Regulamento n.° 707/2016, de 21-07.
Com efeito, e no aqui releva, o art. 100° do Código Deontológico aprovado pelo Regulamento n.° 14/2009, de 13-01 dispõe:
1 — O médico, seja qual for o enquadramento da sua acção profissional, deve registar cuidadosamente os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando -os ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo médico.
2 — A ficha clínica é o registo dos dados clínicos do doente e tem como finalidade a memória futura e a comunicação entre os profissionais que tratam ou virão a tratar o doente. Deve, por isso, ser suficientemente clara e detalhada para cumprir a sua finalidade.
O processo clínico é, em primeira linha, utilizado pelo médico que segue o paciente e por qualquer outro interveniente que venha a acompanhá-lo e que beneficiará desta documentação, de modo que assim se reduz os riscos de erro e as falhas de comunicação.
Este dever do médico de registar as observações clínicas efectuadas no paciente não visa directamente facilitar a prova em casos de responsabilização por danos ocorridos, mas não deixará de constituir uma vantagem para esse efeito, pois que perante uma discordância ou conflito entre as partes, a documentação reunida será fundamental para o esclarecimento de qualquer dúvida que possa surgir acerca da terapêutica aplicada, tendo vantagens para o médico e para o paciente — cf. Bruna Maia Prinzo, A Prova da Responsabilidade Médica, 2017, pág. 81 in h t ip://reposi torio.ril.plibi Is trca m/10451/325481Ulfd134460 tese.pdf
O valor probatório da ficha clínica em processo civil corresponde ao previsto, em geral, para os documentos particulares simples, pelo que à ficha clínica assinada pelo médico, cuja autoria por este seja reconhecida, é atribuída a força probatória plena relativamente às declarações por ele emitidas (cf. art.°s 374°, n.° 1 e 376° do C. Civil); nos restantes casos, ou seja, declarações não assinadas, que não sejam do seu autor, o médico, ou cuja autoria este não reconheça, são livremente apreciadas pelo juiz.
No contexto de acções de responsabilidade civil por má prática médica, como é o caso, a partir do processo clínico do paciente o Tribunal poderá compreender todos os actos executados pelo médico e qual o raciocínio por este concretizado, de modo a averiguar pela existência ou não de negligência nas suas acções (sendo que à obrigação de manutenção de tais documentos e prestação de informação sobre eles serão também aplicáveis as regras decorrentes dos art.°s 573° e 575° do C. Civil).
Não sobram dúvidas, assim, que se o paciente pretender juntar, no âmbito de um processo judicial, a ficha clínica que lhe diz respeito de modo a servir de prova ou de objecto de perícia, o médico depositário deve acatar esse desiderato, pois estará em causa o seu direito de acção e de acesso à justiça, que não carece de ser exercido através de médico, considerando-se ainda, como acima referido, o dever de cooperação das partes na busca da verdade, vertido no art. 417° do CPC — cf. André Dias Pereira, op. cit., pág. 615.
A não apresentação do processo clínico pelo médico terá as consequências previstas no artigo 430.° ex vi 417.°, n.° 2 do CPC, designadamente, a condenação em multa e a livre apreciação pelo tribunal desta recusa, e ainda, havendo lugar a tal mecanismo, à inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.°, n.° 2 do C. Civil.
Contudo, no que a esta última diz respeito, e em consonância com o acima expendido, tal apenas sucederá caso a falta de apresentação da ficha clínica ou, acrescenta-se, a sua inexistência, tenha tornado a prova culposamente impossível ao paciente ou a tenha tornado particularmente difícil.
Cabendo ao médico o dever de guarda e preservação do registo clínico, em casos de destruição ou desaparecimento, demonstrada a intencionalidade ou a falta de cuidado do médico determinante dessa perda e ainda a impossibilidade de prova, tal poderá conduzir, de facto a essa inversão de prova.
Todavia, os elementos plasmados nos presentes autos não permitem operar a pretendida inversão de prova.
A recorrente baseia-se nas considerações tecidas nos dois pareceres médicos juntos aos autos para sustentar que o recorrido violou o dever de manter um registo clínico claro e detalhado, com aposição das observações clínicas que lhe efectuou enquanto sua paciente, o que, impedindo-lhe a prova do incumprimento ou cumprimento defeituoso da sua obrigação, deveria determinar a inversão de prova.
Ora, em primeiro lugar, os autos não permitem afirmar que o recorrido não manteve, conforme legalmente se lhe impunha, um registo clínico claro e suficiente das observações que efectuou.
Na verdade, o que se refere no relatório subscrito pelo Dr. A..., especialista em Ginecologia e Obstetrícia, com o grau de Consultor, responsável da Unidade de Uroginecologia do Hospital de Santa Maria (cf. documento 12 junto com a petição inicial - fls. 32 verso a 57 dos autos) é o seguinte:
o Quanto à cirurgia de histerectomia vaginal + TVT - 17 de Fevereiro de 2010: Não
constam do processo entregue para perícia nenhum protocolo/descrição operatória nem exames de imagem prévios nem realizados após a cirurgia. Existe uma referência no processo de enfermagem que a doente se deslocou ao exterior para realização de ecografia a 22 de Fevereiro, mas não existe nem relatório nem nenhuma referência a nenhum resultado. Do mesmo processo não consta nenhum registo em folha de observação clínica realizada durante o internamento.;
o Quanto à Cirurgia Plastia do esfíncter - 1 de Junho de 2010: [...] não consta do processo entregue para perícia nenhum protocolo/descrição operatória nem exames complementares. O tipo de intervenção também não está especificado sendo a referência a plastia do esfíncter e TVT o que consta numa das folhas de anestesia. Do mesmo processo não consta nenhum registo em folha de observação clínica realizada durante o internamento.;
o Quanto ao Internamento: Queixas renais e polaquiúria - 10 de Junho de 2010: No processo não consta nenhum registo em folha de observação clínica realizada durante o internamento. No diário de enfermagem e na prescrição medicamentosa consta a administração de soros e antibiótico endovenoso [...] Existe uma referência no processo de enfermagem de um pedido para realização de ecografia na segunda-feira, mas não existe nem relatório nem nenhuma referência à sua efectivação.
o Quanto à cirurgia: plastia vaginal - 15 de Dezembro de 2010 - Do processo enviado para análise só consta a folha de diário de Internamento com registo de admissão pós-anestésica e registo de alta a 17 de Dezembro [...]
o Em sede de Resumo e conclusões da peritagem consta: O processo e os dados fornecidos são muito imprecisos, vagos e inespecíficos; nos processos de internamento faltam dados fundamentais e essenciais, nomeadamente o diagnóstico preciso, as intervenções realizadas, as próteses colocadas e o registo de complicações. Não me parecem registos adequados quer à natureza dos procedimentos quer ao grau de complicações que alegadamente ocorreram.
Cumpre notar que este parecer não foi requerido ou realizado no âmbito dos presentes autos. Trata-se de parecer solicitado pelo DIAP, 6ª secção, por referência ao processo NUIPC ... originado por queixa da autora, conforme se afere do ponto 1. da matéria de facto provada.
As menções efectuadas pelo perito que subscreveu tal parecer reportam-se, como se retira do seu teor, aos elementos que lhe foram facultados para análise e emissão de parecer. Ou seja, desconhece-se, nem tal foi alegado, quais os elementos solicitados pela entidade requisitante do parecer e quais os que foram ou não facultados. O facto de entre os elementos facultados ao senhor perito não figurar o protocolo/ descrição operatória nem exames de imagem prévios ou realizados após a cirurgia, nem registo em folha de observação clínica realizada durante os internamentos ou concretização das intervenções realizadas, não permite afirmar que tais elementos não existam.
Não há notícia de que tais registos tenham sido solicitados seja ao próprio médico, aqui recorrido, seja ao estabelecimento hospitalar onde as intervenções cirúrgicas/internamentos tiveram lugar. Por sua vez, também não é referido em tal parecer que o próprio perito tenha solicitado tais elementos e que estes não lhe tenham sido facultados.
De igual modo, no parecer emitido pelo Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP, subscrito pela Prof.ª Doutora Maria MF... (cf. documento 14 junto com a petição inicial - fls. 58 verso a 60), também solicitado no âmbito do processo NUIPC ..., consta o seguinte:
o Foi internada no Hospital Particular de Lisboa no dia 17-02-2010 e nesse mesmo dia submetida a cirurgia da qual não consta nenhum registo médico efectuado pela equipa cirúrgica.
o Segundo o diário de enfermagem a doente foi fazer ecografia pélvica ao exterior, ao consultório do cirurgião, e voltou para o internamento sem existir qualquer documento, imagem ou registo referente a essa ecografia.
o No dia 1-06-2010 a doente é novamente internada no Hospital Particular de Lisboa, não constando nenhum registo médico referente a este internamento.
o No dia 10-06-2010 a doente foi internada pela 3ª vez, no Hospital Particular de Lisboa, não constando nenhum registo clínico efectuado por médico.
o Em 15-12-2010 a doente é internada no Hospital dos Lusíadas, sempre sob a responsabilidade do mesmo cirurgião e, também aqui, não constam registos médicos excepto o Protocolo de Intervenção Cirúrgica com a descrição operatória Plastia anterior e posterior [...]
Tal como sucede no anterior, não há qualquer referência sobre se tais elementos foram solicitados à entidade requisitante, se esta os solicitou ao médico ou estabelecimento hospitalar, não tendo sido facultados.
Dizer-se que não consta dos elementos para análise os elementos mencionados não significa, de modo imediato, que não existam. Terão os responsáveis pela emissão do parecer solicitado os elementos em falta? Desconhece-se, nem tal é referido seja nos relatórios elaborados, seja nos articulados da presente acção.
Cumpre notar que, no âmbito da perícia realizada em processo penal, se os peritos carecerem de quaisquer esclarecimentos, devem solicitar que estes lhe sejam fornecidos, devendo ter acesso a quaisquer actos ou documentos do processo (cf. art. 156°, n.° 3 do Código de Processo Penal).
Não se afere nenhuma actividade nesse sentido.
Assim, não basta a referência a ausência no processo remetido aos senhores peritos para análise de elementos que deveriam integrar o processo clínico da paciente para se concluir que eles desapareceram, foram destruídos ou nunca existiram.
Por outro lado, não se pode deixar de considerar que os presentes autos não fornecem o histórico clínico integrado e sequencial relativo ao diagnóstico, tratamento, intervenções cirúrgicas e internamentos a que a recorrente foi sujeita desde que compareceu no consultório do aqui recorrido.
Certo é que, conforme este refere, existem nos autos registos clínicos pontuais quais sejam:
ü o relatório por si elaborado, com data de 14 de Abril de 2011, relativo à intervenção realizada em 15-12-2010 (documento 20 junto com a petição inicial - fls. 65);
ü o relatório atinente à ressonância magnética realizada à paciente em 29-11-2010, subscrito pela Dr.a S... (documento 21 junto com a petição inicial - fls. 65 verso);
ü o relatório clínico subscrito pelo Dr. AA... relativo ao acompanhamento médico que este prestou à recorrente desde 17-06-2011 (documento 22 junto com a petição inicial - fls. 66);
ü o diário de internamento (15-12-2010) (documento junto com a petição inicial - fls. 137);
ü o protocolo de intervenção cirúrgica (15-12-2010) (documento junto com a petição inicial - fls. 137 verso e 138);
ü o controlo de administração medicamentosa de Fevereiro e Junho de 2010 e registo de consulta externa desta data (documentos juntos com a petição inicial - fls. 143 e 138 verso e 139);
ü o relatório clínico subscrito pelo recorrido, com data de 25 de Novembro de 2010 que descreve a actividade médica por si praticada relativamente a esta paciente desde 17¬02-2010 até àquela data (documento junto com a contestação, sem indicação numérica -fls. 175 verso e 176);
ü a proposta cirúrgica de 9-12-2010 (documento junto com a contestação, sem indicação numérica - fls. 177 verso);
ü o histórico da doença que consta de documento preenchido manualmente (documento junto com a contestação, sem indicação numérica - fls. 178).
Ainda que não exista um processo clínico organizado e cabalmente detalhado de todas as intervenções cirúrgicas a que a recorrente foi submetida, com participação ou sob direcção do aqui recorrido, certo é que também não é possível afirmar que tal registo tenha desaparecido, não tenha sido facultado por este último ou nunca tenha existido.
Na verdade, compulsados os autos verifica-se que a própria autora/recorrente, em sede de requerimento probatório, não solicitou em momento algum a notificação do recorrido para
diligenciar pela sua junção aos autos ou a notificação do estabelecimento hospitalar para remeter cópia do processo clínico. Não o fez aquando da apresentação da petição inicial, nem posteriormente, em sede de audiência prévia (cf. fls. 19 verso e 20, 160 e 199 a 204).
Por sua vez, o Tribunal a quo não diligenciou também nesse sentido (cf. despachos proferidos em 3-05-2017 e 8-06-2017, a fls. 196 e 203 verso e 204 dos autos).
Não tendo o recorrido sido notificado para proceder à junção de registos clínicos que a parte ou o Tribunal tenham entendido relevantes para aferir de todo o histórico da paciente e conhecimento das técnicas utilizadas pelo recorrido e resultados obtidos, não se pode concluir por uma qualquer falta de cooperação do recorrido para a descoberta da verdade.
Por outro lado, também não está de modo algum demonstrado que o recorrido não tenha procedido ao registo das intervenções efectuadas, exames, evolução clínica e toda a informação médica que haja entendido relevante, em cumprimento das normas decorrentes do Código Deontológico então aplicável.
Aliás, todo esse histórico, ainda que de modo sintético, assemelha-se estar vertido no documento de fls. 178, onde foram registados os dados atinentes à história da doença e tratamentos efectuados, por referência à paciente J…, que, ainda que manuscritos em letra de difícil leitura e com abreviaturas cujo significado se apresenta subtraído a quem não esteja habituado ao jargão médico, certo é que permite constatar a patologia diagnosticada e intervenções cirúrgicas efectuadas.
Ora, a lei não determina exactamente qual o conteúdo específico do dever de documentação, cabendo ao médico em concreto, face à situação mais ou menos complexa do paciente, definir qual a informação que deverá constar na ficha clínica detalhadamente, qual a informação se bastará com uma sintética referência, e que informação deverá ser considerada irrelevante.
No entanto, tem-se como elementos-chave que devem, por regra, constar desse documento os seguintes: a identificação do paciente, a anamnese, o diagnóstico e métodos para tal utilizados, a informação prestada ao paciente, o seu consentimento ou dissentimento, a terapêutica utilizada (terapias, fármacos, dosagens, etc.), o registo da evolução do paciente, acontecimentos invulgares, inesperados, adversos ou arriscados, como por exemplo, pós-operatório — cf. Bruna Maia Prinzo, op. cit., pp. 84 e 85.
De notar ainda que não foi solicitada a junção de cópia legível do aludido documento, o que a recorrente poderia ter requerido, ao abrigo do estatuído no art. 441° do CPC.
Neste contexto, não se pode afirmar, por um lado, a inexistência de cabal preenchimento do registo clínico da paciente, aqui recorrente e, ainda que os registos devam ser tidos por insuficientes ou ocorra insuficiente documentação das intervenções, tratamentos, exames realizados, sempre se torna inviável afirmar positivamente uma conduta culposa, como exige o normativo vertido no n.° 2 do art. 344° do C. Civil, por parte do médico, isto é, um não preenchimento deliberado dos elementos relevantes ou sequer culposo, por falta da diligência exigível ao profissional em causa, face à escassez dos elementos objectivos que os autos fornecem.
Cumpre referir ainda que não é a mera circunstância de a parte não conseguir efectuar a prova que sobre si impendia que permite afirmar que a actuação da contraparte tornou impossível essa prova ou a tornou particularmente difícil. Necessário seria demonstrar que os elementos alegadamente em falta eram essenciais para a prova da actuação médica do recorrido.
Ora, a autora não estava impedida de utilizar qualquer outro meio de prova legalmente admitido, tanto mais que recorreu a prova testemunhal que lhe permitiu demonstrar o número de intervenções cirúrgicas realizadas e técnicas utilizadas, como ressalta da matéria de facto provada, pelo que, em rigor, nem se pode falar de um impedimento de realizar a prova pretendida.
Em suma, a situação vertida nos autos não permite imputar ao recorrido um comportamento que preencha os requisitos previstos no art. 417°, n.° 2 do CPC e no art. 344°, n.° 2 do C. Civil, pelo que na apreciação da prova produzida e matéria de facto impugnada, haverá que ter presente que incumbe à autora/ apelante - que expressamente invocou a responsabilidade civil contratual para fundamentar juridicamente a pretensão que trouxe a juízo (cf. artigo 155° da petição inicial) - demonstrar o incumprimento das leges artis por parte do demandado/recorrido.
Passa-se, assim, a apreciar a matéria de facto impugnada pelos recorrentes.
Matéria de facto que a recorrente entende que deveria ter sido dada como Não Provada
Ponto 71. da matéria de facto provada
Sob o ponto 71. do elenco dos factos provados o Tribunal a quo deu como provado o seguinte:
O réu, além da remoção do útero, corrigiu os três compartimentos, nomeadamente o problema da incontinência urinária ocultada pelo prolapso do compartimento anterior.
Sustenta a recorrente que o Tribunal de 1ª instância não fundamentou este facto, o que poderia consubstanciar uma nulidade da sentença por falta de fundamentação e que nenhuma prova foi efectuada quanto a tal matéria, desde logo porque no parecer do Dr. A... é referido que no processo de internamento faltam dados fundamentais e essenciais, nomeadamente, o diagnóstico, as intervenções realizadas e as próteses colocadas, pelo que na ausência de prova de tal facto não poderia este ser dado como provado.
O recorrido, por sua vez, sustenta que a fundamentação do referido facto foi efectuada no contexto da prova dos factos 68. e 69., aludindo ao diagnóstico efectuado pelo Dr. B… e à intervenção realizada pelo recorrido, conforme este confirmou em audiência de julgamento; mais refere que esse facto resulta também do conteúdo do documento 2 junto com a contestação.
A este propósito, depois de ter fundamentado os factos dados como provados e que foram alegados pela autora (ou seja, emergentes da sua petição inicial), o Tribunal a quo consignou o seguinte:
No mais, apenas se deu como provada a matéria alegada pelo réu susceptível de melhor esclarecer o sucedido. Assim, e no que respeita ao facto 68, o diagnóstico realizado pelo réu foi confirmado pelo mesmo, sendo que, como consta do facto 69, a autora lhe foi indicada pelo Dr. B…, que já lhe havia diagnosticado prolapso do útero e bexiga, o que foi confirmado pelo próprio. A intervenção realizada foi confirmada pelo réu, e consistiu na correcção do prolapso uterino e da bexiga, isto é, correcção dos compartimentos pélvicos.
Não sobram dúvidas que ao aludir à intervenção efectuada pelo réu e por este descrita no âmbito das suas declarações de parte, o Tribunal está a reportar-se ao facto que deu como provado sob o ponto 71., pelo que não ocorre a aludida falta de fundamentação invocada pela recorrente.
Coisa distinta será aferir se a prova produzida permitia dar como provado tal facto.
O Tribunal a quo relevou, para esse efeito, as declarações de parte do réu/recorrido, Dr. AM..., cuja audição permitiu aferir que este disse que a autora, aqui recorrente, o procurou já com a indicação para ser operada (não para que emitisse uma outra opinião sobre a sua situação), vindo com o diagnóstico de prolapso urogenital com indicação para cirurgia, diagnóstico que confirmou; mais disse que efectuou, na primeira cirurgia, em 17 de Fevereiro de 2017, a histerectomia vaginal e colocação de prótese, ou seja, a aplicação de rede TVT, pois de acordo com o estudo urodinâmico efectuado à paciente em momento anterior à cirurgia, esta tinha uma bexiga hipocontráctil, ou seja, seria previsível uma incontinência urinária (o cistocelo, prolapso do compartimento anterior (bexiga), mascarava uma incontinência oculta), pelo que percebeu que tinha de corrigir o compartimento anterior.
Nos termos do art.° 466°, n.° 3 do CPC, o Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
O valor probatório a conferir às declarações de parte tem sido objecto de interpretações divergentes na doutrina e na jurisprudência, que conferem uma maior ou menor preponderância em função do momento em que são prestadas, da assistência ou não da parte à audiência de julgamento, da corroboração ou não dos factos que delas emergem por outros meios de prova.
