Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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 - ACRL de 17-11-2018   Administração desleal. Procedimento cautelar de arresto. Competência Juízo do Comércio.
I. A acção de responsabilidade civil intentada por uma sociedade contra o seu administrador por administração desleal, representando o exercício de um direito social, é da competência do Juízo do Comércio;
II. Assim, o procedimento cautelar de arresto destinado a assegurar a garantia patrimonial de tal crédito da sociedade deve, igualmente, ser proposto no Juízo do Comércio;
III. A tal não obsta a circunstância de o pedido ser dirigido contra o administrador, e caso seja necessário convocar as figuras de desconsideração ou levantamento de personalidade jurídica de sociedade ou de interposição fictícia de pessoa a quem o administrador passou os bens para se eximir ao cumprimento da sua obrigação, também contra esses terceiros que por essa via, possuem os bens;
IV. Retirando-se dos factos alegados a existência de sinais claros de que o requerido - por si ou com a colaboração de outrem - está a tentar ocultar o seu património por forma a tornar consideravelmente difícil ao credor promover a cobrançacoerciva do seu crédito, ou que, de qualquer modo, pretende eximir-se ao cumprimento da obrigação, mostram-se alegados factos susceptíveis de integrar o justificado receio de perda da garantia patrimonial
Proc. 21842/18.5T8LSB-A.L1 1ª Secção
Desembargadores:  Ana Isabel Pessoa - Eurico Reis - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
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Processo n° 21842 /18.5T8LSB-A.1. I- Recurso de Apelação
Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo do Comércio - J2
Recorrentes: T..., TE...., TA..., TC..., TS.... e O...,
Recorridos: Z... e C...
Sumário:
I. A acção de responsabilidade civil intentada por uma sociedade contra o seu administrador por administração desleal, representando o exercício de um direito social, é da competência do Juízo do Comércio;
II. Assim, o procedimento cautelar de arresto destinado a assegurar a garantia patrimonial de tal crédito da sociedade deve, igualmente, ser proposto no Juízo do Comércio;
III. A tal não obsta a circunstância de o pedido ser dirigido contra o administrador, e caso seja necessário convocar as figuras de desconsideração ou levantamento de personalidade jurídica de sociedade ou de interposição fictícia de pessoa a quem o administrador passou os bens para se eximir ao cumprimento da sua obrigação, também contra esses terceiros que por essa via, possuem os bens;
IV. Retirando-se dos factos alegados a existência de sinais claros de que o requerido - por si ou com a colaboração de outrem - está a tentar ocultar o seu património por forma a tornar consideravelmente difícil ao credor promover a cobrança coerciva do seu crédito, ou que, de qualquer modo, pretende eximir-se ao cumprimento da obrigação, mostram-se alegados factos susceptíveis de integrar o justificado receio de perda da garantia patrimonial
Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I. RELATÓRIO.
T..., TE...., TA..., TC..., TS.... e O..., moveram contra P..., Z... e C... procedimento cautelar de arresto, pedindo que seja decretado o arresto das participações sociais do Requerido P... nas sociedades Requerentes, bem como seus depósitos bancários e aplicações financeiras em quaisquer contas bancárias.
Mais requereram o decretamento do arresto dos imóveis e do veículo automóvel que identificaram, cuja propriedade se mostra inscrita a favor da sociedade requerida e de C..., respetivamente.
Veio então a ser proferido, em 15.10.2018, despacho que indeferiu liminar e parcialmente o procedimento cautelar, no que respeita às Requeridas, nos seguintes termos:
Nos termos do disposto no artigo 590.°, n.° 1 do Código de Processo de Civil, por se verificar uma excepção dilatória de incompetência em razão da matéria passo a proferir o seguinte despacho liminar:
Do indeferimento liminar (parcial) por incompetência em razão da matéria do Juízo de Comércio de Lisboa
T... e Outras, todas melhor identificadas a fls. 6 verso, intentaram o presente procedimento cautelar de arresto contra P..., Z... e C..., todos melhor identificados a fls. 7, alegando, em síntese, que:
- O Requerido é administrador da 1.° Requerente, que é a holding do GT..., sendo gerente das demais Requerentes, que, em conjunto com a 1 :a Requerente (holding), compõem o GT...;
- O Requerido é responsável perante as Requerentes por violação do seu dever fiduciário de lealdade, ao abrigo dos artigos 64.°, n.° 1, alínea b), e 72.°, n.° 1, ambos do CSC, pois transferiu, sub-reptícia e sistematicamente, avultadas quantias das empresas do GT... para as suas contas pessoais e utilizou fundos próprios das empresas para despesas pessoais.
- O valor total dos prejuízos que já foram detetados ascende a mais de três milhões e setecentos mil de euros;
- Apesar de ter desviado pelo menos EUR 3.719.092,38, o activo do Requerido é composto apenas pelas participações sociais detidas nas Requerentes, que integram o GT..., no valor de EUR 43.702,80;
- Os restantes bens do Requerido foram dissipados, estando na titularidade formal de familiares e de sociedades-veículo;
- Em Outubro de 2017, o Requerido constituiu a. Z..., uma sociedade-veículo sem qualquer atividade real, meramente destinada ao parqueamento de imóveis, da qual passou a ser administrador único;
- Confidenciou que colocou a titularidade formal das participações sociais da Z... em nome das suas filhas, para assim ocultar o seu património aos seus credores;
- No dia 9 de Janeiro de 2018, o Requerido alienou dois imóveis de que era então proprietário à Z...;
- O Imóvel I corresponde à fração autónoma designada pelas letras AB, localizada no edifício II, segundo andar direito, piso dois, destinada a habitação, com acesso pela Rua das ..., Lote …, T2, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.° ..., da freguesia de Santa Maria dos Olivais, inscrito na matriz predial urbana do Parque das Nações sob o artigo ....°, com o valor patrimonial tributário de EUR 220.279,80 (duzentos e vinte mil duzentos e setenta e nove euros e oitenta cêntimos);
- O Imóvel II corresponde à fração autónoma, designada pelas letras AC, localizada no edifício II, segundo andar esquerdo, piso dois, destinada a habitação, com acesso pela Rua das ..., Lote …, T2, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.° ..., da freguesia de Santa Maria dos Olivais, inscrito na matriz predial urbana do Parque das Nações sob o artigo ....°, com o valor patrimonial tributário de EUR 202.658,63 (duzentos e dois mil seiscentos e cinquenta e oito euros e sessenta e três cêntimos);
- O Requerido possui ainda, por intermédio da sociedade-veículo Z..., um terceiro imóvel (Imóvel III), corresponde à fração autónoma designada pelas letras AD, localizada no Edifício II, terceiro andar direito, piso três, destinada a habitação, com acesso pela Rua das ..., Lote …, T2, descrita na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n.° ..., da freguesia de Santa Maria dos Olivais, inscrito na matriz predial urbana do Parque das Nações sob o artigo ....°, com o valor patrimonial tributário de EUR 244.927,28 (duzentos e quarenta e quatro mil novecentos e vinte e sete euros e vinte e oito cêntimos);
- O Requerido apropriou-se do veículo automóvel de marca Tesla, pago pela 1.° Requerente;
- Tendo registado a alienação do veículo automóvel de marca Tesla, com a matrícula ..., a favor da companheira do Requerido, C..., em 27.03.2018.
Concluíram pedindo que seja decretado o arresto das participações sociais do Requerido P... nas sociedades requerentes, bem como seus depósitos bancários e aplicações financeiras em quaisquer contas bancárias.
Mais requereram o decretamento do arresto dos imóveis e do veículo automóvel acima identificado, cuja propriedade se mostra inscrita a favor da sociedade requerida e de C..., respectivamente.
A competência material do Tribunal traduz a medida da jurisdição interna atribuída a cada tribunal atendendo à matéria da causa que lhe é submetida.
Essa competência é determinada à luz da estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulado na petição inicial, no momento em que a mesma é intentada.
A competência material do Juízo de Comércio encontra-se prevista no artigo 129.° da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.° 62/2013, de 26 de Agosto.
Estabelece este preceito que:
1 - Compete às secções de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 - Compete ainda às secções de comércio julgar as impugnações dos
despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 - A competência a que se refere o n.° 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
No caso, nos presentes autos as Requerentes pretendem o arresto de bens dos Requeridos, que identificam.
Para o efeito alegaram, em suma, serem credoras do 1.° Requerido -P... - crédito esse fundado ha violação do seu dever de fiduciário para com as mesmas, em face da sua qualidade de administrador ou gerente.
Ora, estabelece o art. 619° do Código Civil, sob o seu n°1: «O credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo.»
Trata-se de um meio de conservação da garantia patrimonial, que consiste na apreensão judicial de bens do devedor, quando exista justo receio de que este os inutilize ou os venha a ocultar (cfr. Antunes Varela in Das Obrigações em geral, vol. II, 5° edição, pg. 461).
Esta figura encontra-se adjectivamente regulada nos artigos 391° a 393° do Código de Processo Civil.
São seus requisitos gerais, como já ensinava Alberto dos Reis e com inteira actualidade face à nova redacção do Código de Processo Civil (in Código de Processo Civil Anotado, II vol. pg. 10):
1° - A probabilidade da existência do crédito, que corresponde à prova da sua existência, considerado este, não como certo ou indiscutível, mas quando existam grandes probabilidades da sua verificação e;
2° - Existência de receio justificado de perda da garantia patrimonial.
A verificação destes requisitos conduzirá à aparência do direito e de um periculum in mora,' cuja alegação e prova compete ao requerente do arresto.
O segundo requisito traduz-se numa fórmula ampla e genérica que procura abarcar todas as situações casuísticas mais apontadas - e reguladas noutros sistemas legais - as suspeitas de fuga do devedor, o receio de subtracção de bens ou risco de perda das garantias do crédito.
Pelo que, o justo receio terá, evidentemente, que se configurar em razões objectivas, convincentes e capazes de justificar a pretensão drástica do requerente, que vai subtrair, se procedente a providência cautelar, os bens à livre disposição do seu titular, não bastando a alegação de meras convicções ou desconfianças de carácter subjectivo.
Por outro lado, sob a epígrafe Relação entre o procedimento cautelar e a ação principal estabelece o artigo 364.° do Código de Processo Civil que:
1 - Exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva.
2 - Requerido antes de proposta a ação, é o procedimento apensado aos autos desta, logo que a ação seja instaurada e se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa. - sublinhado nosso.
No caso, é manifesto que a acção principal a que corresponderá o presente procedimento cautelar de arresto quanto ao Requerido P... não poderá deixar de ser uma acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, intentada nos termos do disposto nos artigos 72.° e 75.° do Código das Sociedades Comerciais, para a qual este Juízo é materialmente competente.
Contudo, no que concerne à acção principal a intentar contra as demais Requeridas - Z... e C... - a mesma não poderá deixar de ser uma acção de impugnação pauliana, uma vez que as Requerentes quanto a estas não se apresentam como credoras.
Ora, a acção principal de impugnação pauliana em causa, manifestamente, não se vê subsumida à previsão do art. 129° da LOSJ, sendo da competência da Instância Central Cível de Lisboa, Juízo Local ou Central conforme o valor da acção.
Tendo em conta a dependência do procedimento cautelar face à acção principal de que dependerá e lançando mão do critério de determinação, sempre chegaríamos à conclusão que falece a este Juízo de Comércio a competência em razão da matéria para preparar e julgar os presentes autos quanto à 2.° e 3.° Requeridas.