Acompanha-se, neste aspecto, a posição do Prof. Miguel Teixeira de Sousa quando refere:
Não se ignora, corno é evidente, que a prova por declarações de parte merece uma especial ponderação pelo tribunal, dado que é a própria parle que depõe em juízo sobre factos que, em princípio, lhe são favoráveis. Isto é, no entanto, coisa completamente diferente de se entender que, à partida e independentemente de qualquer valoração específica em função das circunstâncias do caso concreto, a prova por declarações de parte não pode ter um valor probatório próprio. [...] a não atribuição de um valor probatório próprio à prova por declarações de parte é contraditória com a faculdade, resultante da conjugação do disposto no art. 466.°, n.° 2, CPC com o estabelecido no art. 452.°, n.° 1, CPC, de o juiz ordenar oficiosamente essa prova. Se o tribunal tem o poder de ouvir as partes sobre, por exemplo, um aspecto das negociações de um contrato, isso só pode querer significar que o tribunal tem o poder de avaliar, para efeitos probatórios, as declarações que as partes venham a produzir (ou mesmo, corno é claro, a declaração que só uma delas venha a produzir, pela recusa de depoimento ou por um depoimento evasivo da outra). Qualquer outra interpretação diminuiria a relevância ou retiraria mesmo qualquer justificação para os poderes oficiosos atribuídos ao tribunal pelos referidos preceitos. Do exposto resulta que nada justifica a desqualificação, à partida, do valor probatório da prova por declarações de parte. Esta prova tem o valor probatório que, em função do caso, for justificado atribuir segundo a prudente convicção do juiz. [...] Se é certo que se impõe apreciar a prova por declarações de parte sem ilusões ingénuas, também é verdade que não há que, à partida, desqualificar o valor probatório dessa prova. Em suma: a prova por declarações de parte tem, sem quaisquer apriorismos, o valor probatório que lhe deva ser reconhecido pela prudente convicção do juiz; nem mais, nem menos, pode ainda precisar-se. - cf. Para que serve afinal a prova por declarações de parte?, 25-05-2018, disponível em
htlps://blogippc.blogspot.condsearch?q=valora/prct.C3/prct.A7/prct.C3/prct.A3o+declara/prct.C3/prct.A 7/prct.C3/prct.B5es+parte.
No sentido de uma posição ampla e permissiva sobre a potencialidade das declarações de parte na formação da convicção do juiz pronuncia-se também, Luís Filipe Pires de Sousa, em As Declarações de Parte. Uma Síntese, pág. 33 e seguintes, disponível em
http: www.trl.mj.p t /PDF / As /prct.20d eclaracoes /prct.20de /prct.20parte. 9á 20 Uma /prct.20sin tese. /prct.202017.pdf, sustentando que a credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstractas pré-constituídas, sob pena de se esvaziar a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova.
Ainda de acordo com este autor, os critérios de valoração das declarações de parte hão-de coincidir essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Nada obsta, contudo, que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.
A audição das declarações de parte a que se procedeu, assim como de toda a demais prova testemunhal produzida, permite conferir que o Tribunal a quo se louvou, precisamente, no reconhecimento que a parte (recorrido) efectuou quanto ao tipo de intervenção cirúrgica que realizou no dia 17 de Fevereiro de 2017: histerectomia vaginal e aplicação de prótese.
Na verdade, tal como ficou consignado sob o ponto 5º da matéria de facto provada, os prolapsos genitais podem ser de diversos tipos: prolapso vaginal anterior (cistocele ou bexiga descaída); prolapso vaginal posterior (rectocele - o recto é o órgão envolvido); prolapso do compartimento médio (envolve os vários compartimentos e órgãos pélvicos - bexiga, intestino delgado e grosso -, podendo ser prolapso uterino ou prolapso da cúpula vaginal após histerectomia (enterocele); e prolapso rectal (por vezes confundido com patologia hemorroidária).
Ora, o declarante afirmou que efectuou a histerectomia vaginal e corrigiu o compartimento anterior. Ou seja, esclareceu que em face do estudo urodinâmico em cuja conclusão se verteu que a paciente possuía uma bexiga hipocontráctil e considerando que a existência do prolapso da bexiga significava que, em presença de esforço ou tosse, esta ocupava todo o espaço do compartimento anterior mascarando uma incontinência urinária (de que a autora então não se queixava), a colocação da rede visou, precisamente, evitar uma incontinência urinária.
Não se afigura que os autos forneçam elementos que retirem credibilidade às declarações da parte no que concerne à realização da histerectomia vaginal e correcção do compartimento anterior, e ainda aplicação da prótese TVT, sendo certo que aquela não fez qualquer alusão a correcção do compartimento posterior aquando da cirurgia realizada em 17 de Fevereiro de 2010, intervenção a que se reporta o facto descrito no ponto 71..
Aliás, que assim é, resulta também do depoimento da testemunha Dr. B..., médico ginecologista que observou a recorrente e a encaminhou para o aqui recorrido, que diagnosticou o prolapso urogenital e embora não tenha participado ou acompanhado a cirurgia efectuada por este último, referiu admitir que para além da histerectomia tenha sido colocada a prótese (fita) para prevenção da incontinência urinária face à presença de bexiga descaída (cistocele).
Também a testemunha Dr. V..., médico urologista, afirmou que a colocação da rede é para manter estável a mobilidade da uretra, consistindo numa prática profiláctica em relação a uma possível incontinência urinária.
Assim, é seguro que foi feito um diagnóstico de prolapso urogenital e que houve aplicação de prótese sub-uretral - tension-free vaginal tape - via trans-obturadora (TVT-O) (aliás, conforme vertido no relatório clínico elaborado pelo réu, com data de 25 de Novembro de 2010, que consta de fls. 175 verso e 176 dos autos).
Acresce que, a própria parte disse nas suas declarações que nas intervenções cirúrgicas anteriores a 15-12-2010 não se mexeu na posterior, sendo que o reforço do compartimento posterior (que inicialmente era o que menos grau de prolapso apresentava) ocorreu nesta última data, com a aplicação da prótese biológica.
Na cirurgia efectuada em 15-12-2010 teve lugar, efectivamente, a colocação de uma prótese biológica pélvi-soft no espaço rectovaginal. Como tal, depreende-se que a correcção do compartimento posterior terá tido lugar nessa data e não em 17-02-2010.
Esta situação foi descrita pela própria parte e confirmada pelo depoimento da testemunha Dr. P..., médico, que colaborou precisamente nessa intervenção cirúrgica (tal como se afere também do documento de fls. 137 verso - protocolo de intervenção cirúrgica referente à cirurgia de 15-12-2010) e do relatório do próprio réu, elaborado em 14 de Abril de 2011, que consta de fls. 65, onde se refere a aplicação de prótese biológica pélvi-soft via transperineal via cutânea no septo recto vaginal sem intervenção na vagina, para correcção dos defeitos para rectal e fraqueza do suporte fascial lateral e correcção do ligeiro retocelo.
Assim, em face da própria admissão do réu/recorrido, dos depoimentos das testemunhas indicadas e dos documentos existentes nos autos, está demonstrado o tipo de intervenção cirúrgica realizada pelo réu na paciente em 17-02-2010.
Contudo, impõe-se corrigir a redacção do ponto 71º da matéria de facto de modo a que resulte clara a extensão dessa intervenção, porquanto os autos não revelam que tenha existido, em 17-02-2017, uma correcção do compartimento posterior, assim como se impõe esclarecer que a colocação da prótese visou prevenir uma incontinência urinária que antes da operação ainda não havia sido detectada, nem de que a paciente se queixava.
Como tal, esta Relação decide alterar parcialmente o ponto 71º da matéria de facto provada do qual passa a constar o seguinte:
71. Em 17 de Fevereiro de 2010, o réu, além da remoção do útero, corrigiu pelo menos os compartimentos anterior e médio e colocou uma prótese sub-uretral - tension-free vaginal tape - via trans-obturadora (TVT-O), conforme referido em 25., como medida profiláctica para o problema de incontinência urinária ocultada pelo prolapso do compartimento anterior.
Ponto 72º da matéria de facto provada
Sob o ponto 72º o Tribunal a quo deu como provado o seguinte:
72. A autora apresentava um problema de incontinência urinária oculta, sendo imperativo para correcção da mesma a aplicação na autora de uma prótese TVT-O.
A recorrente entende que tal facto deve ser dado como não provado porquanto os registos clínicos das intervenções feitas pelo recorrido não revelam a existência de incontinência urinária oculta e sem a existência desses registos clínicos o Tribunal não poderia dar como provado tal facto, porquanto as testemunhas Dr. B... e Dr. V... não participaram nessas cirurgias; mais refere que na folha de anestesia tanto se refere HV + TOT como HV + TVT, que são aplicações diferentes.
O recorrido opõe-se referindo, precisamente, que a testemunha Dr. V... esclareceu a existência de incontinência urinária oculta, assim como a testemunha Dr. B... referiu que os prolapsos podem esconder situações de incontinência urinária; também o réu confirmou que mandou fazer um estudo urodinâmico e verificou que ela tinha uma bexiga hipocontráctil, que mascarava uma incontinência que ela tinha e que não sabia que a tinha; este dado também foi referido no relatório clínico que consta de fls. 175 verso e 176.
Quanto ao ponto 72º, a senhora juíza a quo fundamentou-o nos seguintes termos: O facto 72 foi confirmado não só pelo réu, como também pelo Dr. B... e Dr. V....
Relativamente a este ponto 72º importa considerar dois aspectos: a existência do problema de incontinência urinária oculta e a necessidade da aplicação da prótese.
No que ao primeiro aspecto diz respeito a recorrente afirma que nenhum registo clínico refere a existência da incontinência urinária oculta, pelo que o facto não podia ser dado como provado.
Ora, há que ter presente, desde logo, uma evidência para a qual a testemunha Dr. AA... alertou dizendo: uma incontinência urinária oculta significa que previamente à cirurgia não foi diagnosticada, como o próprio nome indica.
Precisamente porque a paciente não apresenta queixas, não refere a incontinência nem esta é relatada, não pode no diagnóstico efectuado ser mencionada a sua existência. Como referiu aquela testemunha, é uma incontinência associada a prolapsos que apenas se consegue individualizar na cirurgia.
Importa realçar que antes da cirurgia o réu/recorrido solicitou um estudo urodinâmico que veio a ser realizado pela testemunha Dr. Vítor V... e consta de fls. 48 verso a 52 dos autos, onde os parâmetros aferidos permitiram a conclusão pela presença de uma bexiga normorreflexa (ou seja, conforme explicado pela testemunha, não tem contracções antes ou durante o enchimento, nem revela hiperactividade) e hipocontráctil (pouca força de contracção).
Indagada esta testemunha se esta conclusão é o inverso da existente numa pessoa incontinente, respondeu que este exame serve para fornecer informações sobre a «personalidade» da bexiga, através da medição da pressão com o fluxo a correr com uma algália, obtendo-se um valor de laboratório que serve de comparação; mais disse que a pressão uretral não significa que seja incontinente, é apenas um factor.
Aliás, num depoimento francamente esclarecedor, o Dr. V... refere que perante uma paciente a quem se pergunta: Perde urina? e responde: Não; Nem quando faz esforços? - Não; Não tem vontades súbitas- Não, a conclusão seria: não é incontinente. No entanto, faz o exame e detecta anomalias. Isto significa que é potencialmente incontinente.
Ou seja, o exame urodinâmico serve para o médico/cirurgião prever e conhecer a doente que tem à sua frente.
Neste caso, com este resultado, a testemunha referiu que está perante uma doente com indicação para histerectomia e a quem tem de se avisar que pode ficar incontinente por força dessa intervenção e que se se optar por prevenir, tem de avisar que irá colocar a rede para impedir a hipermobilidade da uretra, o que constitui também um risco. Ou seja, a colocação da fita é profiláctica, para evitar uma possível incontinência que pode surgir depois de se retirar o útero; é uma prática profiláctica.
No sentido da presença de uma incontinência urinária oculta depõe ainda o parecer subscrito pelo Dr. A... que refere:
Após as correcções de prolapso, sejam elas clássicas sejam associadas a rede, surge muitas vezes uma incontinência urinária que estava mascarada pela existência do próprio prolapso -incontinência oculta. Esta incontinência pode ser detectada previamente ou durante a cirurgia sendo uma das abordagens mais frequentes a verificação intra-operatória de perdas urinárias com a subsequente colocação de rede periuretral no mesmo tempo operatório. Este procedimento, que foi realizado neste caso, evita uma cirurgia posterior em cerca de 30-40/prct. dos casos operados, obviando a nova anestesia e intervenção cirúrgica. No meu parecer é a intervenção mais adequada devendo a doente ser avisada para esta eventualidade infra-operatória, de forma a consentir previamente a este segundo procedimento. (cf. documento de fls. 32 verso a 57 dos autos).
De notar ainda que a testemunha Dr.a AN..., médica anestesista que participou na intervenção de 17-02-2010, deu conta da perda de urina intra-operatória (aliás, mencionada na folha de anestesia que consta a fls. 146 verso e 147 dos autos), confirmando também, desse modo, a adequação do procedimento adoptado.
Da conjugação destes elementos probatórios com as declarações prestadas pelo próprio réu há que concluir pela justeza da afirmação efectuada pelo Tribunal a quo na primeira parte do ponto 72º, onde consignou a existência de uma incontinência urinária oculta.
Quanto ao segundo aspecto a que acima se aludiu e relativo à afirmada imperatividade do procedimento adoptado, crê-se não ser de acompanhar o juízo fáctico vertido na segunda parte do ponto 72º.
Com efeito, tal como referiu a testemunha Dr. AA..., nas situações de grandes prolapsos há sempre divergências entre os cirurgiões: há os que colocam sempre a fita; outros não colocam fita nenhuma e esperam que a fibrose da cirurgia possa tratar a incontinência que exista; e há outros médicos que operam a senhora e no final, se a incontinência for evidentíssima, então, será de bom senso colocar a fita.
Neste sentido, resulta já do acima referido que as testemunhas médicas inquiridas configuraram a colocação da prótese TVT-O como um procedimento de prevenção, o que também foi afirmado pela testemunha Dr. B..., que disse que perante uma bexiga descaída coloca-se a fita para prevenção.
No entanto, não se trata de um procedimento imperativo porque dependerá não só da situação concreta da paciente mas também do próprio entendimento do cirurgião, tal como referiu a testemunha Dr. AA....
Assim, quanto a este aspecto, cumpre corrigir a redacção do ponto 72º para que corresponda àquilo que resulta da prova produzida, o que se faz do seguinte modo:
72º A autora apresentava um problema de incontinência urinária oculta, sendo prática profiláctica adequada a aplicação de uma prótese TVT-O.
Ponto 73º da matéria de facto provada
Sob o ponto 73º o Tribunal a quo deu como provado o seguinte:
Todas as complicações que se seguiram à realização da operação são típicas e passíveis de se verificarem num pós-operatório deste tipo.
A recorrente entende que este ponto configura matéria conclusiva e não um qualquer facto, sendo que para dar como provado um facto seria necessário demonstrar os órgãos em que houve intervenção e as consequências que se consideraram como típicas e previsíveis; ainda que pudesse ser tido como um facto, é necessário considerar que no relatório pericial se afirmou que a doente apresentou uma anemia aguda que é uma complicação rara, que ocorre em menos de 5/prct. das histerectomias vaginais por prolapso, pelo que nunca poderia ser referida como típica, logo o ponto deve ser dado como não provado.
O recorrido contrapôs que neste ponto o Tribunal se refere ao hematoma que a recorrente sofreu e causou a baixa de hemoglobina, sendo que foi dito pela testemunha Dr. V... que o hematoma não pode ser considerado como resultando de uma má prática e, por outro lado, do relatório pericial (documento 12 junto com a petição inicial), consta que a anemia foi diagnosticada no pós-operatório e adequadamente corrigida, pelo que o ponto 73º deve manter-se inalterado.
O Tribunal a quo fundamentou este facto do seguinte modo:
No que respeita às complicações pós-operatórias sofridas, designadamente, o hematoma e retenção urinária, as testemunhas médicos ouvidas foram unânimes quanto à possibilidade de tais ocorrências. Se não é possível concluir que se trate de complicação muito frequente, são pelo menos típicas e susceptíveis de acontecer num pós-operatório deste tipo. Aliás, foi mencionado também pelo Sr. Dr. V... e pelo Sr. Dr. AA... que é possível acontecer retenção urinária após colocação de fita TVT, e haver necessidade de voltar a intervir para aliviar a tensão da mesma.
Atento o estatuído no art.° 607°, n.° 4 do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados.
O art. 646.°, n.° 4 do CPC de 1961 estabelecia o seguinte: Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito [...1.
No CPC vigente desapareceu a separação que existia no CPC de 1961 ao nível da 1a instância entre o julgamento da matéria de facto (pelo tribunal colectivo) e o julgamento da matéria de direito (pelo juiz da causa).
A propósito do julgamento e dos designados factos conclusivos refere o Prof. Miguel Teixeira de Sousa o seguinte:
Lembre-se, a este propósito, que, enquanto no CPC/1961 se seleccionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.° CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra.
Sob pena de se cair num inaceitável formalismo, não pode constituir motivo de censura que o tribunal, depois de considerar provados determinados factos que consubstanciam a violação de deveres de cuidado, conclua que está demonstrada a negligência da parte. Estranho seria, aliás, que, constando dos temas da prova a actuação negligente da parte e, por isso, carecendo esta actuação de prova, o tribunal, ao analisar a prova produzida sobre esse tema, pudesse dizer tudo o que achasse adequado ao julgamento dessa matéria, excepto que está provada a negligência da parte.
Cabe ainda referir que, realizando-se a prova da negligência através de factos probatórios ou instrumentais (cf. art. 5.°, n.° 2, al. a), CPC), o tribunal não pode deixar de inferir a negligência do facto probatório, ou seja, não pode deixar de utilizar esse facto probatório como base de uma presunção judicial e verificar se desse facto decorre aquela negligência. [...]
A chamada proibição dos factos conclusivos não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil [...]
A referida proibição dos factos conclusivos também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objecto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto. - cf. Jurisprudência (784) - Matéria de facto; julgamento; factos conclusivos, 5-02-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2018/02/jurisprudencia-784.html.
Serve isto para dizer que nada obsta a que o Tribunal a quo tenha vertido em facto provado a conclusão que retirou da prova produzida sobre a previsibilidade ou frequência com que determinadas ocorrências subsequentes à cirurgia de histerectomia vaginal com colocação de prótese TVT-O têm lugar.
Todavia, face à profusão de complicações que foram sendo vertidas nos diversos pontos da enunciação da matéria de facto provada impunha-se especificar quais, de entre as verificadas, ou se todas, são tidas como complicações típicas do tipo de intervenção cirúrgica em causa.
Da fundamentação efectuada pela senhora juíza a quo retira-se que o Tribunal terá chegado a tal conclusão quanto ao hematoma e retenção urinária relatados nos pontos 42º, 79º e 82º.
No entanto, para além do hematoma foi demonstrada uma anemia que determinou a necessidade de transfusão de sangue (cf. pontos 40., 41., 74.), que se afirmou ter sido causada pelo hematoma (cf. ponto 75.) e uma estenose da cúpula vaginal (cf. pontos 47., 48. e 51.), a que não se fez qualquer referência na fundamentação de facto.
Adiante-se, desde já, que a prova produzida é abundante para que se conclua no sentido de que a retenção urinária ou urgência de micção é uma complicação frequente, previsível e habitual subsequente a uma histerectomia vaginal com aplicação de prótese TVT-O.