A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal, a qual consubstancia uma excepção dilatória, não suprível, que é de conhecimento oficioso e pode ser arguida até ao trânsito em julgado da sentença proferida sobre o fundo da causa, nos termos dos artigos 96.°, alínea a), 97.°, n.° 1 e 98.°, todos do Código de Processo Civil.
A incompetência absoluta determina a absolvição dos Requeridos da instância ou o indeferimento liminar da petição inicial, dependendo da fase processual em que é constatada e quando o processo compreender despacho liminar, o que é o caso - arts. 99.°, n.° 1, 577°, al. a), 578°, 278° n°1, al. a) e 590° n°1, todos do Código de Processo Civil.
Mesmo que assim não se entendesse, certo é que as Requerentes omitiram em absoluto a alegação de qualquer periculum in mora quanto às 2.° e 3.° Requeridas.
Se não, vejamos.
Aquilo que se visa com o arresto é evitar a perda da garantia patrimonial do credor, ou seja, existe esse justo receio quando o devedor tenha o propósito de adoptar ou adopte uma conduta, indiciada por factos concretos, relativamente ao seu património susceptível de fazer temer pela solvabilidade do devedor para satisfazer o direito do credor.
Revertendo ao caso concreto, no descrito circunstancialismo fáctico alegado não resulta, em nosso entender, que se mostre verificado o justo receio de perda da garantia patrimonial, nada de concreto se alegando no sentido de terem sido praticados ou tentados actos de dissipação dos imóveis e automóvel referidos que possam fundar um receio de perda da garantia patrimonial.]
Na verdade, cremos, na senda de jurisprudência vasta sobre a matéria que é admissível o decretamento de arresto de bens de terceiro como preliminar de acção de impugnação pauliana, dependendo o decretamento do arresto, entre o mais, da verificação dos elementos que fundam aquela acção, cfr. entre outros, Acs. do Tribunal da Relação de Lisboa de 1113/2010, proc. 2121109.5TBCSC-A.LI-6 e de 6/10/2009 proc. 12/09.9TBBBR-A.LI-1, in www.dgsi.pt, os quais acompanhamos de perto.
Com efeito e como é sabido, os procedimentos cautelares são sempre instrumentais de uma acção de que dependem, já instaurada ou a instaurar, sob pena de caducidade.
No caso, vista a factualidade alegada a situação reconduz-se à invocação por parte das requerentes de um direito de crédito seu, garantido, como na generalidade dos casos acontece, pelo património do devedor/1.° Requerido, património esse esvaziado dos únicos bens que lhe eram conhecidos e cujo arresto é pedido, por ter sido transmitido onerosamente para a esfera jurídica da segunda e terceira requeridas, para impedirem a requerente de satisfazer o seu invocado crédito.
A acção de que dependeria este procedimento é, assim, no essencial, uma acção de impugnação pauliana, sujeita ao regime do art. 610° e seguintes do C. Civil, e que tem associada um segmento necessariamente condenatório do primeiro requerido e que constitui o reconhecimento do crédito e a possibilidade da mesma o ir executar no património dos terceiros, segunda e terceira requeridas.
Como se pode ler no primeiro dos supra citados acórdãos, a acção de impugnação pauliana é uma acção meramente declarativa (cfr. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, II, 434) e não constitutiva. Não provoca qualquer alteração na ordem jurídica - o bem transmitido não retoma ao património do devedor, não sai do património do adquirente, mas pode aí ser executado e, consequentemente, pode ser, preventivamente, objecto de arresto, com vista a ulterior conversão em penhora.
Efectivamente e conforme deriva do estatuído expressamente no n.° 1 do art. 616° do C. Civil, Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.
Posto isto, diremos que sendo alegada matéria que a provar-se seria bastante para a verificação do invocado crédito sobre o primeiro requerido e também para fundar um direito das requerentes a executar este seu crédito no património dos segundo e terceira requeridos; sucede, porém, que nada de concreto alegou para que se possa concluir que relativamente a estas existe qualquer perigo de perda da garantia patrimonial.
Ora, como muito bem se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17 de Maio de 2011, Processo n.° 9087/11.0T2SNT.L1-1, disponível para consulta in www.dgsi.pt, Uma nota final se impõe ainda deixar bem vincada, quando em causa está precisamente, e ainda, a situação a que alude o n° 2 , do art° 619°, do CC (ser o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor).
É que, porque para todos os efeitos o adquirente de bens do devedor não é o devedor da relação obrigacional ( e nem sequer devedor subsidiário, como sucede com o fiador) a que alude o n° 1, da mesma disposição legal e outrossim o devedor a que alude o n°1, do art. 406°, do CPC ), não faz sentido exigir-se que relativamente a ele se demonstre o periculum in mora quando reportado ao justo receio de perda da garantia patrimonial a que alude o art° 601° do CC , e quando direccionado tal juízo para a generalidade dos bens que integram o seu património, devendo antes o risco de perda da garantia patrimonial ser de aferir tão só em face do património do devedor transmitente , que não do mero adquirente.
Na verdade , como resulta da apontada disposição legal do art° 601°, do Código Civil , a inexecução da obrigação ,sujeitando é certo o devedor a consequências de ordem patrimonial, a respectiva coercibilidade jurídica que ao credor assiste exerce-se tão só sobre o património do devedor, sendo pois sobre os bens deste que há-de ele agir para obter a manu militari ( Cfr. Pessoa Jorge, in Direito das Obrigações, aafdl, 2° Vol., pág. 3 ).