Assim, atente-se nos depoimentos das seguintes testemunhas que relevam para tanto:
Dr. de B... - a colocação de prótese na bexiga implica urna determinada tensão com que a fita deve ficar; é uma intervenção delicada; é normal ficar com incontinência ou a reter demasiada urina; a tensão que a fita vai exercer também é influenciada pela absorção que os tecidos vão efectuar; se fizer refracção fará uma retenção;
Dr. AA... - A urgência miccional faz parte do quadro da incontinência urgente; acontece a 5 em 10 pessoas que colocam a prótese; a retenção urinária é uma consequência da colocação da fita; pode ser anatómica porque ficou com tensão a mais, ou da dor da própria cirurgia ou da própria capacidade e compatibilidade do músculo da bexiga. Estamos a mexer com a enervação autónoma; é independente da própria vontade do doente; sempre que fazemos cirurgia estamos a estragar alguma coisa; a tensão da fita depende essencialmente da experiência do cirurgião; quem coloca muitas fitas está muito próximo da tensão necessária, mas não há maneira de medir a tensão mais correcta, até porque os «territórios» nunca são iguais, as doentes são diferentes; é sempre muito subjectivo; a fita pode causar fenómeno obstrutivo porque a tensão exacta pode ser boa para 98 em 100 e para 2 não ser;
Dr. Vítor Hugo V... - a tensão da fita é puramente abstracta; se tem uma hipocontractibilidade significa pôr a fita um pouco mais larga, mas corre o risco de ficar incontinente; quem vai decidir é o cirurgião mas é um risco que o doente corre; com este exame não se sabe claramente qual a tensão, isso é abstracto; pode é dizer à doente que depois de operada não se espantaria que ficasse com retenção urinária; põe-se uma algália e espera-se; eu espero até 20 dias; se não resolver digo: vamos fazer segunda operação; ela não gosta e eu também não; em todas há o risco de segunda cirurgia, em todas as bexigas; o risco de haver retenção urinária existe em todas as doentes; se a bexiga for hipocontráctil o risco é então maior; a colocação da rede [...] é para manter estável e não haver alteração da mobilidade da uretra; [...] se não há folga para a uretra se mobilizar, se eu retiro a mobilidade toda, pode ter perda de urina; é o que é possível, é o que me pareceu; a medicina é isto, não é uma causa-efeito imediato;
Dr. P... - Há um acompanhamento. Todas as doentes que eu opero têm o meu telefone; acontece terem febre, retenção urinária, hematoma, ligam; podem ter infecção urinária; não conseguindo urinar o procedimento é tentar logo aliviar a prótese; [...] isto só funciona até 72 horas depois, porque se for depois já não é excesso de tensão, mas sim retracção [...] TVT significa tension-free vaginal tape - livre de tensão, tem de ser posta sem tensão; com o tempo ela aperta e por vezes aperta tanto que se tem de libertar; há um aperto inicial em que se faz libertação; [...] é muito difícil apertar uma rede: se apertamos muito fica com retenção; se não apertamos fica incontinente na mesma; a retenção urinária no pós-operatório pode ser paralisia da bexiga pós-operação (quando mexemos num órgão que se contrai ele fica paralisado durante algum tempo), a própria dor impede que urine bem e retrai-se e isso também leva à paralisia; [...] este é um problema de afinação [...] a experiência da pessoa é que leva a ficar melhor ou não.
Destes depoimentos afere-se a grande variabilidade ou incerteza atinente ao quantum da tensão com que a prótese TVT-0 deve ser colocada que, conforme foi consonante por parte destas testemunhas, depende sobremaneira do grau de experiência do cirurgião e da sua capacidade para percepcionar qual a tensão adequada para aquela doente em concreto.
Nos pareceres subscritos pelo Dr. A... e pela Prof.ª Dr.a MD… é também mencionado que as queixas de retenção urinária ou de urgência miccional são relativamente frequentes após as cirurgias correctivas do pavimento pélvico (cf. fls. 55 verso e 59 verso).
Evidente se torna também que a verificação de retenção urinária ou urgência de micção tem precisamente que ver com a colocação da prótese e respectiva eficácia, sendo, como referiu a testemunha Dr. V..., algo de abstracto, que não é possível quantificar ou indicar em concreto como deve ser efectuada a respectiva aplicação.
Nesta inevitável volubilidade torna-se frequente a ocorrência das complicações subsequentes à intervenção cirúrgica, designadamente, a retenção urinária e a urgência de micção.
No que ao hematoma diz respeito importa reter as seguintes referências das aludidas testemunhas:
Dr. B... - Quando se faz histerectomia vaginal [...] todos os vasos que irrigam o útero correm lateralmente e vão-se laqueando progressivamente até à retirada do útero; não é uma questão de cortar a vagina lateralmente, mas plano a plano ir fazendo a laqueação dos vasos e voltar a repor o estado anatómico normal; soube depois que tinha havido um hematoma; algum vaso pode ter ficado a sangrar [...] esta situação levou à formação do hematoma; ou não foi laqueado ou soltou-se alguma laqueação;
Dr. V... - O doente é operado, a laqueação supostamente leva a que não há mais hemorragias; mas pode acontecer no pós-operatório; o ponto abre e temos hemorragia;
são acontecimentos que acontecem: estou a cortar, desatou a sangrar, laqueei, fiz tudo bem; hemorragia; soltou-se?; não apertei bem? Acontece. É porque não fiz bem? Se se soltou é porque não dei três pontos? Até dei e soltou-se. Então devia dar quatro? É uma praxis que se aprende, faz-se de acordo com o modelo, mas pronto, não correu bem;
Dr. P... - É uma complicação da cirurgia; talvez uma das mais
frequentes da cirurgia vaginal [...] quanto mais competência e maior experiência, menor o número de hematomas; mas pode ser tudo bem feito e haver hematoma; o hematoma é uma complicação, temos de estudar a coagulação antes da cirurgia; se eu não estudei e fiz uma cirurgia normal, isso é má prática; eu só assisti a um hematoma pós-operatório, vigiei, resolveu; outra complicação foi a retenção urinária; também é muito frequente, mas não havendo má prática, é um azar.
Em corroboração da natureza previsível ou típica da hemorragia e subsequente
hematoma como decorrência deste tipo de cirurgia, consta da literatura médica junta aos autos tal referência (cf. documento de fls. 41): Existem complicações infra-operatórias: perfurações vesicais, hemorragias que requerem atitudes cirúrgicas correctivas adicionais, e complicações pós-operatórias: erosão, infecção da rede, infecções urinárias, dor com as relações sexuais, incontinência urinária de novo.
Assim, tal como considerado pelo Tribunal a quo a ocorrência de um hematoma subsequente à intervenção cirúrgica pode ser admitida, pelo menos, como uma complicação medianamente frequente neste tipo de cirurgia.
Ainda que tenha sido dado como provado que o hematoma (frequente neste tipo de cirurgia, respeitante a uma hemorragia de um pequeno vaso - cf. ponto 75º da matéria de facto) foi a causa da anemia diagnosticada, tal não significa, porém, que esta última, por si, possa ser tida como uma complicação frequente.
Nenhuma das testemunhas inquiridas o referiu, sendo certo que aludiram sempre à verificação de um hematoma que surgiu, muito provavelmente, por ter ocorrido uma hemorragia a partir de um pequeno vaso que, ou não foi bem laqueado ou, tendo-o sido, soltou-se, não tendo sido esclarecido se é usual suceder que essa hemorragia conduza a uma baixa de hemoglobina como a que ocorreu com esta paciente.
Ademais, no parecer de fls. 52 verso a 57 é referido que A doente apresentou uma anemia aguda tendo sido sujeita a transfusão sanguínea no pós-operatório imediato. É uma complicação rara, que ocorre em menos de 5/prct. das histerectomias vaginais por prolapso, sendo uma das causas o hematoma pélvico..
Relativamente à estenose da cúpula vaginal importa notar que foi referido que esta pode ter diversas causas:
Dr. Palma - Na menopausa pode ocorrer estenose espontânea, dependendo da atrofia que a mucosa vaginal sofre nesse período, pelo que pode nada ter que ver com as intervenções cirúrgicas; na situação da autora, a estenose provavelmente foi do hematoma que apareceu; [...] quando se origina um hematoma, desde que não haja sangramentos maiores depois, ele vai ser reabsorvido, o que pode originar na cúpula, fixada aos ligamentos laterais, o tecido de granulação de cicatrização; este tecido pode abranger o terço superior da vagina e então quase que cola;
Dr. AA... - É sempre difícil dizer a causa; existirão provavelmente várias causas para o processo; só a atrofia, por si, da menopausa pode originar o encurtamento por via de uma infecção que tenha passado despercebida e possa manifestar-se vários anos depois [...] e tem uma cirurgia por trás que pode ter contribuído para aquele encurtamento; a que muito provavelmente contribuiu terá sido a primeira; sempre que se faz uma histerectomia há um encurtamento da vagina; [...] sempre que se intervém cirurgicamente num território poderá, até pela histerectomia em si, sempre que há processos cicatriciais há alteração anatómica, na grande maioria não traz perturbação em termos funcionais; mas penso que a atrofia que havia ali terá sido por um processo infeccioso silencioso que passou; resultou de uma infecção, não é preciso cirurgia ou pontos, basta haver uma infecção e isso cola as duas paredes; [...] não acontece com todas as mulheres que fazem histerectomia; podia ser a infecção, a cirurgia, ou as duas coisas que levaram à estenose/ encurtamento; não havia pontos nenhuns naquela zona, ali não há pontos; estou a dizer que é uma complicação que pode acontecer, não é frequente, mas pode acontecer e vários factores contribuem; não digo à paciente que pode ficar mais curta; na realidade fica sempre mais curta porque há uma pequena amputação das paredes vaginais mas isso não interfere sob o ponto de vista funcional; no futuro nada disso interfere no dia-a-dia, na vida sexual;
Dr. Vítor Hugo V... - O hematoma pode ter situação de fibrose que pode levar ao estrangulamento alto da vagina, por absorção e fibrose local; pode ter sido a própria sutura do encerramento da vagina; é muito difícil dizer quais os factos que determinaram o acontecimento; [...] a minha opinião é o hematoma a causa mais presente por fibrose para a estenose da vagina; [...] o processo inflamatório preside em todas as situações em que o indivíduo intervém noutro; os passos não são constantes, são variáveis, e essa variabilidade é o doente que arrisca.
No relatório pericial elaborado pelo Dr. A... este refere que as sequelas anatómicas de que resultaram distorção e encurtamento da vagina estão relacionados com as intervenções e complicações descritas, mas dado que foram realizadas 3 diferentes intervenções, todas elas passíveis de alterar a anatomia vaginal, não me é possível a posteriori fizer qual o contributo relativo de cada uma para o resultado final.
Por sua vez, no parecer emitido pela Prof.ª Dr.ª MF... é referido: [...] a sinequia do 1/3 superior da vagina só foi diagnosticada em 31 de Março de 2011, quase 14 meses após a primeira cirurgia, em consulta efectuada no Hospital dos Lusíadas, não sendo possível afirmar qual a sua etiologia, dado que a doente foi submetida a três cirurgias por via vaginal até ao momento do diagnóstico.
Da conjugação dos depoimentos supra referidos e das análises periciais efectuadas não é lídimo afirmar que a estenose da cúpula vaginal pode ser entendida como uma complicação típica e frequente associada à intervenção cirúrgica a que a autora/recorrente foi submetida.
Neste contexto, impõe-se esclarecer o facto provado sob o ponto 73º da matéria de facto de modo a que sejam especificadas as complicações verificadas que devem ser tidas por típicas e frequentes de modo a não abranger aquelas outras que o não são.
Assim, esta Relação procede à alteração do ponto 73º nos seguintes termos:
73º A retenção urinária, a urgência miccional, a infecção urinária e a verificação de um
hematoma que se seguiram à realização da operação são complicações típicas e passíveis de se
verificarem num pós-operatório deste tipo.
Ponto 74º da matéria de facto provada
No ponto 74º o Tribunal a quo deu como provado o seguinte:
73. A primeira cirurgia correu sem intercorrências, 48 horas depois da mesma, o hematoma revelou
anemia com necessidade de correcção com transfusão.
Refere a recorrente nas suas alegações que o Tribunal de 1a instância baseou-se no depoimento das testemunhas Dr. AN... e Dr. P... mas estes apenas se pronunciaram sobre o hematoma que surgiu no pós-operatório e não sobre as intercorrências da primeira cirurgia, pelo que não tendo o recorrido elaborado os respectivos registos clínicos não poderia o Tribunal ter dado como provada a primeira parte do aludido ponto.
O recorrido, pelo contrário, sustenta que a Dr.a AN... referiu que não se recorda de nada de especial, porque nada de especial aconteceu, sendo que também o próprio, nas suas declarações, afirmou que a cirurgia correu sem intercorrências.
Quanto a este ponto o Tribunal fundamentou-o assim: O facto 74 e 75 foram confirmados pelo réu, Dr. AN..., e também o Dr. P..., que acompanhou a evolução do hematoma, por ecografia (....
Não tem razão a recorrente.
Independentemente da falta de junção aos autos do registo atinente à intervenção cirúrgica que teve lugar no dia 17 de Fevereiro de 2010, resultou amplamente demonstrado que esta foi executada sem intercorrências, ou seja, sem qualquer complicação digna de nota.
Neste ponto, a testemunha Dr.a AN... foi claramente assertiva ao referir não me recordo de nada de especial, é porque nada de especial ocorreu; esteve hemodinamicamente estável, tanto da minha parte como da parte da cirurgia; está registada a perda de urina e sangue infra-operatória (o que se confirma pela análise da folha de anestesia que consta a fls. 146 verso e 147); referiu que ficou bem, a intervenção correu bem, não houve perda de sangue significativa e esteve bem intra-operatoriamente.
Que nada de anormal ocorreu durante a cirurgia foi também referido pelo recorrido, em sede de declarações de parte, pois que afirmou que a cirurgia correu bem, não houve nenhum vaso a sangrar e fechou, vindo a surgir a complicação decorrente do hematoma apenas 48 horas depois.
Nenhum outro elemento probatório ressalta dos autos que permita infirmar o que foi referido por aquela testemunha e pelo próprio réu/recorrido, pelo que se deve manter o facto constante do ponto 74º no elenco dos factos provados, tal como considerado pelo Tribunal a quo.
Matéria de facto que a recorrente entende que deveria ter sido dada corno Provada
Artigo 75° da Petição Inicial
Alegou a autora/apelante neste artigo do seu articulado inicial o seguinte: Na operação de 15 de Dezembro de 2010, o réu retirou a prótese que tinha colocado em 17 de Fevereiro de 2010, por ter sido manifestamente errónea a sua colocação.
O Tribunal a quo deu como não provado esse facto justificando-o assim: [...1 resultou da prova produzida por declarações de parte e depoimento dos médicos ginecologistas ouvidos que a prótese não foi retirada (nem tal seria possível, dado que se trata de uma material que fica incorporado nos tecidos), mas sim alvo de nova libertação de tensão; ou seja, procedeu-se a corte e retirada de parte da prótese, mas não de toda a prótese; a colocação da prótese, ao contrário do alegado pela autora, era necessária para evitar incontinência urinária, resultado este que seria de esperar caso se procedesse a histerectomia sem mais.
A recorrente entende que é o próprio recorrido quem confessa o facto alegado no artigo 75° da petição inicial ao referir no documento 20 junto com a petição inicial que na cirurgia foi retirada a prótese de TVT-O; por sua vez, a testemunha Dr. P... referiu expressamente, ao contrário do afirmado pelo Tribunal, que era possível remover a prótese e que isso configurava uma má prática.
O recorrido convocou o depoimento da testemunha Dr. AA... para sustentar que a prótese não poderia ser retirada e o próprio recorrido afirmou que ao mencionar no seu relatório retirada da prótese referia-se ao alargamento da fita e não à sua retirada, pois esta estava unida com os tecidos.
Efectivamente, consta do relatório clínico subscrito pelo aqui recorrido com data de 14 de Abril de 2011 (cf. fls. 65) o seguinte: A Sr.a Dr.a J... foi submetida a intervenção cirúrgica no Hospital dos Lusíadas no dia 15 de Dezembro de 2010 [...] 1. Na cirurgia foi retirado a prótese de TVT.O (Trans-free Vaginal Tape via Obturador) e uretrolise com plastia por se verificar aperto da uretra e fixação retro púbica proximal com hipomobilidade uretral. [...].
Ora, o próprio recorrido esclareceu, de facto, que foi feita apenas a remoção de parte da prótese, não da prótese total.
Em consonância com o já acima transcrito quanto aos depoimentos dos médicos inquiridos em sede de audiência de julgamento, resulta claro que esta intervenção - colocação de prótese TVT-O - é uma intervenção cirúrgica delicada e cujo sucesso, na parte atinente à colocação da prótese, depende muito da sensibilidade do cirurgião e, sobretudo, da sua experiência.
A necessidade de aliviar a tensão é algo comum atenta a frequente verificação de uma tensão não exacta aquando da colocação da fita e que é impossível determinar objectivamente, seja antes, seja no momento da cirurgia.
Assim, como referiu a testemunha Dr. B..., acontece muitas vezes ser necessário relaxar a fita, pois que a tensão que esta exerce é também influenciada pela absorção que os tecidos vão efectuar, podendo causar uma retracção que produz uma maior retenção.
Também o Dr. AA... foi muito esclarecedor a tal propósito referindo que a fita/prótese é uma matriz que vai dar origem a um novo colagénio para suportar a uretra. Mais disse: ela vai embrenhar-se nos tecidos e depois já não se consegue a individualizar em relação a estes, porque está lá precisamente para com eles se misturar; a tensão da fita depende essencialmente da experiência do cirurgião; se houver necessidade de libertar a prótese, passadas que sejam mais de 72 horas, o que se pode fazer é retirar bocadinhos mas não a fita completa, porque esta vai sendo reabsorvida lentamente; nessa intervenção para libertar está em causa uma pequena porção que nem 1 cm tem, na parte encostada à uretra; quando se fala em libertar não se está a referir à prótese mas à uretra, que se liberta retirando a fibrose onde a rede está colocada, pelo que só neste sentido se pode compreender a alusão a retirada da prótese efectuada no relatório que consta de fls. 65.
É correcto que a testemunha Dr. P... afirmou ser possível retirar a rede completamente, o que, aliás, se imporá sempre que ocorra rejeição da prótese (seria, contudo, uma cirurgia longa e laboriosa, pois que a fita se imiscui nos tecidos sendo muito difícil distingui-la destes, e neste caso não se justificava de todo).
Ora, tal não sucedeu na intervenção ocorrida no dia 15-12-2010, em que aquela testemunha participou (cf. protocolo de intervenção cirúrgica que consta de fls. 137 verso dos autos). O que se fez foi uma extracção parcial de uma pequena porção da rede TVT-O, sendo totalmente desnecessário retirar toda a prótese, pois o que estava em causa era uma situação de tensão.
Por outro lado, a necessidade de libertar a uretra, como se extrai de tudo quanto se deixou acima consignado, não resultou de uma sua colocação errada por parte do recorrido. Está amplamente demonstrada a extrema variabilidade daquela que será a tensão adequada da fita para cada paciente em concreto, tudo dependendo da subjectividade e da experiência do cirurgião.
O facto alegado no artigo 75° da petição inicial deve manter-se, assim, nos factos não provados.
Artigo 950 da petição inicial
Alegou a autora/recorrente no artigo 95° que A «estenose da cúpula vaginal» foi decorrente da intervenção cirúrgica levada a cabo pelo réu., facto que o Tribunal de 1ª instância considerou não provado referindo o seguinte: não se provou o nexo causal entre as intervenções realizadas pelo réu e a estenose da cúpula vaginal, por total ausência de prova nesse sentido.
A recorrente invoca os factos provados sob os pontos 50. e 51., onde se refere que antes das operações tinha uma vagina normal, sem estenose da cúpula vaginal e afirma que depois, no ano de 2010, o único médico que a operou foi o recorrido, pelo que se após tais intervenções foi diagnosticada a sinequia vaginal, só se pode concluir que esta resultou dessas intervenções cirúrgicas, para além do que o réu não demonstrou que tal sequela não resultou de comportamento ilícito seu.
O recorrido, para afastar tal facto da matéria provada, baseia-se no depoimento da testemunha Dr. AA..., que disse ser difícil identificar a causa, que provavelmente existem várias causas para o encurtamento da vagina, podendo ter origem num processo infeccioso, não tendo a recorrente provado que teria resultado das intervenções cirúrgicas executadas por aquele.
Em consonância com o atrás expendido, não estando verificados os pressupostos para a inversão do ónus da prova e estando em causa a responsabilidade civil contratual do recorrido decorrente dos serviços médicos que prestou à recorrente por via do contrato que com ela celebrou para esse efeito, incumbia a esta, conforme acima explicitado, demonstrar que o médico, ao realizar a sua prestação, incorreu num acto ilícito, consubstanciado na inobservância das regras da arte. Para além disso, recai ainda sobre o paciente o ónus da prova dos danos e da causalidade (questão diversa será a culpa, distinta da ilicitude/incumprimento ou cumprimento defeituoso, enquanto juízo de censura interno ao agente que podia e devia ter agido de outra maneira, que se presume, nos termos do art. 799°, n.° 1 do C. Civil) - cf. André Dias Pereira, op. cit., pág. 702.
Neste caso, e relativamente, em concreto, à estenose da cúpula vaginal, não logrou a autora demonstrar que o recorrido não utilizou nas intervenções cirúrgicas que realizou a melhor técnica de acordo com o estado actual (à data) do conhecimento e da arte médica e que, por via disso, lhe causou aquela sequela.
Resulta do acima explanado que a técnica utilizada pelo recorrido, nomeadamente, na primeira intervenção cirúrgica, assim como a que teve lugar nas intervenções de 2-06-2010 e 15¬12-2010, foram adequadas aos diagnósticos que se aferiram (cf. relatório pericial de fls. 52 verso a 57 dos autos), sendo que o recorrido é, conforme foi referido pelas testemunhas inquiridas, seus colegas, um profissional com vasta experiência, percursor em Portugal da cirurgia de histerectomia vaginal.
Por outro lado, não se obteve qualquer prova segura quanto à etiologia da estenose da cúpula vaginal que veio a ser detectada à recorrente pelo menos em 17-06-2011 (cf. ponto 48. da matéria de facto provada).
Resulta dos depoimentos das testemunhas Dr. B…, Dr. AA... e Dr. V... e, bem assim, do teor do relatório pericial e parecer que constam dos autos, que diversos factores contribuem para a verificação dessa alteração, como a atrofia causada pela menopausa, uma infecção, o hematoma que a recorrente sofreu, a cicatrização da própria sutura e, sim, também as cirurgias a que foi sujeita, com os seus processos cicatriciais.
Nenhum dos inquiridos ou o perito e a especialista que se pronunciaram sobre a causa da aludida estenose conseguiram identificar a sua concreta origem, sendo provável que tenha sido uma conjugação de factores a causá-la.
Por outro lado, também não foi identificada uma qualquer prática incorrecta por parte do recorrido determinante da sinequia vaginal identificada.
Não obstante saber-se que a recorrente foi sujeita a três intervenções cirúrgicas com óbvia incidência sobre a zona pélvica e admitindo-se que os respectivos processos cicatriciais possam ter contribuído para o encurtamento vaginal que veio a ser detectado, certo é que aquela também se encontrava já então no período de menopausa, sofreu um infecção inerente ao hematoma que lhe veio a sobrevir, não sendo assim legítimo presumir que, se antes das operações tinha uma vagina normal e depois delas veio a detectar-se aquela estenose da cúpula vaginal, esta só pode ter sido consequência das cirurgias.
Os demais factores que podem ter intervindo nesse processo e que foram claramente mencionados pelas testemunhas afastam a viabilidade do recurso a tal presunção, impedindo a conclusão de que a estenose foi causada pelas cirurgias (a presunção consiste em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos); traduz-se e concretiza-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência (cf. art. 349° do C. Civil) — cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-01-2017, relator António Joaquim piçarra, processo n.° 841/12.6TBMGR.C1.S1 disponível em www.dgsi.pt).
O facto em referência deve pois manter-se na matéria de facto não provada.
Artigos 132º, 133° e 144° da petição inicial
Alegou a autora/recorrente o seguinte:
132° - A A. desde Fevereiro de 2010 não mais conseguiu ter relações sexuais.
133° - Toda esta situação levou a que o marido da A. se afastasse desta.
144° - Em consequência de todos os acontecimentos motivados pelas cirurgias praticadas pelo réu, o marido da autora saiu de casa acabando por pedir o divórcio por não se sentir totalmente realizado quanto à vida
conjugal que mantinha com a autora. (cf fls. 160 dos autos).
O Tribunal de 1ª instância considerou tais factos não provados e consignou que a prova produzida não permite concluir que a autora sofreu de síndrome depressivo grave e passou a receber acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, dado inexistir qualquer diagnóstico de tal doença, ou indicação de terapêutica medicamentosa ou psicológica. A prova produzida também não permite concluir que o divórcio da autora se deveu à factualidade alegada; apenas se sabe que a autora se divorciou.
Alega a recorrente que quando refere relações sexuais está a aludir à introdução de um pénis na vagina (cópula completa) e que tais factos devem ser dados como provados tendo em conta que no relatório (documento 12) consta que o impacto na função sexual do encurtamento vaginal é evidente; a Dr.ª M... referiu que não conseguiu fazer o toque porque a vagina estava com um septo, fechada, sendo impossível fazer uma vida sexual normal; mais disse que ao fim de um mês, por regra, as suas doentes, após uma intervenção deste tipo, estavam a fazer a sua vida normal; a testemunha G… referiu que o marido da autora começou a perder o interesse por ela, dizia que não lhe servia para nada; a testemunha O… confirmou que a recorrente lhe dizia que não conseguia ter relações sexuais; a testemunha MA… referiu que a autora se fechou muito, ficou muito deprimida, que se sentia menos mulher, que as coisas com o marido começaram a ser complicadas, havendo um afastamento da parte deste; a testemunha Dr.a I... disse também que a autora se queixou que tinha ficado incontinente, sujeita a fralda, deformada na zona genital, que já não era mulher, sentindo rejeição sexual, sendo manifesto o seu estado de profundo abatimento físico e psíquico.
Contrapôs o recorrido que a testemunha Dr. AA... disse que a vagina pode ficar mais curta e que fica sempre numa intervenção destas mas não interfere com a vida sexual; no parecer subscrito pela Dr.a MF... foi referido que a sinequia de 1/3 superior da vagina não é obrigatoriamente impeditiva de uma vida sexual regular; a prova produzida não é demonstrativa de que o divórcio teve algo que ver com as cirurgias a que a recorrente foi submetida, sendo as testemunhas indicadas amigas da recorrente, o que deve ser relevado na ponderação dos seus depoimentos.
Quanto ao facto alegado no artigo 132° da petição inicial importa ter presente que aquilo que se afirma é que desde Fevereiro de 2010 a autora não mais conseguiu ter relações sexuais.
Tal facto, com tal amplitude, não resultou claramente demonstrado.
No relatório pericial de fls. 52 verso a 57 menciona-se, efectivamente, como é realçado pela recorrente, que o encurtamento da vagina tem impacto na função sexual.
No entanto, importa notar, por um lado, que não ficou estabelecido o nexo causal entre as cirurgias efectuadas e o referido encurtamento, pois, como resulta do acima explanado, poderão ter sido vários os factores a determinar essa situação. Por outro, como foi referido pela testemunha M... e resulta evidente face ao tipo de intervenção em presença, as diversas cirurgias efectuadas terão interferido, durante determinados períodos com a função sexual normal da recorrente, o que é clarividente tendo em conta que qualquer intervenção cirúrgica carece de um período de recuperação.
Coisa diversa será afirmar-se que desde Janeiro de 2010 a recorrente nunca mais conseguiu manter relações sexuais. Esse facto não resultou demonstrado nem pode ser presumido ou afirmado pela circunstância de ter sido detectada na autora, em Junho de 2011, uma sinequia vaginal, na união do terço superior da vagina com os dois terços inferiores.
De notar que a testemunha Dr. AA... explicou que sempre que se faz uma histerectomia há um encurtamento da vagina porque há uma pequena amputação das paredes vaginais mas que não interfere sob o ponto de vista funcional. Esclareceu que a cirurgia determina um processo cicatricial que vai conduzir a uma alteração anatómica mas que na grande maioria dos casos não causa perturbação em termos funcionais.
Porém, neste caso, a apelante sofreu um processo aderencial que foi necessário desfazer. Tendo existido a necessidade de intervenção para cortar as aderências entre as áreas coladas e reposição do comprimento natural da vagina, poderá ter existido um determinado período, maior ou menor, em que à recorrente tenha sido inviável manter relações sexuais de cópula completa.
No entanto, este facto não resultou claro do conjunto da prova produzida.
À parte os depoimentos das testemunhas G..., O..., MA... e I..., amigas ou pessoas próximas da recorrente e que relataram o seu desgosto e queixas atinentes à deformação vaginal com que se teria confrontado e incapacidade de manter relações sexuais (e cuja valoração deve ser enquadrada, precisamente, enquanto relatos que se limitam a reproduzir as queixas daquela), não se encontram elementos objectivos bastantes para afirmar que a recorrente deixou de poder manter relações sexuais a partir de Fevereiro de 2010 e tão-pouco que o deixou de poder fazer num determinado período que não chegou a ser concretizado.
Acresce que está demonstrado que a recorrente realizou uma cirurgia, em 15-10-2012, para correcção da sinequia vaginal e construção de uma neovagina (cf. ponto 49. da matéria de facto), que terá conduzido ao resultado pretendido, ou seja, à reposição de um estado normal (ou pelo menos próximo deste) da vagina, resultado que, aliás, o Dr. AA..., afirmou que, segundo a sua percepção, terá conseguido atingir.
Por outro lado, no parecer que consta de fls. 58 verso a 60 dos autos é referido que a aludida sinequia do 1/3 superior da vagina não é obrigatoriamente impeditiva de uma vida sexual regular, subentendendo esta como relações sexuais vaginais, pois que o comprimento dos 2/3 inferiores ou proximais da vagina permeáveis ou livres de sinequia pode permitir ou não relações sexuais vaginais, podendo outros factores influenciar essa função.
Neste quadro probatório, andou bem o Tribunal a quo ao dar como não provada a matéria de facto vertida no artigo 132° da petição inicial.
No que concerne à repercussão dessa situação no matrimónio da recorrente, nenhuma prova cabal foi efectuada.
Na verdade, como se referiu, o depoimento das testemunhas, amigas da recorrente, cingem-se àquilo que lhes era transmitido pela própria. Ainda que tais queixas expressem e correspondam a um verdadeiro sofrimento, são, por si só, insusceptíveis de demonstrar que tenham sido as cirurgias e subsequentes complicações a razão do afastamento do marido e, por fim, do divórcio do casal.
Assim, mantém-se inalterado o juízo probatório efectuado pelo Tribunal de lª instância quanto ao vertido nos artigos 133° e 144° da petição inicial.
Matéria de facto desconsiderada pelo Tribunal a quo e que deveria ter sido dada corno provada
Com vista a demonstrar a verificação de má prática médica por parte do réu/recorrido, a recorrente entende que o Tribunal a quo deveria ler dado como provados os factos vertidos nos artigos 41°, 42°, 57°, 59°, 74°, 84°, 104°, 107°, 108°, 109°, 110°, 113°, 114° e 115° da petição inicial.
Em tais artigos do mencionado articulado consta o seguinte:
41
Do processo clínico da A., elaborado pelo R., não resulta qualquer referência aos órgãos que seriam intervencionados (Vide doc.13);
42°
Conforme resulta do Relatório Pericial efetuado à A., doc.12, fl.5, 1° parágrafo: A doente foi operada a um Prolapso Urogenital de grau II, não sendo explícito em nenhum documento o tipo de prolapso (complexo/ isolado/ complicado) e o órgão/ órgão envolvidos. Esse é um aspecto relevante dado o diferente envolvimento da bexiga, útero e recto nos diferentes prolapsos. De acordo com o órgão/ órgãos envolvidos, as queixas, a abordagem e as eventuais complicações ou efeitos secundários da cirurgia são diferentes.
57°
Ficando com a parte inferior do corpo, da cintura para baixo, completamente negro.
59°
Após a operação levada a cabo pelo arguido em 17/02/2010 a ofendida começou a ter dificuldades em urinar e a ter constantemente infecções urinárias.
74°
Por seu lado segundo o Relatório Médico, que lhe foi pedido, de 14/04/2011, o R. declarou que: 1. Na cirurgia foi retirado a prótese de TVT.O (Trans — free vaginal Tape via Obturador) e uretrolise com plastia por se verificar aperto da uretra e fixação retro pública proximal com hipomobilidade uretral. 2. Foi aplicado prótese biológica pelvi — soft de 4 X 7 cm (Bard) via transperineal via cutânea no septo recto vaginal sem intervenção na vagina para correcção dos defeitos para rectais e fraueza do suporte fascial lateral e correcção do ligeiro rectocelo como domonstra a Ressonãncia Magnética Pélvica de 29- NOV-2010 (anexa); (Vide doc.20)
84°
Sendo certo que, a FundDrug Adm. nistration (FDA) americana, em 2008, publicou uma nota na qual, em virtude da divulgação de diversos casos de complicações de cirurgias com telas nos Estados unidos, fazia recomendações aos médicos que se propunham a usá-las, tais como necessidade de treinamento adequado e a imprescindível elaboração de consentimento informado com a paciente antes do procedimento. in http : / /www.fda.gov/cdrh/ s a fety / 102008-surgicalme sh.html
104°
Este procedimento foi realizado com o apoio do médico Coordenador de Cirurgia Plástica e durou cerca de 6 meses, sempre com vigilância apertada em regime de consulta até ao desaparecimento total das queixas. (Vide doc.22)
107°
No âmbito do processo de inquérito n.° ... foram solicitadas peritagens médicas quer à A. quer a toda a documentação clínica (Vide docs. 12 e 14);
108°
Uma das Peritagens Médicas foi realizada pelo Dr. A..., médico no Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E., analisada cada uma das intervenções cirúrgicas realizadas pelo R. refere o relatório Pericial: 1. Cirurgia Histerectomia Vaginal + TVT Data: 17 de Fevereiro de 2010 Local: hospital Particular de Lisboa Cirurgião Responsável: Dr. AM... Intercorrências registadas: Anemia (6,8 gr/dl a 19 de Fevereiro) Não constam do processo entregue para perícia nenhum protocolo/descrição operatória nem exames de imagem prévios nem realizados após a cirurgia. Existe uma referência no processo de enfermagem que a doente se deslocou ao exterior para realização de ecografia a 22 de Fevereiro, mas não existe nem relatório nem nenhuma referência a nenhum resultado. Do mesmo processo não consta nenhum registo em folha de observação clínica realizada durante o internamento. 2. Cirurgia: Plastia do esfíncter Data: 01 de Junho de 2010 Local: Hospital Particular de Lisboa Cirurgião Responsável: Dr. AM... Mais uma vez, não consta no processo entregue para perícia nenhum protocolo/descrição operatória nem exames complementares. O tipo de intervenção também não está especificado sendo a referência a plastia do esfíncter e TVT o que consta numa das folhas de anestesia. Do mesmo processo não consta nenhum registo em folha de observação clínica realizada durante o internamento. A doente teve alta a 4 de Junho 3. Internamento: Queixas renais e Polaquiúria Data: 10 de Junho de 2010 Local: Hospital Particular de Lisboa Cirurgião Responsável: Dr. AM... Intercorrências registadas: medições dos débitos urinários No processo não consta nenhum registo em folha de observação clínica realizada durante o internamento. No diário de enfermagem e na prescrição medicamentosa conta a administração de soros e antibiótico endovenoso (Cetriaxone e Gentamicina) Existe uma referência no processo de enfermagem de um pedido para realização de ecografia na segunda-feira, mas não existe nem relatório nem nenhuma referência à sua efectivação. 4. Cirurgia: Plastia vaginal — Código Ordem dos Médicos 42.02.00.07 Colporrafia por ferida não obstétrica e 42.02.00.09 Colporrafia posterior por rectocelo Data: 15 de Dezembro de 2010 Local: Hospital dos Lusíadas Cirurgião responsável: Dr. AM... Do processo enviado para análise só consta a folha de diário de Internamento com registo de admissão pós-anestésica e registo de alta a 17 de Dezembro. (Vide doc. 12)
109°
Mas mais a Fls. 6 do relatório fez-se constar que: A doente foi operada a um Prolapso Urogenital de grau II, não sendo explícito cm nenhum documento o tipo prolapso (complexo/ isolado/ complicado) e o órgão/ órgãos envolvidos. Esse é um aspecto relevante dado o diferente envolvimento da bexiga, útero e recto nos diferentes prolapsos. De acordo com o órgão / órgãos envolvidos, as queixas, a abordagem e as eventuais complicações ou efeitos secundários da cirurgia são diferentes. (Vide doc.12)
110º
E mais à frente: As cirurgias foram realizadas por um dos ginecologistas com mais experiência cirúrgica nesta patologia, pioneiro de algumas cirurgias em Portugal e reconhecido pelos seus pares. Não se trata assim de um caso de treino escasso ou falta de competências técnica para a realização da cirurgia. (Vide doc.12)
113º
Ainda no âmbito do processo de inquérito n.° ... foi solicitado um parecer técnico-científico ao Conselho Médico legal, do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses I.P. (Vide doc. 14)
114º
Refere o parecer técnico científico: Dos factos - J..., atualmente com 67 anos de idade, foi submetida a 4 internamentos e 3 cirurgias na sequência de diagnóstico de prolapso uterino grau 2. Foi realizado um estudo urodinâmico em pré-operatório (29.12.2009) cuja conclusão é Bexiga normorreflexa e hipocontractil. Foi internada no Hospital Particular de Lisboa no dia 17.02.2010 e nesse mesmo dia submetida a cirurgia da qual não consta nenhum registo médico efetuado pela equipa cirúrgica. A folha de anestesia refere HV+TOT, a folha de UCPA refere HV+TVT e os registos de enfermagem quer perioperatórios, quer do internamento referem igualmente HV+TVT. Segundo os registos de enfermagem, no 2° dia de pós-operatório foi efetuado hemograma urgente, sem justificação registada, no qual consta Hemoglobina = 6,8 g/dl e a doente foi transfundida com 2 Unidades de Concentrado Eritrocitário. Segundo o diário de enfermagem a doente foi fazer ecografia pélvica ao exterior, ao consultório do cirurgião, e voltou para o internamento sem existir qualquer documento, imagem ou registo referente a essa ecografia. Teve alta, segundo o registo de enfermagem, no dia 23.02.2010. No dia 01.06.2010 a doente é novamente internada no Hospital Particular de Lisboa, não constando nenhum registo médico referente a este internamento. A doente terá sido submetida a cirurgia nesse dia, sendo que no registo de enfermagem consta Doente infernada para plastia do esfíncter e na folha de anestesia consta como se tendo tratado de TVT+Plastias. Teve alta, segundo o registo de enfermagem, no dia 04.06.2010. No dia 10.06.2010 a doente foi internada pela 3a vez no Hospital Particular de Lisboa, não constando nenhum registo clínico efetuado por médico. No processo de enfermagem está registada a administração de terapêutica antibiótica. A doente teve alta no dia 12.06.2010, segundo o registo de enfermagem. Em 15.12.2010 a doente é internada no Hospital dos Lusíadas, sempre sob a responsabilidade do mesmo cirurgião e, também aqui, não constam registos médicos exceto o Protocolo de Intervenção Cirúrgica com a descrição operatória Plastia anterior e posterior, constando os códigos da OM referentes a Colporrafia por ferida não obstétrica e Colporrafia posterior por retocelo. No diário de enfermagem está registada alta no dia 17.12.2010. De referir que antes do último internamento existe um relatório de Estudo Urodinâmico (29.11.2010) e um relatório de Ressonância Magnética Pélvica (29.11.2010). Foi efetuada uma consulta no Hospital dos Lusíadas no dia 31 .201 1 que evidenciou ...septo iatrogenico do 1/3 superior da vagina.... (Vide doc.14)
115°
No âmbito do processo de Inquérito o M.P. perguntou: Se do que consta dos autos se pode concluir que tenha havido qualquer prática menos correcta; na positiva, qual ou quais. Resposta: Dos registos clínicos não resulta a informação necessária para respondermos a este quesito, muito embora a omissão dos registos constitua em si uma má prática. (Vide doc.14)
Quanto aos artigos 41°, 42°, 74°, 84°, 104°, 108°, 109°, 110°, 113°, 114° e 115° a recorrente baseia-se no teor dos documentos 12 (relatório pericial), 13 (admitindo-se que se trata do documento de fls. 136 verso e seguintes, cuja numeração não se mostra legível, é composto por folha da anestesia, folha de administração de medicamentos e diário de enfermagem), 14 (parecer do INML), 20 (relatório clínico subscrito pelo recorrido, com data de 14-04-2011) e 22 (relatório clínico subscrito pelo Dr. AA...), assim como numa página da internet que identifica, para sustentar que devem aqueles ser dados como provados.
Relativamente aos artigos 57° e 59° invoca o depoimento das testemunhas G..., que referiu ter visitado a recorrente no hospital e que esta estava toda negra nas partes baixas e que depois da alta se queixava de não conseguir urinar e Dr.a M..., que recebeu a recorrente na sua consulta, após as cirurgias, tendo esta referido que ficou sem conseguir urinar e com queixas de infecções urinárias.