Daí que, como bem se nota no Ac. deste Tribunal da Relação de Lisboa de 30/4/2009), relativamente ao requisito do periculum in mora, a garantia patrimonial cujo receio de perda, se justificado, determina a procedência do arresto, é a garantia constituída pelo património do devedor - e não do mero terceiro adquirente dos seus bens - como resulta da interpretação conjugada dos artigos 601° e 619° do Cód. Civ. e 406° e 407° do Cód. Proc. Civil.
De resto, também no âmbito de uma acção pauliana (cfr. artigo 611°, do Código Civil ), o que releva é o património do devedor, incumbindo ao terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado ( e não o próprio terceiro) possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.
Porém, porque o terceiro perante a relação obrigacional, uma vez julgada procedente a impugnação, não pode obstar a que o credor execute no seu património o bem objecto do acto impugnado ( cfr. art°s 616°, n°1, e 818°, ambos do CPC ), tendo este último direito à sua restituição na medida do seu interesse , no âmbito da providência do Arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor ( cfr. n°2, do art° 407°, do CPC ) justifica-se que, pelo menos no tocante ao bem objecto do acto impugnado , se exija a alegação e a prova indiciária ( ónus a cargo do credor) do justo receio da prática pelo terceiro de actos, v.g., de alienação e/ou oneração.
É que, o terceiro adquirente, na sequência do arresto, passa a estar obrigado a manter incólume o bem arrestado, numa situação equiparada à do depositário (guardar o bem e proceder à sua restituição para eventual execução, quando tal lhe for exigido - artigos 1185° CC e 854° CPC), servindo pois a providência para o vincular, desde logo, às eventuais consequências da impugnação pauliana.
Dir-se-á assim, em conclusão, que devendo é certo o juízo de aferição do requisito do arresto do justo receito de perda da garantia patrimonial , incidir apenas sobre a generalidade do património do devedor/obrigado, deverá outrossim incidir ele sobre o bem concreto de terceiro/não devedor quando se pretenda possibilitar a respectiva execução na sequência de procedência de impugnação do acto de transmissão do obrigado/devedor . - sublinhado nosso.
Ora, no caso sub judice, constata-se que na petição inicial nada se afirma no sentido que a segunda e terceira requeridas estejam em vias de alienar ou onerar os imóveis e automóvel cujo arresto é requerido, pelo que se constata que não foram alegados quaisquer factos que permitam concluir pela verificação do pertinente requisito do receio justificado de perda/dissipação do bem a arrestar, e cujo acto de transmissão do devedor para terceiro poderá ser objecto de impugnação judicial.
Incumbiria, nesta sede, às Requerentes alegar, e posteriormente, provar tal factualidade, o que manifestamente não fizeram.
Convidar as Requerentes à alegação de tal realidade era possibilitar-lhe a composição de uma causa de pedir cujo ónus lhe competia nos termos do artigo 5.°, n.° 1 do Código de Processo Civil, criando-lhe um favorecimento em detrimento dos Requeridos.
Nessa medida, e também por estas razões, sempre seria de indeferir liminarmente o presente procedimento cautelar de arresto quanto às Requeridas Z... e C....
Destarte, pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 99.°, n.° 1, 576.° n°2, 577° al. a) e 590.°, n.° 1, todos do Código de Processo Civil, dada a incompetência (parcial) em razão da matéria deste Juízo de Comércio, decido indeferir liminarmente o requerimento inicial quanto às Requeridas Z... e C... (o destacado é nosso).

Inconformadas com esta decisão, dela apelaram as Requerentes,
formulando as seguintes conclusões:
1. A Recorrida Z... foi constituída a mando do ora Recorrido P... - sendo, aliás, este Recorrido o seu administrador único, cuja vontade conforma - e tem como finalidade única ser uma sociedade-veículo instrumentalizada pelo Recorrido para parqueamento de imóveis, permitindo, desta forma, que o Recorrido P... oculte o seu património dos credores.
2. O presente arresto deve incidir também sobre os bens ocultados através da sociedade-veículo Z..., ao abrigo do instituto da desconsideração da personalidade jurídica (por imputação), da proibição de
fraude à lei e do abuso de direito - por força da conjugação dos artigos 64.°, n.° 1, alínea b), e 72.°, n.° 1, do CSC com os artigos 21.°, 294.° e 334.° do CC - na medida em que a responsabilidade solidária de sociedades-veículo, por desconsideração da personalidade jurídica, tem como corolário a possibilidade de arresto dos respetivos bens.
3. A Jurisprudência Superior acolhe pacificamente estas situações de responsabilidade. solidária de sociedades-veículo, por desconsideração da personalidade jurídica - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.11.2017, relator Alexandre Reis, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.11.2010, relator Fonseca Ramos, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.,
4. Distinguindo o arresto por desconsideração da personalidade jurídica do arresto associado a uma ação de ação de impugnação pauliana.
5. No que respeita à Recorrida C..., esta foi instrumentalizada para ocultar bens que na realidade pertencem ao Recorrente P..., pelo que a sua responsabilidade, enquanto testa-de-ferro, é baseada nos institutos da interposição fictícia de pessoas e também da proibição de fraude à lei - artigos 64.°, n.° 1, alínea b), e 72.°, n.° 1, do CSC, em conjugação com os artigos 21.°, 240.° e 294.° do CC devendo também os seus bens ser arrestados.
6. É notório que nem a Recorrida Z... nem a Recorrida C... podem ser consideradas como verdadeiros terceiros para efeitos de aplicação do instituto da impugnação pauliana, devendo, contrariamente ao defendido pelo Douto Tribunal a quo, ser aplicados os institutos da desconsideração da personalidade jurídica e da interposição fictícia de pessoas supra referidos.
7. Assim, é patente que os Juízos de Comércio são competentes em razão da matéria para preparar e julgar o presente arresto também em relação às Recorridas Z... e C..., porquanto a ação principal a intentar contra todas os Recorridos será uma ação declarativa de responsabilidade dos administradores, estendida às Recorridas Z... e C..., em regime de solidariedade, por via dos institutos acima referidos.