O recorrido pugna pela não consideração da matéria vertida nestes artigos por se resumirem a identificar excertos de documentos juntos aos autos, sendo que quanto aos artigos 57° e 59° a prova apresentada é insuficiente.
O Tribunal de 1ª instância não fez consignar nenhuma da matéria vertida nestes artigos seja na matéria de facto provada, seja na matéria de facto não provada.
A mera leitura dos artigos 41°, 42°, 74°, 84°, 104°, 107°, 108°, 109°, 110°, 113°, 114° e 115° da petição inicial é bastante para se verificar que a recorrente pretende, tal como refere o recorrido, que sejam inscritos na matéria de facto provada excertos de documentos que foram juntos aos autos.
Ora, os documentos não são factos mas meros meios de prova de factos - cf. art.°s 362° e seguintes do C. Civil e art.°s 410° e 423° do CPC (cf neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-03-2015, relator Manuel Bargado, processo n.° 82170/12.2Y1PRT.G1 disponível em www.dgsi.pt).
A declaração do juiz sobre os factos que julga provados e não provados é sobre factos (cf. art. 607°, n.° 4 do CPC), e não sobre outra coisa qualquer que não sejam factos (ainda que, conforme acima se referiu, estes devam hoje ser entendidos sob uma perspectiva mais abrangente enquanto «facto jurídico»).
No que concerne à prova documental, a discriminação da matéria de facto não pode limitar-se a dar como reproduzidos documentos que constem do processo, mas sim em indicar quais os factos que esses documentos comprovam.
Processualmente é tão errado dar como reproduzidos documentos que constem do processo, como reproduzi-los integralmente sem indicar os factos que esses documentos comprovam.
O facto provado por documento não corresponde ao próprio documento. Em vez de o juiz se limitar a dar por reproduzido o teor do documento X, importa que extracte do mesmo o segmento ou segmentos que sejam concretamente relevantes, assinalando, assim, o específico meio de prova em que se baseou. Imposição que obviamente colide com a pura reprodução de todo o documento, mesmo dos segmentos que não são de modo algum determinantes para a apreciação do caso. — António Abrantes Geraldes, Sentença Cível, Janeiro de 2014, pág. 19, nota 26, disponível em littpsliwww.stj.ptIwp-contentAtploads/2018/01/asentencacivelabrantesgeraldes.pdf.
Com efeito, os documentos não são mais do que um meio de prova destinados a demonstrar a realidade de certos factos; os documentos não são mais do que escritos que corporizam declarações de ciência, pelo que na descrição da matéria de facto provada só há que consignar os factos eventualmente provados por esses documentos. Em suma: a mera remissão para documentos tem apenas o alcance de dar como provada a existência desses documentos, meios de prova, e não o de dar como provada a existência de factos que com base neles se possam considerar como provados - dar como reproduzido um documento significa apenas dar como provado que ele se encontra nos autos. — cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-09¬2012, relator Eduardo Petersen Silva, processo n.° 1011/08.3TTVFR.P1 disponível na base de dados do ITIJ.
Assim, não cumpria ao Tribunal a quo verter na matéria de facto provada ou não provada o conteúdo dos documentos, designadamente de relatório clínico, relatório pericial, parecer emitido pelo INML ou nos relatórios de anestesia, administração de medicamentos e diário de enfermagem, mas sim deles retirar o apoio probatório necessário ou viável para a prova dos factos alegados.
Ora, foi precisamente isso que o Tribunal recorrido fez, louvando-se em tais documentos para fundamentar factos que deu como provados e para sustentar o juízo probatório negativo quanto a outros.
O conteúdo de tais documentos releva para a prova dos factos que a recorrente alegou para fundamentar a responsabilidade do recorrido por má prática médica, mas para tanto não carece o Tribunal de os reproduzir, parcial ou integralmente, na matéria de facto provada.
Improcede, assim, nesta parte, a impugnação da matéria de facto atinente à invocada desconsideração pelo Tribunal de factos relevantes para a decisão da causa
Resta apenas apreciar a matéria vertida nos artigos 57° e 59° da petição inicial.
Pretende a recorrente que se dê como provado que ficou com a parte inferior do corpo, da cintura para baixo, completamente negra, baseando-se para tanto no depoimento da testemunha G....
A alegação fáctica em referência surge na sequência da alusão ao prolongamento do internamento até 23 de Fevereiro de 2010, referido no artigo 56° da petição inicial, ou seja, ter a recorrente ficado com a zona da cintura para baixo negra terá sucedido na sequência da intervenção cirúrgica de 17 de Fevereiro de 2010.
Tendo-se procedido à audição do depoimento da testemunha G... verifica-se que esta refere que foi visitar a recorrente ao Hospital dos Lusíadas, na sequência da intervenção cirúrgica a que esta foi submetida nesse estabelecimento hospitalar, dizendo que estava toda negra nas «partes baixas» (rabinho, barriga, tudo). Ou seja, essa alusão é efectuada por referência à intervenção para colocação da prótese biológica pélvi-soft e não em relação à primeira cirurgia.
Acresce que a testemunha não mencionou ter visualizado a zona do corpo mencionada. Seja como for, não há que dar como provado tal facto porquanto o depoimento da testemunha não se reporta ao momento descrito na petição inicial em que tal se teria verificado.
No que diz respeito ao alegado no artigo 59° da petição inicial, pretende a autora/ apelante que se dê como provado que após a cirurgia de 17-02-2010, começou a ter dificuldades de urinar e a ter constantemente infecções urinárias.
Resulta do ponto 61º da matéria de facto provada, que não foi objecto de impugnação no âmbito dos recursos interpostos da decisão final, que a autora, durante cerca de um ano, ficou a padecer de dificuldades urinárias, com retenção e perdas.
Também no ponto 79º ficou provado que no segundo dia do pós-operatório se verificou disfunção miccional com retenção urinária, pelo que fez algaliação permanente por retenção urinária.
Assim, quanto à retenção urinária verificada após a realização da cirurgia resulta já provada a sua verificação, sendo inócua a introdução na matéria de facto provada de novo ponto que aborde tal questão em concreto.
Quanto às infecções urinárias subsequentes à intervenção de 17-02-2010, não se afigura que estejam, em concreto, demonstradas, pelo menos no período imediato a essa intervenção.
No entanto, está demonstrado que em Junho de 2010, a recorrente foi sujeita a internamento para tratamento terapêutico a um quadro clínico de infecção do aparelho urinário inferior e superior esquerdo - cf. ponto 83. da matéria de facto.
No que concerne à constância das infecções urinárias, a prova carreada para os autos não a revela.
O documento 5 junto com a petição inicial (relatório elaborado pelo Dr. B...) não alude, de todo, a infecções urinárias.
A testemunha Dr.ª M... referiu apenas que a recorrente apareceu na sua consulta mais de um ano depois das intervenções realizadas e queixava-se de infecções urinárias, queixa que antes não tinha. Contudo, esta testemunha deixou claro que não constatou as infecções urinárias, que foram apenas queixas da doente.
Por sua vez, a testemunha G... mencionou também que a recorrente se lhe queixou de infecções urinárias após a cirurgia, mas, mais uma vez, são as queixas da recorrente, não podendo a testemunha, naturalmente, certificar a verificação e frequência de tais queixas.
Como tal, não há que dar como provado o facto vertido no artigo 59° da petição inicial, sendo certo que a ocorrência de pelo menos uma infecção do aparelho urinário está demonstrada sob o ponto 83º da matéria de facto provada.
Da Impugnação da Matéria de Facto (Apelação do réu)
Apreciada a impugnação da matéria de facto vertida nas alegações do recurso interposto pela autora/recorrente, importa, antes de se passar à análise jurídica do litígio, apreciar a impugnação da matéria de facto constante das alegações de recurso independente do réu.
Artigos 48°, 50°, 51° e 52° da contestação
O Tribunal a quo deu como não provada a matéria de facto vertida nos artigos 48°, 50°, 51° e 52° da contestação:
ü O réu sempre informou a autora de todo o procedimento, nomeadamente que lhe seria colocada uma prótese/rede (artigo 48° da contestação);
ü A autora teve conhecimento sobre todo o processo em causa, nomeadamente, que lhe seria colocada uma prótese para a incontinência urinária (TVT-O) (artigo 50° da contestação);
Informou ainda a autora os órgãos em concreto que seriam intervencionados (artigo 51°
da contestação);
ü Após ter sido prestada toda a informação respeitante ao procedimento a aplicar ao caso sub judice da autora, por parte do réu, aquela autorizou a colocação de prótese/rede (artigo 52° da contestação).
O réu/recorrente entende que estes factos deveriam ter sido dados como provados pela seguinte ordem de razões:
O recorrente referiu no min 5m54ss o seguinte: Recorrente: (...) Ela procurou-me com indicação para ser operada, ela sabia que ia ser operada. Ela sabia que ia lá ter comigo porque me escolheu como cirurgião (...); aos 10minl 9ss da gravação do seu depoimento diz o seguinte: Mandatária do Recorrente: O que é que foi feito exactamente nesta primeira cirurgia? Recorrente: Então, foi a correcção do prolapso, foi feita uma histerectomia vaginal, com correcção do compartimento anterior, do compartimento médio, do compartimento posterior e foi aplicada uma prótese TVT /TVT-O Mandatária do Recorrente: E porque é que foi aplicada esta prótese? Recorrente: Porque antes de operar a Senhora, eu estudei-a, mandei fazer um estudo urodinâmico e verifiquei que ela tinha uma bexiga hipocontráctil e que tinha um grande cistocelo, um grande prolapso, que mascarava uma incontinência que ela tinha e que não sabia que a tinha (...);no minuto 14m2Oss que: Recorrente: Ela quando chegou ao consultório já sabia que ia ter cirurgia vaginal (...) já lhe tinha sido transmitido pelo Dr. B...;
§ Destas declarações retira-se que antes de fazer a primeira intervenção cirúrgica em que colocou a rede TVT-O, o recorrente pediu um estudo urodinâmico ao seu colega, Dr. V..., documento 11 junto com a petição inicial, que revelou que a autora/recorrida tinha uma incontinência urinária oculta pelo prolapso;
§ Prossegue o recorrente, ao minuto 10min58 ss: Mandatária do Recorrente: Como é que isso é possível? Como é que um prolapso oculta uma incontinência? Recorrente: (...) A Senhora nunca perde urina com o esforço, pelo contrário, é muito continente. O problema é que quando se corrige o prolapso surge a incontinência;
A testemunha V... disse ao minuto 3m52ss: Mandatário da Recorrida/Autora: O Senhor Doutor recorda-se, antes dessa cirurgia, de ter feito exames urodinâmicos? Testemunha: Sim, sim. Quer dizer, até há muito pouco tempo não me recordava, porque se tiver ideia que eu faço em média 8 ou 9 estudos urodinâmicos/dia é um bocado difícil lembrar-me de todos. Mas como é evidente, fui aos arquivos e fui ver. E sei, sei de cor. Fui reler. Mandatário da Recorrida/Autora: Aqui como documento 11 da PI diz que o Senhor Doutor redigiu o relatório no dia 29 de Dezembro de 2009 Testemunha: Acho que é
antes da senhora ser operada. Mandatário da Recorrida/Autora: É antes da Senhora ser operada, exactamente. Recorda-se?;
A autora/recorrida tomou conhecimento que tem uma incontinência, ainda que oculta em virtude do prolapso e, tendo-a recebido em consulta e tendo explicado o procedimento sugerido pelo colega Dr. B..., histerectomia e colocação da prótese necessária na sequência do resultado apresentado no estudo, avançou então para a cirurgia, no dia 17 de Fevereiro de 2010;
4 O tribunal a quo deu como provado que o Recorrente explicou à Autora/Recorrida o procedimento da histerectomia, tendo a mesma consentido em tal intervenção, conforme facto 27 dado como provado, não se compreendendo por que razão não deu igualmente como provado que o Recorrente explicou que lhe iria colocar uma rede/prótese, em virtude do resultado do estudo urodinâmico;
4. Do documento n.° 1 junto com a contestação Impresso de Autorização, entregue à Autora/Recorrida na sequência da consulta onde foram prestados todos os esclarecimentos, refere expressamente Desde há um ano, Dezembro de 2008, refere sintomas de Prolapso da vagina e IUC (Incontinência Urinária) oculta pelo grande Cistoncelo, fazendo-se, ainda, referência clara à colocação de uma prótese TVT — O no campo Prescrição de actos médicos, pelo que deveria o tribunal a guo ter dado como provado que o Recorrente explicou o procedimento cirúrgico à Autora, incluindo a colocação da prótese/rede TVT-0 para correcção da incontinência urinária oculta verificada;
4- Os esclarecimentos foram prestados no mesmo momento, pelo que não se compreende igualmente por que entende o tribunal a guo que quanto à histerectomia não existem dúvidas, mas já quanto à colocação da rede/prótese não logrou o Recorrente demonstrar que esclareceu a Autora;
4- No que respeita ao consentimento prestado na cirurgia referida nos pontos 31. e 46 da matéria dada como provada, entende, também o tribunal a quo que tal consentimento não é válido, pese embora esteja junto aos Autos como documento 4 junto com a Contestação Consentimento Livre e Esclarecido para Actos médicos;
O documento foi assinado pela Autora/Recorrente, dele constando: Não hesite em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido., pelo que caberia à Autora/Recorrida alegar e demonstrar que estamos no âmbito de aplicação da legislação referente às cláusulas contratuais, mormente do Decreto-Lei 446/86, para poder beneficiar da inversão do ónus da prova e consequentemente incumbir ao Recorrente/Autor demonstrar que prestou todos esclarecimentos à Autora quanto à colocação da Prótese biológica pélvi-sofi de 4 x 7 cm (Bard) rectal;
4- Pelo que, também quanto a este facto em concreto, deveria o mesmo ter sido dado como provado pelo tribunal a quo.
O Tribunal de 1ª instância justificou a falta de prova dos mencionados factos alegados
na contestação, nos seguintes termos:
Relativamente à matéria da informação prestada pelo Réu à Autora, previamente às intervenções e na sequência destas, entendeu-se como não provado que o Réu tenha informado a Autora sobre a colocação da faixa TVT no mesmo procedimento de histerectomia, ou seja, não logrou o Réu provar ter prestado informação completa à Autora sobre os órgãos a intervencionar, e colocação de próteses.
Fundamentando tal entendimento, há que dizer que a única prova produzida a respeito da informação prestada pelo Réu consistiu nas declarações do próprio. Ora o próprio Réu frisou aquilo que vem alegado na contestação: que a Autora o procurou para executar o procedimento de histerectomia, e já vinha com indicação para o mesmo, pelo que tinha conhecimento e se encontrava informada. Se quanto a este procedimento não se suscitam duvidas - a própria autora admite que tinha sido informada quanto ao mesmo, e prestou consentimento à sua realização - no que respeita à intervenção na bexiga, com colocação de prótese/rede/faixa TVT e, posteriormente, colocação de prótese biológica, as declarações do Réu foram omissas, remetendo para o preenchimento de um impresso de autorização, para fins de seguro. Entende o Réu que, tendo preenchido tal impresso, que foi entregue à Autora, e constando do mesmo as intervenções que iria realizar, esta teve oportunidade de tomar conhecimento, e portanto encontrava-se informada. Não se acompanha tal raciocínio e conclusão, e não se considera que o facto de estar provado o preenchimento e entrega à Autora de tais documentos satisfaz o ónus da prova de prestação de informação.
Os documentos em causa, de fls. 175, e fls. 176 verso, e que consistem em impressos de autorização para efeitos de comparticipação de seguro de saúde, terão sido, de facto, preenchidos pelo Réu e entregues à Autora, para que esta os fizesse chegar à sua seguradora. No entanto, da existência destes documentos não se pode extrair, sem mais, que a Autora tinha perfeito conhecimento dos atos cirúrgicos que iriam ser realizados, e que consentiu nos mesmos. Com efeito, e para além de uma caligrafia de muito difícil leitura, os atos médico-cirúrgicos estão descritos em linguagem técnica, que um leigo não deve nem tem de entender. Qualquer pessoa média, não licenciada ou não versada em ciências médicas, desconhece o que seja um TVT-0 (única parte que, confessa-se, se consegue entender do primeiro ato médico descrito), bem como não tem obrigação de o reconhecer pelo respetivo código. Acresce que, ainda que a autora soubesse que iria ser colocada uma prótese TVT-O, não resulta, da mera descrição contida neste impresso, que tivesse sido informada qual a finalidade de tal prótese e respetiva colocação, ou que propósito terapêutico subjaz à necessidade da sua colocação.
No que respeita ao relatório elaborado em 25.11.2010 (fls. 175 verso e 176), este apenas atesta que à Autora foi dado conhecimento das intervenções e atos praticados na data do próprio relatório, e não em data anterior.
No que concerne ao impresso de fls. 177, elaborado pelo Hospital dos Lusíadas, e por este denominado Consentimento Livre e Esclarecido para Actos Médicos, apenas se poderia dar como provado que a autora após a sua assinatura no mesmo, e não já que qualquer informação que do mesmo conste lhe foi transmitida. Acresce que, mais uma vez, o diagnóstico e tratamento médico ou cirúrgico proposto se encontra escrito em caligrafia que mal se entende, e remete para o verso do documento e, este verso, não se encontra assinado pela autora. No caso, tratando-se de impresso com espaços em branco, destinados a ser posteriormente preenchidos, entende-se ser aplicável o regime jurídico do DL n° 446/86, pelo que o ónus da prova de que a autora foi informada do que ali consta (note-se, mais uma vez, tratar-se de linguagem médica, não acessível a um leigo) cabe ao réu - (artigos 1° n.°s 1, 2 e 3, 5°, n.° 3).
Dado o exposto, e atentas as regras do ónus da prova (sendo que se entende que cabe ao médico provar a prestação de informação, matéria que se abordará mais aprofundadamente adiante), não resulta provado o alegado em 48, 50, 51, 52 da contestação.
Da prova testemunhal produzida e a cuja audição integral se procedeu não se retira qualquer referência ao âmbito da informação que terá sido prestada à autora/recorrida pelo aqui réu/recorrente quanto ao tipo de intervenção a que foi submetida no dia 17-02-2010. Nenhuma testemunha presenciou, ou referiu ter presenciado, as consultas a que a recorrida terá comparecido com o recorrente, nem foi abordada a questão da informação sobre o tipo de intervenção, sequer pela testemunha Dr. B..., que foi quem encaminhou a recorrida para o réu, com vista à intervenção cirúrgica que entendeu que se impunha face ao diagnóstico de prolapso urogenital.
Assim, tal como expressamente referido pela senhora juíza a quo, apenas o recorrente, nas suas declarações de parte, se pronunciou quanto ao conteúdo da informação que terá transmitido à paciente relativamente à intervenção de 17-02-2010 e, nessa sede, referiu apenas que a autora/recorrida vinha já com a indicação para cirurgia de histerectomia vaginal, pelo que sabia que ia ser operada e apenas lhe explicou que ia fazer a histerectomia vaginal; quanto à intervenção que teve lugar em Junho de 2010 e que se impôs atentas as queixas da paciente quanto ao não funcionamento da bexiga, disse o recorrente que explicou a razão por que tinha de ir ao bloco, ou seja, que havia que fazer um alívio da prótese libertando a uretra para que pudesse retomar a função urinária normal.
O recorrente, nas suas declarações, não afirmou em momento algum que tenha explicado à paciente que aquando da histerectomia vaginal iria também colocar uma prótese TVT-O. E que essa explicação tenha sido, de algum modo, transmitida à autora/recorrida, não se logra extrair de nenhum dos elementos probatórios vertidos nos autos.
Certo é que o recorrente explicou a razão pela qual entendeu colocar a prótese, mencionando o facto de ter solicitado o estudo urodinâmico que revelou uma bexiga hipocontráctil (cf. documento de fls. 48 verso a 52), o que lhe deu conhecimento sobre uma possível incontinência oculta.
Que assim foi não há qualquer dúvida. Subsiste porém a dúvida sobre se foi explicado à autora/recorrida em que consiste uma bexiga hipocontráctil e se lhe foi transmitida a decisão
tomada pelo cirurgião para colocação da prótese.
A mera leitura do estudo urodinâmico, não estando provado que a autora tenha conhecimentos médicos bastantes para o efeito, não lhe permitiria, por si só, compreender o alcance da conclusão nele vertida e menos ainda a sua pertinência para a decisão de colocação de uma prótese TVT-O. A especificidade da intervenção não permite uma aferição imediata apenas através do resultado do exame e não consta que este haja sido explicado à recorrida.