8. Não considerar os Juízos de Comércio competentes será permitir ao Recorrido P... instrumentalizar pessoas e sociedades-veículo, utilizando-os como seus testas-de-ferro e ocultando assim o seu património dos credores, defraudando, de modo intolerável, a lei e impedindo a ação da justiça.
9. Do supra exposto resulta também que, para os efeitos dos presentes autos, as Recorridas Z... e C... não têm qualquer autonomia real em relação ao Recorrido P..., sendo este o verdadeiro titular dos bens que se encontram na titularidade - apenas formal - daquelas.
10. Neste sentido, o periculum in mora alegado e considerado indiciariamente provado pelo Douto Tribunal a quo relativamente ao Recorrido P... - cfr. pontos 26 a 33, 41 a 48, 51, 53 e 54 da Sentença de arresto proferida no dia 15.10.2018 (ref.° citius 380390216), bem como a Fundamentação de Direito da referida Sentença, em particular as páginas 29 e 30 da mesma - estende-se, necessariamente, às Recorridas Z... e C..., não fazendo sentido impor às Recorrentes que aleguem quaisquer factos concretos acrescidos neste âmbito, imputáveis unicamente às mencionadas Recorridas.
11. Dito de outro modo, se as Recorridas Z... e C... mais não são do que uma longa manus do Recorrido P..., é manifesto que os requisitos de decretamento da providência cautelar requerida - que se verificam relativamente a este último -, se verificam, por maioria de razão, em relação àquelas.
12. Entender o contrário seria pressupor que não existe uma desconsideração da personalidade jurídica e uma interposição jurídica de pessoas, aceitando e interiorizando o embuste fraudulento do Recorrido P....
Concluíram que deve o presente Recurso de Apelação ser considerado procedente por provado e, por sua vez, ser revogado o douto Despacho de Indeferimento Liminar Parcial e, consequentemente, ser decretado o arresto dos bens da titularidade formal das Recorridas Z... e C... enumerados no Requerimento Inicial.
Não foram apresentadas contra-alegações, desde logo porque não se procedeu, ainda, à citação das Recorridas, permanecendo os autos, quanto às mesmas, numa fase prévia ao contraditório.
II. QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635°, n° 4, e 639°, n° 1, do CPC sem prejuízo das questões de que o tribunal «ad quem» possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso, importa apreciar e decidir, se é o Tribunal Recorrido o competente para apreciar o pedido de arresto relativamente às Requeridas, e no caso de se concluir pela afirmativa, se se mostram alegados factos integradores dos pressupostos de que depende a procedência do procedimento cautelar de arresto, designadamente o periculum in mora.
III. Fundamentação.
111.1. Da competência material.
A matéria do governo das sociedades assume, na sociedade atual, em que a competitividade das empresas é indiscutivelmente fator de desenvolvimento humano e de riqueza, importância primordial.
A crise e a escassez de recursos que vivemos sublinhou a importância da matéria e, em particular, do respeito pelos deveres fundamentais dos administradores.
Os administradores das sociedades têm os poderes necessários para promover o interesse das sociedades, e têm de estar efetivamente ao serviço das sociedades, sob pena de se comprometer a respetiva competitividade.
Ciente da importância do papel dos administradores no contexto da economia global, o legislador alterou, na reforma de 2006, operada pelo Dec. Lei n.° 76-A/2006, de 29 de Março, o artigo 64° do Código das Sociedades Comerciais, reconhecendo e individualizando de forma expressa, os dois deveres fundamentais que recaem sobre os administradores e gerentes de sociedades - o dever de cuidado (ou diligência em sentido estrito) e o dever de lealdade.
Da respetiva concretização resultam deveres mais específicos que recortam o espaço de ilicitude da conduta dos administradores.
O dever de cuidado consiste na obrigação de os administradores cumprirem com diligência as obrigações derivadas do seu ofício-função, de acordo com o máximo interesse da sociedade e com o cuidado que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares.
O dever de lealdade surge em situações de conflito de interesses entre a sociedade e o administrador. Encontra-se definido nos artigos 180°, n.° 3, 254° e 398° do Código das Sociedades Comerciais, respetivamente para as sociedades em nome coletivo, as sociedades por quotas, e anónimas, sendo o penúltimo aplicável às sociedades anónimas, por via do disposto no artigo 398°, n.° 5 do mesmo diploma.
Este dever baseia-se genericamente no respeito pela confiança que no administrador foi depositada e nos princípios de honestidade e respeito. É definido pela doutrina como um dever acessório de conduta integrado no princípio da boa-fé, consagrado no artigo 762°, n.° 2 do Código Civil, sendo, pois, uma relação fiduciária, sendo a confiança o elemento essencial inerente à própria relação jurídica.
A violação dos deveres contemplados no artigo 64° do Código das Sociedades Comerciais tem como sanção a responsabilidade civil dos gerentes ou administradores, designadamente, e no que ao caso interessa, para com a sociedade, verificados os requisitos da responsabilidade civil contratual - prática de ato que consubstancie a inobservância de dever legal ou contratual, dano resultante do ato ou omissão, nexo de causalidade entre a ação ou omissão, e o dano verificado, e culpa, sendo que esta, por força do artigo 72°, n° 1, do referido Código, se presume.

É sabido que a incompetência do tribunal em razão da matéria constitui, nos termos do disposto nos artigos 576°, ns. 1 e 2 e 577°, al. a) do Código de Processo Civil, exceção dilatória que, procedendo, conduz ao indeferimento liminar, quando haja lugar a despacho liminar, nos termos do disposto no artigo 590°, n.° 1 do Código de Processo Civil ou à absolvição da instância.
A competência em razão da matéria afere-se pelos termos em que o autor propõe ao tribunal que decida a questão, definida esta pela causa de pedir, pelo pedido e pela natureza das partes.
Aprecia-se, assim, face à pretensão formulada pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de pedir, fixa-se no momento da propositura da ação, em conformidade com o artigo 38°, n.° 1 da Lei 62/2013, de 26.08, irrelevando nessa sede, qualquer tipo de indagação acerca do mérito do pedido.
Nos termos do disposto no artigo 64.° do Código de Processo Civil, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, definindo, as leis da organização judiciária, as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções de competência especializada (cf. artigo 65° do Código de Processo Civil e 40°, n° 2 da Lei n.° 62/2013, de 26.08 [LOSJ]), sendo que, se a matéria da causa não se integrar em qualquer um daqueles Tribunais especializados, a causa é da competência do Juízo Local ou de competência genérica, que assumem uma competência residual.
Com efeito, estabelece-se na al. a) do n° 1 do artigo 130° da LOSJ que os juízos locais cíveis(...) e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (cfr. também art. 80° da LOSJ).
Por outro lado, o artigo 1 17.° dispõe que:
1 - Compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;
2 - Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.
Assim, no plano interno, o poder jurisdicional divide-se por diversas categorias de tribunais - que se situam no mesmo plano horizontal -, de acordo com a natureza da matéria das causas.
Na base da atribuição de competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram.
Nos termos do disposto no artigo 128, n.° 1, al c) da LOSJ, compete aos Juízos de Comércio, designadamente, conhecer das ações relativas ao exercício de direitos sociais, competência que abrange os respetivos incidentes e apensos, nos termos do n.° 3 do mesmo artigo.
A definição do universo de ações que podem considerar-se relativas a direitos sociais tem sido objeto de larga controvérsia na jurisprudência portuguesa4.
Conforme pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.12.2008, a lei não define o que são direitos sociais. Dela resulta, porém, que tais direitos se inscrevem na esfera jurídica dos sócios das sociedades em razão de nestas participarem por via de contrato e que se traduzem em posição jurídica envolvente da protecção dos seus interesses societórios.
Entendemos que direitos sociais não são apenas os direitos de que são titulares os sócios: a sociedade, os sócios, os credores sociais e terceiros, podem ser titulares de direitos sociais, porque expressamente conferidos pela lei societária (se o não forem pelo contrato de sociedade).
No que ao caso dos autos interessa, os artigos 72° a 79° do Código das Sociedades Comerciais regulam especificamente a responsabilidade civil dos administradores pela administração da sociedade.
A ação de responsabilidade contra os administradores tem carácter de ação social, na medida em que é dirigida à proteção e defesa do património ou dos interesses sociais em geral, mediante o ressarcimento do dano sofrido (cf. artigo 72° do CSC).
Por isso, se atribui legitimidade ativa, em primeiro lugar, à sociedades (ação ut universi), subsidiariamente aos sócios ou acionistas (ação ut singuli) como titulares de um interesse indireto na defesa do património social, e, em última linha, aos credores sociais (ação sub-rogatória) que; contando com o património social como garantia dos seus créditos, se prejudicam com a diminuição daquele (cf. artigos 75°, 77° e 78° do CSC).
Tal ação de responsabilidade corresponde ao exercício de um direito social, desde logo porque a possibilidade de instauração da mesma está consagrada na Lei societária, e porque pressupõe o dano da sociedade causado pela violação de normas legais destinadas à proteção do património social, e consequentemente, dos sócios e dos credores sociais.
Para além do mais, a complexidade e especificidade destas ações de responsabilidade civil, recomendam que se reconheça aos tribunais de especializados em matéria societária - os Juízos do Comércio - a competência para apreciar tais litígios societários.
Com acerto considerou, pois, o Tribunal recorrido, que o Juízo do Comércio é competente para a ação da sociedade, prevista nos artigos 72° e 75° do CSC.
Sendo a instrumentalidade e subordinação a uma ação definitiva - na qual serão tutelados, em definitivo, os direitos invocados pelo requerente características das providências cautelares - características das providências cautelares, constitui princípio geral o de que a competência para a tramitação dc um qualquer procedimento cautelar, preliminar de uma ação, reside no tribunal de competência genérica ou especializada onde esta última deva ser instaurada.
Tratando-se de uma providência cautelar de arresto, e porque a mesma foi proposta anteriormente à propositura da ação principal, importa considerar o disposto nos artigos 364°, n.° 1 do Código de Processo Civil e 128°, n.° 3 da LOSJ - que dispõem que a mesma deve ser proposta no tribunal em que deva ser proposta a ação respetiva.
Importa ainda ter presente que a coligação, que basicamente se configura como uma acumulação, no mesmo processo, de pedidos que poderiam ser deduzidos separadamente, tal como a cumulação de providências cautelares, pressupõem requisitos de ordem material (conexão objetiva), e de natureza formal, salientando-se a unicidade ou uma relação de prejudicialidade entre as causas de pedir, no caso de vários pedidos, uma relação de prejudicialidade ou dependência entre eles, e a verificação dos
pressupostos de competência absoluta e a compatibilização das formas de processo (cf. artigos 36°, 37° e 555° do Código de Processo Civil).
Expostas estas considerações, regressemos ao caso dos autos.
As ora Requerentes pretendem acautelar um crédito, que alegam ser relativo ao montante que o Requerido, enquanto foi administrador das Requerentes, retirou do património das sociedades, em proveito próprio, dessa forma violando o dever de lealdade para com as mesmas.