A circunstância de o Tribunal ter dado como provado sob o ponto 27º da matéria de facto provada que a autora deu o seu consentimento à intervenção cirúrgica de histerectomia, realizada em 17-02-2010 em nada interfere com o facto de não se ter dado como provado o seu consentimento ou conhecimento sobre a colocação da prótese TVT-O.
Com efeito, a prova daquele ponto 27º resulta da própria admissão efectuada pela autora no artigo 85° da sua petição inicial, admissão que não abrangeu a colocação da prótese, conforme resulta claro do artigo 61° daquele articulado.
O réu/recorrente convoca o conteúdo do documento n.° 1 junto com a contestação (Impresso de Autorização que se afigura ser emitido ou facultado pela Médis atento o logotipo que dele consta no canto superior esquerdo), para justificar que o procedimento cirúrgico foi explicado à autora, incluindo a colocação da prótese TVT-O.
Ora, esse documento, junto aos autos a fls. 175, não se mostra subscrito pela autora, pelo que a ausência de qualquer aposição de assinatura impede qualquer afirmação sobre a eventual tomada de conhecimento por parte daquela quanto ao seu teor.
Acresce que no canto inferior esquerdo consta a data de 28-10-10, ou seja, momento muito posterior à intervenção cirúrgica que teve lugar em 17-02-2010, pelo que não se afigura possível conferir-lhe a virtualidade de ter fornecido qualquer informação cabal e prévia à paciente.
Ainda que se admita que dele tomou conhecimento, certo é que a sua leitura por um leigo em conhecimentos médicos, como é a recorrida, não permite alcançar com exactidão o procedimento que irá ser (ou foi) realizado, quer pela escassa legibilidade das menções manuscritas que dele constam, quer pela aposição de siglas e códigos numéricos que não são facilmente apreensíveis.
Aquilo que se consegue retirar das menções apostas na zona destinada a Descrição dos Actos Médicos é a referência a TVT-O precedida de palavras ilegíveis e a H Vaginal seguida também de palavras ilegíveis. Ora estas menções, por si só, são claramente insuficientes para que a autora pudesse ter noção do tipo de intervenção a que iria ser sujeita.
Após tais menções, consta um asterisco com a seguinte menção: Complicação no pós-operatório imediato por hematoma da cúpula vaginal, seguido de duas palavras ilegíveis.
Depreende-se que esta inscrição foi efectuada no pós-operatório, logo não serve para aferir que tipo de informação foi fornecida à recorrida previamente à intervenção cirúrgica.
No espaço destinado a Informação Clínica/Diagnóstico/Hipóteses Diagnósticas consta: Desde há 1 ano Dez. 08 refere ...(?) de prolapso dos órgãos pélvicos e I. U. B. oculta pelo grande cistocelo. Trata-se, mais uma vez, de termos médicos que não permitem sequer discernir qual o procedimento/tratamento adequado para aquela situação.
Em idêntico impresso de pré-autorização que consta de fls. 176 verso, com data de 13¬05-2010, por referência à intervenção de 2-06-2010, não existe, novamente, qualquer assinatura da autora/recorrida e na descrição dos actos médicos consignou-se o seguinte: colporrafia anterior por cistocelo; plastia do esfíncter uretral; no espaço referente a Informação Clínica/Diagnóstico/Hipóteses Diagnósticas consta: recidiva do prolapso genital ...(?) com cistocelo II e associada a incontinência urinária.
Ou seja, não há qualquer alusão a uma comunicação à recorrida da intervenção que iria ser realizada.
O réu/recorrente convoca ainda o documento n.° 4 junto com a contestação (Consentimento Livre e esclarecido para actos médicos, junto a fls. 177) para sustentar que deveria o Tribunal ter dado como provado que a autora/recorrida deu o seu consentimento para a cirurgia que teve lugar em 15-12-2010, porquanto se trata de documento assinado por esta e onde consta o seguinte: Não hesite em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido.
O aludido documento não contém qualquer data aposta, sendo assim inviável, face à total ausência de prova testemunhal quanto a tal matéria, concluir-se em que momento foi aquele assinado.
Desse documento constam, à frente da menção Diagnóstico, várias palavras manuscritas de muito difícil leitura, conseguindo-se apenas ler retenção urinária.
Da sua análise sobra a dúvida sobre se tal consentimento diz respeito à proposta cirúrgica que consta no verso (fls. 177 verso), onde se refere como data da cirurgia 15-12-2010 e tratamento proposto colporrafia por ... não obstétrica e colporrafia posterior por rectocelo, porquanto à frente da menção observações, subsequente à assinatura da autora, consta um carimbo com os seguintes dizeres: análises pré-operatórias, ECG, EX Tórax, Grupo sanguíneo, ficando sem se saber se o consentimento será para a realização destes exames ou para a cirurgia.
De todo o modo, ainda que a subscrição de tal documento pela autora visasse conferir o seu consentimento à intervenção a realizar em 15-12-2010, certo é que o seu conteúdo não lhe permitiria saber, na ausência de quaisquer outras explicações, qual o tipo de intervenção a que seria sujeita e os respectivos riscos inerentes, previsíveis ou comuns.
De todo o modo, nos artigos 48°, 50°, 51° e 52° da contestação que o réu/recorrente pretende que sejam dados como provados está em causa o conhecimento e o consentimento da autora quanto à colocação da prótese TVT-O realizada na intervenção de 17-02-2010, sendo que quanto a esta não consta dos autos qualquer documento subscrito pela autora com vista ao respectivo consentimento, nem, por outro lado, a demais prova produzida permite afirmar que foram prestados esclarecimentos verbais quanto a tal intervenção.
Assim, nenhuma censura merece a ponderação da prova efectuada pelo Tribunal a quo, devendo manter-se tais factos no elenco da matéria de facto não provada.
Considerando as alterações introduzidas à matéria de facto e procedendo esta Relação à enunciação por ordem cronológica da sucessão dos acontecimentos, para uma melhor percepção dos actos praticados (considerando que na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz deve usar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que se considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção — cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, - Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 718) e à eliminação dos pontos 39º e 81º, que constituem mera repetição dos pontos 34º e 28º, respectivamente, com a necessária renumeração, os factos provados a considerar são os seguintes:
1. Em 11/10/2011, a Autora apresentou a queixa junta aos autos a fls. 21 a 25 contra o Réu, no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, a qual correu termos sob o n.° ..., da 6a Secção do DIAP de Lisboa, imputando-lhe os factos que descreve nessa queixa e a comissão pelo mesmo de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelo art.° 148°, n.° 3 do Cód. Penal, em concurso real com a comissão de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punido pelos art.°s 150°, n.° 2 e 156°, n.° 1 do Cód. Penal - cfr. doc. de fls. 21 verso a 25. (A)
2. Por despacho proferido nos autos de inquérito referidos em A), em 22/04/2016, foi determinado o arquivamento daqueles autos de inquérito - cfr. doc. de fls. 28 a 33. (B)
3. Prolapso genital é uma patologia que resulta da perda dos suportes vaginais e pélvicos normais (musculares, aponevróticos e ligamentosos), determinando a cedência ou queda dos órgãos pélvicos através do canal vaginal - bexiga, uretra, intestino e recto. (C)
4. Os órgãos pélvicos (aparelho urinário baixo, aparelho genital e recto) são suportados
por um sistema de músculos, fasciais (membranas ou planos fibrosos) e ligamentos. A vagina é uma zona de fragilidade que em caso de falha ou deficiência destas estruturas de suporte permite que esses órgãos pélvicos possam descer da sua posição, chegando a sair para o exterior. (D)
5. Os prolapsos genitais podem ser dos seguintes tipos:
- Prolapso vaginal anterior - também conhecido como cistocele ou vulgarmente bexiga descaída, por estar usualmente implicada a bexiga;
- Prolapso vaginal posterior - também conhecido como rectocele por ser o recto o órgão preferencialmente envolvido;
- Prolapso do compartimento médio - normalmente envolve os vários compartimentos e órgãos pélvicos, tais como a bexiga, intestino delgado e grosso e assume essencialmente duas formas: Prolapso Uterino (procidência) e Prolapso da Cúpula Vaginal após histerectomia (conhecido como enterocele);
- Prolapso rectal - por vezes confundido com patologia hemorroidária. (E)
6. Em função da gravidade o prolapso pode ser classificado nos seguintes graus:
- Grau O - ausência de prolapso;
- Grau I - ponto de maior prolapso está localizado até 1 cm para dentro do hímen (¬1 cm.);
- Grau II - o ponto de maior prolapso está localizado entre 1 cm acima e 1 cm abaixo do hímen;
- Grau III - o ponto de maior prolapso está a mais de 1 cm para fora do hímen, sem ocorrer eversão total;
- Grau IV - eversão total do órgão prolapsado. O ponto de maior prolapso fica, no mínimo, no comprimento vaginal menos 2 cm. (F)
7. Considerando a classificação atribuída, os Prolapsos de Grau I e Grau II são classificados como leves ou moderados. (G)
8. Um exame ginecológico é suficiente para o diagnóstico do prolapso. No entanto, para
compreender e esclarecer a completa natureza do problema existem diversos exames complementares que podem ser efectuados, nomeadamente, ressonância magnética, ecografia, estudos urodinâmicos, testes de avaliação do tónus muscular e cistourestroscopia. (H)
9. Todos os exames complementares referidos em H) ajudam o cirurgião a seleccionar o melhor método e o tipo de cirurgia a efectuar na correcção do prolapso. (I)
10. Num Prolapso de grau II só em casos de grande perturbação na qualidade de vida da paciente é recomendada a intervenção cirúrgica. (L)
11. A diversa literatura médica sobre as seguintes abordagens do tratamento refere que para mulheres assintomáticas ou levemente sintomáticas, o tratamento expectante é apropriado. Para as mulheres sintomáticas o tratamento pode ser conservador ou cirúrgico. A escolha do tratamento depende do tipo e gravidade dos sintomas, da idade e das comodidades médicas, do desejo de função sexual futura e/ou fertilidade e dos factores de risco para recorrência. O tratamento deve ter como objectivo o alívio dos sintomas, mas os benefícios devem pesar mais do que os riscos. (M)
12. O tratamento cirúrgico está indicado se a condição causar algum sintoma ou disfunção que interfira nas actividades normais da paciente. (N)
13. Pacientes com pequenos prolapsos não associados a outras anormalidades ginecológicas e sem manifestações clínicas, ao invés de serem imediatamente submetidas ao tratamento cirúrgico, devem ser acompanhadas quanto à evolução. (0)
14. O objectivo da terapêutica cirúrgica é aliviar os sintomas, restaurar a anatomia e corrigir alterações funcionais quer sejam sexuais, eventual incontinência urinária ou fecal. (P)
15. Dentre as cirurgias incompatíveis com a função reprodutora, assinalam-se a histerectomia uterina.
16. A histerectomia uterina está indicada nos casos de prolapso de grau III e IV. (Q)
17. A Autora nasceu em 30-08-1948.
18. A Autora sentia um ligeiro desconforto quando andava. (R)
19. No final do ano 2009 foi diagnosticado à Autora, pelo Sr. Dr. B..., ginecologista, um Prolapso Urogenital do II Grau.
20. Em Janeiro de 2010, a médica de família da autora diagnosticou-lhe um prolapso uterino.
21. O Réu foi aconselhado à Autora como sendo um médico com enorme experiência na matéria. (S)
22. A Autora chegou ao consultório do réu através da recomendação do Exmo. Sr. Dr. B..., médico ginecologista, com informação clínica para correcção cirúrgica do prolapso dos órgãos pélvicos sintomático.
23. A Autora contratou os serviços do Réu. (T)
24. Quando o Réu observou a Autora, em 15 de Fevereiro de 2010, diagnosticou-lhe um prolapso do compartimento anterior de Grau III e do compartimento médio e posterior de Grau II.
25. Após consulta com a Autora, esta foi informada pelo Réu que o tratamento adequado à sua situação clínica seria realizar uma histerectomia para remoção do útero.
26. O Réu informou a Autora, pelo menos, que considerando o prolapso uterino de que padecia, o problema ficaria resolvido com a histerectomia uterina, via vaginal; (U)
27. A Autora foi submetida a um exame estudo urodinâmico em pré-operatório, a análises clínicas e a uma ecografia pélvica endovaginal. (J)
28. Antes de efectuar a intervenção cirúrgica, nas análises que efectuou a Autora tinha hemoglobina de 12,0 g/ dl. (V)
29. A intervenção cirúrgica adequada à situação clínica da Autora incluía histerectomia para remoção do útero, e reforçar os três compartimentos do prolapso.
30. No dia 17 de Fevereiro de 2010, nas instalações do Hospital Particular de Lisboa, o Réu procedeu a uma intervenção cirúrgica à Autora, tendo realizado àquela, pelo menos, uma histerectomia uterina, por via vaginal, ou seja, uma operação com remoção do útero. (W)
31. A Autora deu o seu consentimento à intervenção cirúrgica, histerectomia de 17/ 02/ 2010. (Z)
32. Durante a intervenção cirúrgica referida em W), o Réu colocou na Autora uma rede para a incontinência urinária (TVT-O). (Y)
33. Em 17 de Fevereiro de 2010, o réu, além da remoção do útero, corrigiu pelo menos os compartimentos anterior e médio e colocou uma prótese sub-uretral - tension-free vaginal tape - via trans-obturadora (TVT-O), conforme referido em 25., como medida profiláctica para o problema de incontinência urinária ocultada pelo prolapso do compartimento anterior.
34. Nessa intervenção cirúrgica a Autora perdeu sangue e houve necessidade de lhe fazer uma transfusão de sangue. (X)
35. A autora apresentava um problema de incontinência urinária oculta, sendo prática profiláctica adequada a aplicação de uma prótese TVT-O.
36. A primeira cirurgia correu sem intercorrências; 48 horas depois o hemograma revelou anemia com necessidade de correcção com transfusão.
37. Dois dias após a operação levada a cabo pelo Réu, ou seja, em 19-02-2010, a hemoglobina da Autora desceu ao valor de 6,8 g/ dl.
38. A Autora foi sujeita à transfusão de duas unidades de sangue para correcção da anemia.
39. A causa da anemia foi diagnosticada com um hematoma localizado entre a bexiga e a vagina.
40. Subsequentemente à operação levada a cabo pelo Réu, foi diagnosticado à autora um hematoma o qual demorou cerca de quatro meses a ser reabsorvido.
41. O referido hematoma em 23-02-2010 tinha a dimensão 56X42X34, em 04-03-2010 tinha a dimensão de 62X58X40mm, em 11-03-2010 tinha a dimensão de 56X53X52mm, em 12-04-2010 tinha a dimensão de 42X37X36 mm, em 13-05-2010 tinha a dimensão de 33X29X24 mm.
42. Em consequência das complicações pós-operatórias, a Autora teve que permanecer internada até ao dia 23 de Fevereiro de 2010.
43. Segundo a literatura médica, o hematoma diagnosticado é uma complicação frequente neste tipo de cirurgias, respeitante a uma hemorragia de um pequeno vaso.
44. Como resultado desse diagnóstico, prolongou o internamento e a algaliação permanente.
45. A hemoglobina poderá ter ficado baixa devido ao sangue ter ficado retido no hematoma, sendo certo que foi decidido que esse hematoma fosse reabsorvido naturalmente pelo organismo da autora.
46. No segundo dia do pós-operatório, verificou-se também como complicação disfunção miccional com retenção urinária, pelo que fez algaliação permanente por retenção urinária.
47. A 23 de Fevereiro de 2010 teve alta hospitalar por melhoria da dor e estabilização dos valores analíticos da anemia e foi seguida em ambulatório, para vigilância clínica e laboratorial do hematoma referido.
48. A retenção urinária, a urgência miccional, a infecção urinária e a verificação de um hematoma que se seguiram à realização da operação são complicações típicas e passíveis de se verificarem num pós-operatório deste tipo.
49. No dia 02/06/2010, a Autora foi submetida a nova intervenção cirúrgica pelo Réu. (AA)
50. Na sequência da intervenção cirúrgica referida em AA), a Autora teve alta hospitalar em 05/06/2010. (AB)
51. A intervenção realizada em 02-06-2010 visou unicamente libertar/ aliviar a tensão da prótese/ rede que o Réu havia colocado na Autora.
52. No dia 10 de Junho de 2010, a Autora teve um terceiro internamento. (AC)
53. Em 10 de Junho de 2010 a autora tem um terceiro internamento de urgência, por retenção urinária com globo vesical e dor na região renal esquerda.
54. Em 13 de Junho de 2010, tem alta hospitalar após 3 dias de internamento para terapêutica médica, do quadro clínico de infecção do aparelho urinário inferior e superior esquerdo.
55. Em 29-11-2010 a Autora realizou uma Ressonância Magnética pélvica a qual revelou, nomeadamente: Há ainda perda da configuração em H da vagina, aspectos que são sugestivos de perda parcial do suporte fascial lateral., e ainda que Há também descida e protrusão anterior do reto (...) aspectos compatíveis com fraqueza do suporte muscular posterior e ligeiro retocele.
56. A Autora realizou nova cirurgia efectuada pelo Réu. (AD)
57. A cirurgia referida em AD realizou-se em 15-12-2010, na qual foi colocada na autora prótese biológica pélvi-soft de 4 X 7 cm (Bard) rectal.
58. Na sequência de consulta no Hospital dos Lusíadas, com o Sr. Dr. AA..., realizada em 17-06-2011, a autora realizou ecografia pélvica e ressonância magnética, sendo confirmado um diagnóstico duma sinequia vaginal, na união do terço superior da vagina com os dois terços inferiores, na parede central permitindo lateralmente dois túneis até à cúpula vaginal. Apesar de no total a vagina ter 8 cm de comprimento, sob ponto de vista funcional só existiam 5 cm, o que a transformava numa vagina curta.
59. A Autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica em 15.10.2012. (AE)
60. Em 15-10-2012 a Autora foi submetida a nova intervenção cirúrgica para correcção da sinequia vaginal e construção duma neovagina.
61. Antes das cirurgias a Autora não apresentava queixas relacionadas com dificuldades urinárias e fecais. (AG)
62. Antes das operações levadas a cabo pelo Réu a Autora tinha uma vagina perfeitamente normal.
63. Antes das operações levadas a cabo pelo R. a não tinha qualquer estenose da cúpula vaginal.
64. A Autora realizou despesas com exames de diagnóstico e consultas médicas constantes dos documentos de fls. 68 verso a fls. 125.
65. A Autora ficou a padecer das já descritas sequelas físicas, e também psicológicas, em consequência das intervenções cirúrgicas e respectivo resultado.
66. Sofreu muitos momentos de desgosto e constrangimento.
67. Viveu angustiada e amargurada.
68. Ficou abalada e perturbada emocionalmente.
69. Sofreu diminuição de auto estima.
70. A Autora sentiu-se diminuída.
71. A Autora dava por si a chorar compulsivamente.
72. E sentiu-se revoltada.
73. A Autora durante cerca de um ano ficou a padecer de dificuldades urinárias, com retenção e perdas.
74. E a ter que usar fraldas.
75. E a padecer de dores.
76. A Autora, para realização das operações levadas a cabo pelo Réu esteve acamada em unidade hospitalar cerca de 15 (quinze) dias.
77. A Autora era mulher dinâmica e feliz, com muita vontade de viver.
78. A Autora tornou-se uma mulher triste, sem alegria de viver.
79. Agressiva e com constantes recaídas depressivas.
80. Por sentença proferida em 04.02.2015, nos autos de divórcio litigioso que o marido da Autora instaurou contra a última, Proc. …, do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância Central, 3a Sec. F. Men., J3, foi decretado o divórcio entre a Autora e o seu marido - cfr. doc. de fls. 125 verso a 126. (AF)
81. No relatório pericial efectuado à Autora no âmbito do processo referido em A) refere-se que: O prolapso urogenital de grau II (o sistema de classificação actual mais aceite internacionalmente é o POP-Q vai de 0-4) tem indicação cirúrgica se for sintomático para a paciente e interferir na sua qualidade de vida. Infiro ter sido o caso dado a doente ter aceite a proposta cirúrgica realizada por dois diferentes ginecologistas. (K)
Mantém-se inalterada a matéria de facto considerada não provada.