Ora, em face da alegação das Requerentes, dúvidas não restam de que a ação principal a propor contra o Requerido consubstancia a ação «ut universi», prevista nos artigos 72° e 75°, n.° 1 do Código das Sociedades Comerciais, sendo indubitável, como se disse e como reconheceu o Tribunal Recorrido, que competente para conhecer desta acção contra o aqui Requerido, e consequentemente, do procedimento cautelar dela dependente, é o Juízo do Comércio.
Para além do Requerido, as Requerentes dirigiram a providência cautelar contra Z... e C....
Entendeu-se na decisão recorrida que no que concerne à acção principal a intentar contra as demais Requeridas - Z... e C... - a mesma não poderá deixar de ser uma acção de impugnação pauliana, uma vez que as Requerentes quanto a estas não se apresentam como credoras ação que não se vê subsumida à previsão do artigo 129° da LOSJ, sendo da competência da Instância Central Cível de Lisboa, Juízo Local ou Central conforme o valor da acção.
As Recorrentes discordam deste entendimento, alegando que conforme exposto nos artigos 92.° a 97.° e 105.° do Requerimento Inicial, a Recorrida Z... foi constituída a mando do Recorrido P... - sendo, aliás, este Recorrido o seu administrador único, conforme resulta do Documento n.° 32 do Requerimento Inicial -, tendo como finalidade única ser uma sociedade-veículo instrumentalizada pelo Recorrido para parqueamento de imóveis, permitindo, desta forma, que o Recorrido P... oculte o seu património dos credores.
Nestes termos, alegam que a responsabilidade da Requerida Z... tem fundamento direto nos institutos da desconsideração da personalidade jurídica, por força da conjugação dos artigos 64.°, n.° 1, alínea b), e 72.°, n.° 1, do Código das Sociedades Comerciais, da proibição de fraude à lei (artigos 21.'1 e 294.° do Código Civil) e do abuso de direito (artigo 334.° do Código Civil), sem prejuízo de também se poder invocar o instituto da interposição fictícia de pessoas - artigos 240.° (simulação) e 294.° do Código Civil
Acrescentam que os factos descritos no Requerimento Inicial consubstanciam um caso clássico de atentado a terceiros através de utilização de testas-de-ferro, reconduzível à modalidade de desconsideração da personalidade- jurídica para efeitos de imputação (que se contrapõe à modalidade de desconsideração para efeitos de responsabilidade dos sócios).
Já no que respeita à Recorrida C..., referem que conforme referido nos artigos 98.° a 100.° e 106.° do Requerimento Inicial, é de mencionar que também esta foi instrumentalizada para ocultar, no seu património, bens que, na realidade, pertencem ao Recorrente P....
Sustentam, pois que a sua responsabilidade, enquanto testa-de-ferro, é baseada nos mencionados institutos da interposição fictícia de pessoas - artigos 240.° (simulação) e 294.° do Código Civil - e da proibição de fraude à lei - artigos 21.° e 294.° do mesmo diploma.
Refutam, pois, que relativamente a qualquer das Requeridas, a ação a propor seja de impugnação pauliana, antes defendendo que será a de responsabilidade contra o Requerido, do qual as Requeridas são uma longa manus, na justa medida em que foram instrumentalizadas e utlizadas como testas de ferro pelo Requerido para ocultarem o seu património dos credores.
E concluem, por via disso, que é também o Juízo do Comércio o competente para apreciar o pedido no que respeita à Requerida.
Vejamos então.
A atribuição de personalidade jurídica à pessoa coletiva - artigo 5° do Código das Sociedades Comerciais - constitui uma ficção jurídica que, no que concerne às sociedades comerciais, visa que possam aceder à condição de sujeitos de direito, assumindo-se, por tal via, como centros autónomos de relações jurídicas, distintos e autónomos dos sócios respetivos.
Por assim ser, o princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode
ser encarado, em si, como um valor absoluto e, quando estejam em causa práticas ilícitas - contrárias à ordem jurídica -, censuráveis e com prejuízo de terceiros. A personalidade coletiva não pode ter uma finalidade redutora, não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção dessas mesmas práticas
Quando a personalidade colectiva seja usada de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da personalidade colectiva: é o que a doutrina designa pela desconsideração ou superação da personalidade jurídica colectiva, também designada por disregard of legal entity ou piercing/lifting the corporate veil.
No que ao caso dos autos interessa, tem-se entendido que um grupo de casos em que tal figura deve relevar é o do recurso a 'festas de ferro' que autorizaria a procurar o real sujeito das situações criadas, ou, ainda, a da confusão de esferas jurídicas, que se verifica «quando, por inobservância de certas regras societárias ou, mesmo, por decorrências puramente objetivas, não fique clara, na prática, a separação entre o património da sociedade e o do sócio ou sócios».
Também a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas de duas ou mais pessoas, normalmente entre a sociedade e os seus sócios (ainda que não tenha de ser obrigatoriamente assim); a subcapitalização da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objeto social e prosseguir a sua atividade; e as relações de domínio grupal têm sido consideradas situações em que se verifica que a personalidade coletiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios.
Assim, quando ocorre o aproveitamento ilícito desta autonomia para obter a fuga à imputação pessoal e à responsabilidade patrimonial por parte dos sócios de sociedades comerciais rompe-se o véu da pessoa coletiva, para imputar a autoria e a responsabilidade a quem é o real titular das posições jurídicas.
Como é sabido, e diversamente do que sucede, por exemplo, no direito brasileiro, não existe no nosso ordenamento jurídico positivo um preceito que tutele de modo genérico a desconsideração da personalidade jurídica, embora a figura não deixe de encontrar arrimo em princípios gerais positivamente consagrados, como são os da boa-fé e do àbuso de direito, e também possam ser vistos como seus afloramentos concretos alguns casos tipificados de responsabilidade dos sócios, como são os previstos, p. ex., nos artigos 58° n° 1 a), 58° n° 3 e 84° do CSC ou, até, no artigo 378° do CT.