A autora/apelante demandou o réu/recorrido com vista a responsabilizá-lo pelos danos que suportou em virtude daquela que entende ter sido uma má prática médica, solicitando a sua condenação no pagamento da quantia de € 2 674,42, a titulo de indemnização por danos patrimoniais emergentes, da quantia de € 95 000,00, a titulo de indemnização por danos não patrimoniais e ainda de todas as despesas, medicamentos, intervenções cirúrgicas ou tratamentos que aquela tenha necessidade de efectuar, que sejam causa directa ou indirecta da intervenção e tratamentos efectuados pelo réu.
O Tribunal a quo, qualificando a relação que se estabeleceu entre a autora e o réu como uma relação contratual e considerando que no contexto desta a obrigação que decorre para o médico é uma obrigação de meios, de tal modo que cabe ao paciente provar o cumprimento defeituoso consubstanciado numa prática objectivamente desadequada, desconforme às leges artis, recaindo sobre o réu a necessidade de ilidir a presunção de culpa, considerou que não resultou provado que existisse outro procedimento adequado para o tratamento da situação diagnosticada à autora (prolapso urogenital), nem que a prestação (histerectomia vaginal) fosse inadequada ou tenha sido incorrectamente realizada.
Quanto à colocação da prótese TVT-O considerou o Tribunal de 1ª instância que este era um procedimento adequado face à incontinência oculta detectada na autora, não tendo ficado provado que a sua execução tenha violado as leges artis, assim como não se provou que a colocação da prótese biológica pélvi-soft tenha sido desnecessária ou inadequada, pelo que considerou não estar demonstrada a violação de deveres contratuais por parte do réu.
Mais considerou que competia ao réu o ónus da prova do consentimento da autora quanto à colocação da prótese TVT-O e da prótese biológica, prova que o réu/recorrido não efectuou e assim, entendendo que existe uma violação de direitos de personalidade, com lesão do direito à autodeterminação, integridade física e dignidade pessoal, fixou uma indemnização à autora no montante de € 7 500,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação e até pagamento.
Entende a recorrente que o montante arbitrado é manifestamente reduzido face aos graves danos que suportou, referindo ser manifesto e a prova o evidenciar:
ü que o recorrido não efectuou um diagnóstico cuidado e ponderado sobre a sua situação clínica;
ü não a informou sobre os problemas que poderiam advir da intervenção cirúrgica;
ü omitiu os registos clínicos das intervenções que levou a cabo e aplicou próteses sem o seu conhecimento e consentimento;
ü não demonstrou que a anemia, os hematomas, a transfusão de sangue, a sinequia vaginal fossem situações normais e expectáveis neste tipo de intervenções.
Tendo em conta a extensão dos padecimentos que sofreu, a recorrente entende que a indemnização arbitrada deve ser tida por miserabilista, reiterando a pretensão indemnizatória formulada na acção.
Nas suas contra-alegações, o recorrido sustenta que a recorrente deu o consentimento para as cirurgias realizadas; além disso, não foi estabelecido qualquer nexo causal entre o alegado facto ilícito - falta de prestação de informação - e os danos elencados pelo Tribunal a quo, pelo que não deveria ter sido atribuída qualquer indemnização à recorrente.
Nas suas alegações de recurso, o réu/recorrente suscitou, igualmente, a não demonstração do nexo causal entre a falta de prestação de informação e os danos apurados, sendo que tendo a autora/recorrida alegado danos que teriam decorrido de má prática médica, que não resultou demonstrada, não poderia o Tribunal atribuir uma indemnização com base nesses mesmos danos mas por referência a uma outra fonte de ilicitude, pelo que se impõe a sua absolvição do pedido.
Resulta já do acima expendido a natural confluência, no contexto da responsabilidade civil médica, entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, pois que o não cumprimento dos deveres de cuidado e protecção a que o médico está obrigado podem ser causa de responsabilidade contratual, na medida em que viola deveres laterais a que contratualmente está obrigado, mas também causa de responsabilidade delitual, na medida em que a referida violação represente igualmente um facto ilícito extracontratual.
Existirá, por regra, um único dano, produzido por único facto, só que este, além de constituir violação de uma obrigação contratual, é também lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física.
A responsabilidade civil contratual provém da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei e a extracontratual resulta da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem.
É hoje comum aceitar-se que a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso. Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se numa situação de proponente contratual. Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a tal proposta. Tal factualidade é, por si só, bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos aqui em face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene para a celebração de tal acordo de vontades. - cf. João Álvaro Dias in Procriação Assistida e Responsabilidade Médica, Stvdia Ivridica, n° 21 - BFDC - Coimbra, 1996, págs. 221 e 222 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011, relator Gregário Silva Jesus, processo n.° 209/06.3TVPRT.P1.S1 disponível em www.dgsi.pt.
A responsabilidade contratual está prevista nos art.°s 798° e seguintes do C. Civil, no capítulo atinente ao cumprimento e não cumprimento das obrigações; a responsabilidade extracontratual encontra arrimo, por sua vez, nos art.°s 483° e seguintes do mesmo diploma legal, no capítulo das fontes das obrigações. A ambas é comum o regime da obrigação e indemnizar (cf. art.°s 562° e seguintes do C. Civil).
Dispõe o art. 798° do C. Civil que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
O art.° 483°, n.° 1 do C. Civil estipula: Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Os elementos constitutivos da responsabilidade civil, provenha de um facto ilícito ou de um contrato, são: o facto (controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Em qualquer dos casos, a responsabilidade civil assenta na culpa, que é apreciada in abstracto, ou seja, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, conforme preceitua o n.° 2 do art. 487°, aplicável à responsabilidade contratual ex vi art.° 799°, n.° 2 do C. Civil.
A diferença entre as duas espécies de responsabilidade radica, sobremaneira, no facto de a tutela contratual ser aquela que, em regra, mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória face às regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (cf. art.°s 799°, n.° 1 e 487°, n.° 1 do C. Civil).
Estando em causa nos autos a eventual violação ilícita de um direito de personalidade (a integridade física da autora) sempre tal ilícito geraria responsabilidade extracontratual. No entanto, será em face do caso concreto e de todo o circunstancialismo que o delineia, que se aferirá se se trata de uma relação contratual ou extracontratual.
A autora/recorrente optou expressamente pela via da responsabilidade contratual, tanto mais que o acordo quanto à prestação de serviços está demonstrado - cf. ponto 23. da matéria de facto provada -, pelo que há que indagar se o Tribunal recorrido andou bem na aferição que efectuou quanto à não demonstração do incumprimento da obrigação por parte do réu/ recorrido.
No contrato de prestação de serviços que o médico celebra a obrigação contratual principal que assume é a obrigação de tratamento, que se pode desdobrar em diversas prestações como as de observação, de diagnóstico, de terapêutica, de vigilância, de informação.
Já foi referido que a execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado.
Por via de regra, o acto médico envolve da parte do médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e ciência profissionais, a assunção de uma obrigação de meios.
Com efeito, o objecto da prestação médica não é a cura, não é um resultado certo, mas sim o de ser diligente, cuidadoso e respeitador das leges artis em ordem a alcançar o tratamento do paciente. Estas compreendem um conjunto de normas e princípios profissionais que não se encontram coligidos em apenas um diploma, estando antes dispersados na praxis médica, de acordo com o estado da ciência médica num preciso momento histórico. - cf. André Gonçalo Dias Pereira, op. cit., pág. 715.
Neste contexto, tem-se vindo a discernir, no âmbito da actividade médica, as intervenções ou actos para os quais se exige um resultado certo (como as próteses, análises clínicas, exames oftalmológicos, etc.) e aquelas em que a variedade das condições pessoais do doente e sua interacção com outros factores impede que se faça recair sobre o médico, de imediato, a responsabilidade de um resultado negativo.
Um dos critérios da diferenciação será a distinção entre as intervenções de fácil execução e as intervenções de difícil execução: no primeiro caso, provada pelo paciente a não difícil execução da intervenção, compete ao médico o ónus de demonstrar que o insucesso da operação não é devido à sua própria negligência ou imperícia; no segundo, provada a exigência técnica da intervenção e sua particular dificuldade, caberá ao paciente demonstrar que as técnicas utilizadas não eram idóneas à execução da intervenção ou dos cuidados pós-operatórios — cf. neste sentido, Dias Pereira, op. cit., pág. 716.
Assim, Genericamente a obrigação do médico consiste em prestar ao doente os melhores cuidados ao seu alcance, no intuito de lhe restituir a saúde, suavizar o sofrimento e salvar ou prolongar a vida. Nesta fórmula ampla se compreende a actividade profissional, intelectual ou técnica que tipicamente se pode designar por «acto médico» - cf. Henriques Gaspar, in A Responsabilidade Civil do Médico, in CJ, Ano 111, 1978, pág. 342 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011, acima referido.
Pode dizer-se que, em regra, o médico a só isto se obriga, apenas se compromete a proporcionar cuidados conforme as leges artis e os seus conhecimentos pessoais, somente se vincula a prestar assistência mediante uma série de cuidados ou tratamentos normalmente exigíveis com o intuito de curar. Mas não assegura, nem se obriga a curar o doente uma vez que a cura também depende do concurso de outros factores independentes da vontade do médico e por ele não controláveis (ex. resistência do doente, capacidade de regeneração do seu organismo, estado anímico, etc.). Então, o médico erra não quando não atinge o resultado da cura ou da atenuação do mal ou do sofrimento do paciente, mas quando não utiliza com diligência, perícia, e consideração as técnicas e conhecimentos reconhecidos pela ciência médica, para o concreto caso clínico, que definem, em cada momento, as leges artis. Sempre que assim é, trata-se de uma mera obrigação de meios, que não de uma obrigação de resultado, incumbindo, pois, ao doente o ónus de provar a falta de diligência do médico. Deste modo, se a intervenção médica não produzir o resultado terapêutico esperado, o paciente não poderá, por esta razão,
exigir uma compensação pelos danos sofridos. — cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12¬2011, já mencionado; no mesmo sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-04-2016, relator Silva Salazar, processo n.° … e de 7-03-2017, relator Gabriel Catarino, processo n.° … disponíveis também na base de dados do ITIJ.
Em face da natureza e objectivo do acto médico aferir-se-á se se está perante unia obrigação de meios ou perante uma obrigação de resultado.
De entre o que provado ficou, constata-se que na sequência de um diagnóstico de prolapso urogenital do II grau, a autora/recorrente consultou o aqui recorrido, já com informação clínica para correcção cirúrgica - cf. pontos 18º a 23º da matéria de facto provada.
Em 15 de Fevereiro de 2010, o réu vem a diagnosticar-lhe um prolapso do compartimento anterior de Grau III e do compartimento médio e posterior de Grau II, informando-a de que o tratamento adequado à sua situação clínica é a realização de uma histerectomia para remoção do útero, o que se propôs fazer por via vaginal, intervenção a que a recorrente deu o seu consentimento - cf. pontos 24º a 31º da matéria de facto provada.
A classificação do prolapso consoante a sua gravidade vem descrita no ponto 6º e no ponto 7º ficou assente que os graus I e II são classificados como leves ou moderados. De todo o modo, o prolapso urogenital de grau II tem indicação cirúrgica se for sintomático para a paciente e interferir na sua qualidade de vida (cf. ponto 81.).
A autora sentia um ligeiro desconforto quando andava (cf. ponto 18.) e terá sido esse facto que a levou a consultar um médico ginecologista, que lhe veio a diagnosticar o identificado prolapso urogenital.
Ainda que, naturalmente, a recorrente procurasse a cura para a situação clínica em que se encontrava, importa ter presente que não foi feita prova no sentido de que a histerectomia vaginal seja de muito fácil execução, nem outros dados foram carreados para os autos que permitam qualificar, com precisão, a obrigação em causa.
No entanto, é do conhecimento de qualquer cidadão medianamente informado que qualquer intervenção cirúrgica comporta riscos (ainda que umas mais do que outras), sendo de concluir que no que àquela diz respeito não pode o médico assegurar a cura, estando antes o cirurgião sujeito a uma obrigação de meios, ou seja, não responde pela obtenção de um determinado resultado mas pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação que propôs efectuar. O médico/especialista compromete-se a respeitar a leges artis na execução do acto médico, isto é, a uma actuação de acordo com a prudência, o cuidado e perícia diligentes. Assim, está em causa uma obrigação de meios.
A recorrente colocou em crise, desde logo, o diagnóstico efectuado e a adequação da intervenção proposta.
Os factos provados afastam a afirmação do alegado erro de diagnóstico ou falta de proposta de tratamento adequado alternativo.
A autora/recorrente tinha um prolapso urogenital do compartimento anterior de grau III e dos compartimentos médio e posterior de grau II, apresentava desconforto ao andar e, atenta a sua idade (61 anos à data da prática dos factos), a cirurgia proposta não contenderia com a sua capacidade reprodutora, estando demonstrado que a histerectomia uterina está indicada nos casos de prolapso de grau III, como o diagnosticado à apelante - cf. pontos 15. e 16..
De notar que não resultou provado que, no caso da apelante, existisse uma alternativa viável ao tratamento cirúrgico.
No que à colocação da prótese TVT-O diz respeito, para além da questão atinente à falta de informação sobre a sua colocação (que infra se apreciará), os factos demonstrados revelam que constitui uma medida profiláctica adequada para o problema de incontinência urinária ocultada pelo prolapso do compartimento anterior que a paciente apresentava.
Certo é que por via da intervenção cirúrgica efectuada pelo recorrido em 17-02-2010, dois dias depois, a apelante apresentava uma hemoglobina de 6,8 g/ dl (antes da operação tinha hemoglobina de 12,0 g/ dl), valor este causado pela existência de um hematoma, levando a que a autora tivesse que suportar a transfusão de duas unidades de sangue para correcção da anemia, com prolongamento do internamento.
Para além do hematoma, a apelante padeceu de disfunção miccional com retenção urinária.
No entanto, resultou provado que a retenção urinária, a urgência miccional, a infecção urinária e a verificação de um hematoma, são complicações típicas e passíveis de se verificarem num pós-operatório deste tipo, não se podendo extrair da factualidade apurada que tais eventos se tenham ficado a dever a falta de cuidado ou imperícia por parte do médico.
Não ficou demonstrado que o recorrido tenha infringido qualquer regra técnica que conhecia e devesse aplicar, que não tivesse os conhecimentos necessários para a intervenção que realizou (sendo, aliás, referido que é um médico com vasta experiência neste tipo de cirurgias), que não tivesse usado da diligência, prudência e perícia exigíveis e de que era capaz.
Em consonância com o acima expendido, o paciente/ lesado tem de provar o defeito de cumprimento (por regra, o não cumprimento da obrigação do médico assume a forma de cumprimento defeituoso) e depois tem ainda de demonstrar que o médico não praticou todos os actos normalmente tidos por necessários para alcançar a finalidade desejada.
Quem invoca tratamento defeituoso como fundamento de responsabilidade civil contratual tem de provar, além do prejuízo, a desconformidade (objectiva) entre os actos praticados e as leges artis, bem como o nexo de causalidade entre defeito e dano.
Só após essa prova, funcionará a presunção de culpa (cf. art. 799°, n.° 1 do C. Civil), que o médico pode ilidir demonstrando que agiu correctamente, provando que a desconformidade não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados.
Agir culposamente significa agir de tal forma que a sua conduta lhe deva ser pessoalmente censurada e reprovada, pois em face das circunstâncias concretas do caso, o médico devia e podia ter actuado de modo diferente (a apreciar pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso - cf. art.°s 799°, n.° 2 e 487°, n.° 2 do C. Civil).
No caso da responsabilidade civil dos médicos, o padrão do bom pai de família tem como correspondente o padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes, naquela data - cf. Álvaro Dias, Culpa médica: algumas ideias-força, RPDC, Ano IV, n.° 5, p. 21 e 23, citado por Dias Pereira, op. cit., pág. 703, nota (1708).
Se o desvio do padrão de conduta profissional que era exigível ao recorrido não se mostra comprovado quanto à intervenção de 17-02-2010, seja no atinente à histerectomia vaginal, seja na prevenção da incontinência urinária com colocação da prótese TVT-O, de igual modo tal desvio não se afirma positivamente quanto às subsequentes intervenções.
Da matéria alegada como fundamento da pretensão da autora/apelante não logrou esta provar os factos que invocou tendentes a demonstrar a deficiência de actuação do réu, nomeadamente, que na operação de 15 de Dezembro de 2010 o réu tenha retirado a prótese que tinha colocado em 17 de Fevereiro de 2010, por ter sido manifestamente errónea a sua colocação; que a apelante não necessitava da colocação de qualquer prótese TVT ou TVT-O; que a estenose da cúpula vaginal foi decorrente da intervenção cirúrgica levada a cabo pelo réu; que a estenose da cúpula vaginal apenas ocorreu devido a um mau acompanhamento clínico por parte do réu e a uma intervenção cirúrgica mal efectuada; que foi em consequência das operações levadas a cabo pelo réu que a apelante ficou com uma sinequia vaginal, na união do terço superior da vagina com os dois terços inferiores, na parede central permitindo lateralmente dois túneis até à cúpula vaginal; que esta situação tenha sido provocada por uma má prática levada a cabo pelo réu; que em consequência da conduta deste, não tenha conseguido, desde Fevereiro de 2010, ter relações sexuais;
Em face do acervo provado e não provado não é possível detectar, seja nas consultas, no diagnóstico efectuado, no tratamento proposto ou nas cirurgias realizadas, qualquer desvio do padrão de comportamento diligente e competente, uma qualquer desconformidade da actuação do réu/recorrido face às leges artis, seja por ter praticado as intervenções cirúrgicas de forma deficiente ou por não ter prestado os cuidados necessários e que se impunham no pós-operatório (quanto a este aspecto, aliás, claramente refutado pelo parecer que consta de fls. 57 ¬2. [...] a conduta médica e cirúrgica realizada pareceu-me adequada face aos presumíveis diagnósticos, sendo realizadas sempre por cirurgiões com experiência. 3. As complicações, embora moderadamente graves, foram alvo de cuidados dirigidos para as mesmas. [...] 6. Uma das complicações mais graves referida - hematoma pélvico - não apresenta em Julho de 2012 nenhuma evidencia de persistência, pelo que não deve ser associado directamente às queixas existentes no momento).
Acompanha-se, deste modo, a apreciação jurídica da la instância quando se refere na decisão sob recurso:
[...] nada põe em causa que a técnica cirúrgica - colocação de faixa TVT-0, ou seja, Tension-free Transvaginal Tape, por via transobturadora inside-oltt - é o meio adequado atento o objetivo proposto.
Dado o exposto, conclui-se que não só a intervenção era necessária, como a adequada a prevenir que, realizada a histerectomia, a paciente e aqui autora passasse a sofrer dos sintomas associados à incontinência urinária que, até então, se encontrava oculta.
Acresce que não se provou que, na realização de tal ato médico de colocação da TVT, mediante a técnica adotada, o aqui réu tivesse atuado imprudentemente, aplicando ou executando a técnica cirúrgica com imperícia ou notória desatenção. Se, de facto, o resultado obtido não foi o ideal, porquanto a faixa colocada ficou demasiado tensa, o que causou retenção urinária, não logrou a autora provar que tal se deveu a uma má prática, ou prática em violação das legis artis. Pelo contrário, e como resultou da prova produzida e se fez verter na respetiva motivação, não existe qualquer meio de, à partida, fixar ou prever a tensão adequada da TVT, dependendo o melhor ou pior resultado da experiência do cirurgião, mas, ainda assim, não sendo possível determinar a tensão da faixa sem possibilidade de erro.
No que respeita à última intervenção realizada pelo réu, resultou provado (46 e 47) que foi colocada à autora, em cirurgia realizada em 15.12.2010, uma prótese biológica pélvi—soft de 4 X 7 cm (Bard) rectal. Mas, também resultou provado que em exame anterior, realizado em 29.11.2010 se revelou que a fisionomia autora demonstrava uma C..) perda da configuração em H da vagina, aspetos que são sugestivos de perda parcial do suporte fascial lateral. , e ainda que Há também descida e protrusão anterior do reto (...) aspetos compatíveis com fraqueza do suporte muscular posterior e ligeiro retocele.
Ou seja, a autora padecia de perda de firmeza no pavimento pélvico e retocele, tratando-se de patologia que implicava intervenção para correção, sob pena de incontinência fecal, embora se não possa determinar a gravidade ou probabilidade de tal ocorrência. Sem embargo, não logrou a autora provar que a intervenção a que foi sujeita era desnecessária, ou não constituía o meio adequado a tratar as patologias detetadas; pelo que não se pode deixar de concluir que inexiste evidência de se tratar de tratamento desnecessário ou inadequado.
Termos em que se conclui não existir, por esta banda, qualquer violação de deveres contratuais a cargo do réu, designadamente, não praticou este qualquer facto ilícito subsumivel numa má prática médica.
Nenhum indício revela falta de cuidado, zelo, diligência, imperícia ou falta de conhecimentos técnico-científicos necessários ao exercício da actividade a que se possa causalmente imputar os invocados efeitos danosos.
Ainda que aferidas as complicações pós-operatórias, a sujeição a duas outras intervenções cirúrgicas, os padecimentos com retenção urinária e infecção urinária (esta originando um terceiro internamento, em Junho de 2010), a matéria de facto não permite afirmar um erro médico, um acto ilícito e negligente, que lhes tenha dado origem, nem se divisa uma relação de causa e efeito entre uma eventual incorrecção da primeira cirurgia que tenha originado a necessidade das subsequentes.
Cumpre referir ainda que as circunstâncias não permitem também o recurso à prova por primeira aparência (prova prima fatie).
Reconhecidas as grandes dificuldades do paciente na prova do incumprimento dos deveres objectivos de cuidado, da culpa e do nexo de causalidade e louvando-se no princípio da igualdade das partes e do equilíbrio na garantia do direito à prova, tem-se entendido ser de presumir a culpa do causador do dano quando este surge como um facto excepcional, de acordo com a normalidade da sucessão de acontecimentos e com as regras da experiência, de tal modo que a verificação do dano deva ser tida como manifestação indubitável da escassez da diligência utilizada - cf. neste sentido, Dias Pereira, op. cit., pág. 780.
Ora, já se referiu que as complicações surgidas no pós-operatório e a necessidade de nova intervenção para alívio da uretra, com libertação parcial da prótese, nada têm de extraordinário ou incomum, surgindo antes como complicações típicas da intervenção cirúrgica realizada; assim como comum se apresentou a recidiva do prolapso e o prolapso de um dos compartimentos por força do reforço efectuado noutro (determinante da necessidade da terceira cirurgia efectuada em 15-12-2010).
Por sua vez, a alegada incompletude dos registos clínicos, tal como acima se deixou consignado, ainda que possam revelar um cumprimento defeituoso por banda do médico quanto à amplitude dos deveres laterais inerentes à prestação de tratamento a que se obrigou, certo é que não ficou positivamente demonstrada ou sequer impediu a prova dos actos médicos praticados pelo recorrido.
Cumpre, porém, aferir se o recorrido deve ser responsabilizado pela falta de cumprimento do dever de informação que sobre si impendia e por falta de consentimento para as intervenções que realizou.
Invocou a apelante que a colocação da prótese TVT-O, em 17-02-2010, foi efectuada sem o seu consentimento; que o médico não a informou sobre as razões da necessidade da intervenção realizada em 2-06-2010 e que não consentiu na prótese aplicada em 15-12-2010, nunca tendo apresentado queixas ano rectais.
Sendo hoje reconhecido ao paciente o direito à autodeterminação nos cuidados de saúde, assume especial acuidade o respeito pelo consentimento informado enquanto fundamento para a intervenção na integridade física das pessoas (direito constitucionalmente consagrado - cf. art. 25° da Constituição da República Portuguesa, com repercussão no plano civilístico no art. 70° do C. Civil).
O objectivo principal do dever de esclarecimento é permitir que o paciente faça conscientemente a sua opção, assumindo uma responsabilidade própria perante a intervenção, conhecendo os custos e consequências, bem como os seus riscos.
Entendido o paciente como um consumidor de serviços médicos, ele tem direito a uma informação suficiente, legível, clara, que permita uma boa utilização do serviço e que inclua os riscos para a saúde e a segurança dos consumidores (cf. art. 8° da Lei n.° 24/96, de 31-07 - Lei de Defesa do Consumidor).
No equilíbrio entre o direito ao esclarecimento sobre os riscos e a preservação da serenidade e da confiança no âmbito da relação médico-paciente, há que aferir, por um lado, se foram informados os riscos relacionados com as circunstâncias pessoais ou profissionais do paciente e os riscos prováveis em condições normais (a informação não tem que abranger os riscos muito graves cuja verificação seja manifestamente improvável, salvo se o doente a solicitar; a informação deve ser mais pormenorizada quanto menor for o intuito terapêutico ou quanto mais graves forem os seus riscos)) e, por outro, não há que concluir automaticamente que, no caso de a informação ter sido insuficiente, o médico deve responder por todas as consequências negativas da intervenção (sob pena de se transformar a responsabilidade por violação do consentimento informado numa forma de responsabilidade objectiva).
O consentimento do lesado é causa de exclusão de ilicitude (cf. art. 340°, n.° 1 do C. Civil), sendo um dos requisitos da licitude da actividade médica (cf. art.° 5° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Biomedicina e art.° 3°, n.° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).
O dever de informação recai sobre o médico e o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico, a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento - cf. art.° 157° do Código Penal.
Se o consentimento não existe ou é ineficaz, a actuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada — cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-04-2016 já referido; André Dias Pereira, op. cit., pág. 447.
O consentimento informado revela-se um instituto que visa permitir a autodeterminação dos riscos assumidos e assim uma delimitação do risco que impedem sobre o médico ou sobre o paciente. — Dias Pereira, op. cit., pág. 424.
Significa isto que o consentimento válido transfere para a esfera jurídica do paciente os riscos da intervenção, desde que esta seja realizada diligentemente.
Enquanto facto impeditivo do direito da apelante competia ao réu/recorrido (médico), fazer a prova do consentimento informado — cf neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2015, relatora Maria Clara Sottomayor, processo n° 1263/06.3TVPRT.P1.S1; de 16-06-2015, relator Mário
Mendes, processo n.° 308/09.0TBCBR:c1.S1; de 22-03-2018, relatora Maria da Graça Trigo, processo n.° 7053/12.7TBVNG.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
A este propósito apenas ficou demonstrado que a apelante deu o seu consentimento à intervenção cirúrgica de histerectomia, realizada no dia 17-02-2010 - cf. ponto 31. da matéria de facto provada.
Nas suas alegações de recurso, o réu/apelante sustentou que a recorrente deu o consentimento para as cirurgias realizadas e pretendeu obter a alteração da matéria de facto não provada, de modo a que se tivesse por provado que sempre informou a autora de todo o procedimento, nomeadamente que lhe seria colocada uma prótese/rede; que a informou sobre os órgãos que seriam intervencionados e que esta autorizou a colocação de prótese/rede.
A pretensão recursória do réu/recorrente não mereceu acolhimento no segmento da impugnação da matéria de facto, pelo que os factos alegados quanto ao alcance da informação prestada relativamente à prótese que veio a ser colocada e, bem assim, sobre a autorização da autora para tanto, resultaram não provados.
O réu, médico, não conseguiu provar que cumpriu os deveres de esclarecimento e que agiu ao abrigo de um consentimento justificante (cumpre notar que o consentimento escrito que consta de fls. 177, tal como acima se deixou dilucidado, é insuficiente, pela aposição de afirmações genéricas, vagas e abstractas, para comprovar uma concordância livre e esclarecida quanto ao tratamento proposto, tanto mais que nem sequer incidiu sobre a intervenção inicial de 17-02-2010), pelo que sobre ele recai todo o risco da responsabilidade da intervenção médica (na parte atinente à colocação da prótese, pois que a autora confirmou o seu consentimento limitado à histerectomia), o respectivo fracasso e efeitos secundários não controláveis e, bem assim, outros danos resultantes da intervenção.
Impõe-se concluir que não foi feita prova bastante de um consentimento devidamente informado, por parte da autora/ apelante.
Não tendo sido prestada a informação de que a autora carecia para poder autodeterminar-se a propósito da aplicação de uma prótese TVT-O destinada a prevenir uma incontinência urinária, nem dos efeitos subsequentes previsíveis que poderiam advir da sua colocação (comprovadamente típicos e normais neste tipo de acto cirúrgico), a intervenção médica do réu/recorrido está ferida de ilicitude.
A violação do dever de esclarecimento do paciente é fundamento de responsabilidade médica independentemente de negligência no que respeita à intervenção médica em termos técnicos e independentemente do seu resultado positivo ou negativo (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-03-2018 acima identificado).
O réu sustenta que não foi estabelecido qualquer nexo causal entre o alegado facto ilícito - falta de prestação de informação - e os danos elencados relevados pelo Tribunal a quo, pelo que não deveria ter sido atribuída qualquer indemnização à recorrente.
Na aferição do nexo causal entre a falta do dever de informação e ausência de consentimento informado e os danos verificados, há que ponderar os bens jurídicos protegidos pela exigência de tal consentimento a fim de se aferir quais são os danos ressarcíveis.
Numa intervenção médica arbitrária (sem consentimento ou com consentimento viciado) devem distinguir-se duas situações: 1) verifica-se uma intervenção médica sem consentimento, mas sem quaisquer danos (corporais), ou seja, sem agravamento do estado de saúde do paciente; 2) a intervenção é arbitrária e não obteve êxito, ou verificaram-se riscos próprios da operação, ou provocou consequências laterais desvantajosas. Na primeira são ressarcíveis os danos não patrimoniais; na segunda, são ressarcíveis os danos não patrimoniais e patrimoniais suportados pelo paciente.
Ora, os bens jurídicos tutelados são o direito à integridade física e moral e o direito à liberdade, pelo que os danos ressarcíveis são não só os que resultam da violação da liberdade da vontade, mas também as dores, os incómodos e a lesão da incolumidade pessoal (cf. art. 70° do C. Civil). Assim, a doutrina tem aceitado que o dano moral resultante da intervenção arbitrária merece a tutela do direito - cf. André Dias Pereira, op. cit., pp. 459 e 460.
Este autor estende porém a abrangência do esclarecimento e do consentimento do doente de modo a que não estejam em causa apenas motivos éticos (o direito geral de personalidade), mas também o direito do paciente a decidir auto-responsavelmente acerca da sua situação patrimonial. Como tal, serão ressarcíveis os danos não patrimoniais causados pela violação do seu direito à autodeterminação e à liberdade, mas também por violação da sua integridade física, bem como os danos patrimoniais derivados do agravamento do estado de saúde (cf. art.°s 70° e 483° do C. Civil).
Na concretização dos danos a ressarcir, para além da imputação destes à violação do dever de informar, importa delimitar o âmbito de protecção da norma, ou seja, há que delimitar as esferas de riscos. Há riscos que devem ser sempre suportados pelo paciente (os que por serem de extrema raridade, pela sua imprevisibilidade, pelo conhecimento comum, não têm de ser transmitidos pelo médico); se o risco não revelado tiver conexão com o risco verificado, o médico deve responder pelos danos criados.
Na situação sub judice, a intervenção não foi consentida e teve consequências desvantajosas (disfunção miccional e necessidade de nova intervenção para libertar/aliviar a tensão da prótese/rede). Assim, há lugar a reparação tanto dos danos não patrimoniais provados, como haveria dos danos patrimoniais que se demonstrassem.
Porque a apelante não prestou o seu consentimento, escrito ou verbal, expresso ou tácito, presumido ou hipotético para a prática do acto cirúrgico a que foi sujeita, encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual: ilicitude (incumprimento do contrato de prestação de serviços e de regras de conduta decorrentes da ética médica e do Código Deontológico aprovado pelo Regulamento n.° 14/2009, de 13-01, em vigor à data dos factos - art.°s 44° e 45° - como a obrigação de obter um consentimento informado); a culpa (que se presume, nos termos do art. 799°, n.° 2 do C. Civil); o nexo de causalidade entre o facto - a intervenção médica não consentida - e o dano, porquanto aquela é causa adequada do dano (danos não patrimoniais comprovados nos autos - cf. pontos 65. a 79. da matéria de facto provada; sendo certo que relativamente às despesas mencionadas no ponto 64. nenhuma prova foi produzida quanto à sua correlação com os eventos dos autos, nem essa conexão está demonstrada).
Ainda que não esteja provado que a autora só aceitou submeter-se à intervenção porque não foi devidamente informada quanto aos respectivos riscos, porque, se tivesse sido, não a teria aceitado, não deixa de ser ressarcível o concreto dano consistente na perda da oportunidade de decidir correr os riscos (incontinência urinária, retenção da urina e urgência de micção, associadas à colocação da prótese e necessidade de nova intervenção para alívio da tensão, face à patente dificuldade na concretização dessa aplicação), sendo que a perda dessa oportunidade constitui, em si mesma, um dano causado pela falta de informação devida, em abstracto susceptível de ser indemnizado, e cuja protecção tem como sustentação material o direito à integridade física e ao livre desenvolvimento da personalidade, conforme se referiu (está em causa o poder do titular de decidir em que agressões à sua integridade física consente).
Resta, pois, aferir da justeza do montante indemnizatório atribuído pela 1a instância.
Por força do disposto no n.° 1 do art. 496° do C. Civil os danos não patrimoniais que relevam são aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito e que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porquanto atingem bens que não fazem parte do património do lesado, serão ressarcidos mediante uma obrigação pecuniária imposta ao lesante que, na verdade, será mais uma compensação do que uma indemnização stricto sensu.
No que diz respeito à gravidade do dano, esta há-de aferir-se por um padrão objectivo, muito embora devam ser tidas em conta as circunstâncias do caso concreto, sendo a sua apreciação feita em função da tutela do direito, isto é, o dano deverá ser tão grave que justifique uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
Em consonância com o estatuído no art. 496°, n.° 4 do C. Civil, o montante da indemnização a arbitrar será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494° do mesmo diploma legal, mas com referência a valorações éticas como a boa ponderação, o senso prático e a justa medida das coisas. Haverá também que não olvidar a dupla vertente compensatória e sancionatória da indemnização por danos morais aferida em função do grau de culpabilidade dos agentes e de violação do dever jurídico que visava a tutela do bem afectado.
A fixação da indemnização será efectuada com recurso à equidade mas com consideração do grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (cf. art. 494° do C. Civil), visando sempre, por um lado, a reparação dos danos causados e, por outro lado, a reprovação do agente.
Importa ainda atender às flutuações do valor da moeda e bem assim à necessidade de estas indemnizações não assumirem características miserabilistas, devendo proporcionar um sucedâneo significativo de danos que, por sua natureza, são irreparáveis.
É dizer que o montante da indemnização ...deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta, na sua fixação, todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida - Pires Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, pág. 301.
Com se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-03-2018, a sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto.
No caso dos autos deve-se relevar o seguinte:
Ø a retenção urinária, urgência miccional e infecção urinária são complicações típicas subsequentes ao tipo de procedimento cirúrgico efectuado à autora em 17-02-2010;
Ø a colocação da prótese TVT-O para o que a autora não deu consentimento visou, precisamente, prevenir uma incontinência urinária ocultada pelo prolapso do compartimento anterior;
Ø no segundo dia do pós-operatório, a autora apresentava disfunção miccional com retenção urinária, tendo feito algaliação;
Ø em 2-06-2010, a autora foi sujeita a nova intervenção cirúrgica precisamente para aliviar a tensão da prótese TVT-O;
Ø em 10-06-2010, a autor foi sujeita a internamento de urgência, por retenção urinária com globo vesical e dor na região renal esquerda;
Ø em 15-12-2010 foi colocada na autora uma prótese biológica pélvi-soft de 4 x 7 cm (Bard) rectal;
Ø a autora ficou a padecer de sequelas físicas, e também psicológicas, em consequência das intervenções cirúrgicas e respectivo resultado;
Ø sofreu muitos momentos de desgosto e constrangimento;
Ø viveu angustiada e amargurada;
Ø ficou abalada e perturbada emocionalmente;
Ø sofreu diminuição de auto-estima; sentiu-se diminuída; dava por si a chorar compulsivamente e sentiu-se revoltada;
Ø durante cerca de um ano ficou a padecer de dificuldades urinárias, com retenção e perdas; e a ter que usar fraldas; a padecer de dores;
Ø para realização das operações levadas a cabo pelo réu esteve acamada em unidade hospitalar cerca de 15 (quinze) dias;
Ø era mulher dinâmica e feliz, com muita vontade de viver;
Ø a autora tornou-se uma mulher triste, sem alegria de viver; agressiva e com constantes recaídas depressivas.
É ainda de relevar que à data dos eventos (intervenções cirúrgicas) a autora tinha a idade de 61 anos, sendo que, ainda que relativamente jovem, não deixa de implicar já uma certa penosidade na vivência dos padecimentos relatados, face às limitações de saúde que vão surgindo com o avançar da idade.
Por outro lado, há que ter em atenção que a culpa do réu é uma culpa presumida.
Considerando a natureza da prestação em falta por parte do médico; a repercussão da ausência de informação esclarecida sobre o acto cirúrgico que ia ser praticado e respectivas consequências previsíveis na perda de oportunidade de a autora optar por correr ou não o risco de as suportar; os padecimentos descritos e convocando, à luz de critérios de equidade, os valores indemnizatórios que vêm sendo recentemente acolhidos na jurisprudência (nomeadamente, no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-03-2018, já citado, em que se atribuiu uma indemnização de € 28 000,00, numa situação em que uma paciente com 83 anos, por via de uma perfuração cólica, suportou 49 dias de internamento hospitalar, sofreu dores durante um mês e meio, usou um saco de colostomia durante seis meses, sentiu-se diminuída e triste), esta Relação entende que os padecimentos suportados pela autora devem ser cabalmente relevados e ressarcidos, devendo o montante indemnizatório alertar o agente para a necessidade de um efectivo cumprimento do dever de informação e obtenção de consentimento esclarecido, pelo que deve ser mais significativo do que aquele que foi atribuído na decisão sob recurso.
Em conformidade, fixa-se a indemnização devida pelos danos não patrimoniais suportados pela autora em € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros).
Na fixação do valor equitativo encontrado para ressarcimento dos danos não patrimoniais, este Tribunal teve por referência a data da decisão, pelo que apenas se vencerão juros de mora a partir desta mesma data e não a contar da citação.
Na verdade, o n.° 3 do art. 805° do C. Civil estipula que no caso de crédito ilíquido emergente de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja mora antes da data da citação.
Porém, se a sentença ou decisão que fixe a indemnização actualizar o respectivo valor a momento posterior à data da citação, nomeadamente à data da prolação dessa decisão (ao abrigo do disposto no n° 2 do art.° 566.° do Código Civil), de acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ no acórdão uniformizador de jurisprudência n.° 4/2002, de 09-5-2002, publicado no D. R., 1-A, de 27-6-2002, os juros de mora devidos vencer-se-ão a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação (Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.° 2 do artigo 566° do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigo 805°, n.° 3 (interpretado restritivamente) e, 806°, n.° 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.).
Sobre a quantia arbitrada vencer-se-ão, pois, juros de mora desde a data desta decisão, calculados à taxa legal de 4/prct. - cf. art.°s 804° a 806° do C. Civil e Portaria n.° 291/03, de 8-04.
Não estando demonstrado o nexo causal entre os valores despendidos pela autora e a os factos imputados ao réu e, por outro lado, não tendo resultado demonstrado qualquer facto que revele a provável existência de danos futuros (cf. art. 564º, n.° 2 do C. Civil), improcede, no mais, a pretensão ressarcitória deduzida.
A apelação da autora procede parcialmente.
A apelação do réu improcede na íntegra.
Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527°, n.° 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.° 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1°, n.° 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O recurso interposto pela autora é parcialmente procedente, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a cargo da recorrente e do recorrido, na proporção do respectivo decaimento.
O recurso interposto pelo réu é totalmente improcedente, ficando, pois, a seu cargo as custas (custas de parte).
IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em:
a) alterar a matéria de facto relativamente aos pontos 71º, 72º e 73º dos factos provados (que correspondem, após reordenação cronológica e renumeração, aos actuais pontos 33º, 35º e 48º), julgando, no mais, improcedente a impugnação da matéria de facto deduzida pela autora/recorrente no seu recurso de apelação;
b) julgar parcialmente procedente a apelação da autora e alterar a decisão recorrida, condenando o réu, Dr. L..., no pagamento àquela da quantia de € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal de 4/prct., desde a data da presente decisão;
c) julgar improcedente a apelação do réu.
Custas do recurso interposto pela autora a cargo da recorrente e do recorrido, na
proporção do respectivo decaimento.
Custas do recurso interposto pelo réu, a cargo do recorrente.
Lisboa, 27 de Novembro de 2018
(Micaela Sousa)
(Maria Amélia Ribeiro)
(Dina Maria Monteiro)