Assim, a justificação da sua atuação, pelo menos em grande parte dos casos, emerge da exigência do princípio da boa-fé, cuja dimensão é aflorada, no essencial do que aqui importa, pelo artigo 762°, n° 2, concatenado com o artigo 334°, ambos do Código Civil.
Assim, o recurso ao instituto do levantamento da personalidade coletiva visando corrigir comportamentos ilícitos de sócios que abusaram da personalidade coletiva da sociedade atuando quer em abuso de direito, quer em fraude à lei ou com violação das regras de boa-fé e em prejuízo de terceiros, apenas é possível quando a conduta contrária às normas e/ou aos princípios gerais envolva um juízo de reprovação/censura e não exista outro fundamento legal que invalide tal conduta.
Trata-se do princípio da subsidiariedade do recurso à desconsideração da personalidade jurídica - nos ordenamentos jurídicos em que este mecanismo não encontra consagração legal expressa, a subsidiariedade impõe-se porque as regras de desenvolvimento do direito reclamam o recurso às soluções legais vigentes que se mostrem aptas a resolver satisfatoriamente o problema da tutela dos credores sociais - apenas na sua ausência ou insuficiência sendo permitido o recurso a este mecanismo correspondente à concretização de princípios gerais de direito.
Desconsiderar, nesta sede, significa derrogar do princípio legal da separação, que só pode admitir-se a título excecional, para certos casos concretos. A desconsideração consiste, na verdade, numa correcção das consequências jurídicas da imputação à sociedade, segundo as regras gerais, de certos actos que, pelo seu carácter abusivo ou pela sua finalidade extra-societária, se entende que, excepcionalmente, devem obrigar outras pessoas (ou outros patrimónios).
A interposição fictícia de pessoas verifica-se quando um dos sujeitos que surge como parte de um determinado negócio representa um papel de mero testa de ferro, isto é, não adquire quaisquer direitos ou deveres materialmente, todos os efeitos jurídicos decorrentes da conclusão negocia/ projectam-se na esfera jurídica de outrem, externo ao negócio público e formal.
Celebrado o contrato entre as partes, o outorgante aparente no negócio (testa de ferro ou homem de palha) figurará apenas como titular aparente, titular nominal, com o objetivo de subtrair ao conhecimento de terceiros o nome de uma das partes envolvida no contrato ou de violar a lei.
Requisitos da interposição fictícia de pessoas, são, assim, os seguintes:
1. Que haja duas ou mais pessoas a quem interesse a realização de um determinado ato jurídico;
2. Que todos ou alguns dos interessados não queiram ou não possam realizar diretamente realizar;
3. Que exista um intermediário por meio de quem o ato se pratique e com quem os diretamente interessados estabeleçam relações jurídicas;
4. Que esse intermediário não tenha interesse próprio na realização do acto em que intervém como parte.
Na interposição fictícia há, assim, uma simulação relativa subjetiva para contornar uma alegada impossibilidade de negociação direta com a outra - a alegada simulação não consiste na supressão de um sujeito real, mas antes na intervenção de um sujeito aparente, fictício.
Sendo a venda fictícia ou simulada, o negócio real ou dissimulado será objeto de tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido concluído sem dissimulação - é o que resulta do disposto no artigo 241°, n°1 do Código Civil, havendo que ter em conta que o n°2 do citado artigo 241°, do Código Civil, preceitua que se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.
De tudo o que acaba de expor-se, conclui-se que as Requerentes sustentaram no requerimento inicial a verificação dos pressupostos de afastamento da separação de patrimónios, entre o Requerido e cada uma das Requeridas, no que diz respeito ao veículo Tesla formalmente em poder da Requerida C..., e no que respeita aos imóveis, também formalmente inscritos a favor da sociedade Z....
Na versão dos factos apresentada pelas Requerentes, tudo se passa como se os bens cujo arresto pretende, se encontrassem na esfera do Requerido: encontram-se substancialmente na esfera patrimonial do Requerido, e apenas por manipulação da personalidade jurídica de cada uma das Requeridas se encontram formalmente na titularidade de cada uma destas últimas.
Pretendem ver reconhecido que os bens se mantém na titularidade do Requerido, para os verem arrestados, a fim de evitar a perda da garantia patrimonial do seu crédito.
E a possibilidade de arresto de bens passados para o património de terceiro, para o devedor se eximir ao pagamento, através da convocação da figura da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica, foi expressamente admitida no Acórdão da Relação de Coimbra de 18.12.2013, que aqui seguimos de perto, e que enquadrou tal situação no âmbito das que o artigo 392°, n.° 2 do Código de Processo Civil prevê, ao admitir o arresto contra bens de terceiro, desde que sejam alegados os factos que tornem provável a procedência da impugnação da aquisição
E dessa forma, não vemos que a competência material, que vimos já, no caso do Requerido, é claramente do Juízo do Comércio, não caiba, relativamente às demais Requeridas - (apenas) demandadas para verem afastada, no que aos bens em causa nos autos, respeita, a sua autonomia jurídico-patrimonial quanto ao Requerido - igualmente àquele Tribunal.
É o mesmo o crédito, e é a conduta do Requerido, que alegadamente dissipa os bens de diversas formas, que fundamenta o pedido de arresto dos bens que formalmente pertencem às Requeridas. Tudo para que o alegado crédito da sociedade possa ser ressarcido, dessa forma entrando o respetivo
valor no património das Requerentes. Estamos, pois, ainda, no que às Requeridas respeita, no âmbito do exercício de um «direito social».
O Tribunal recorrido, assim não entendeu, ao enquadrar a pretensão das Requerentes no que respeita às Requerida, para fazer regressar os bens ao património do Requerido, no quadro da impugnação pauliana. E, com esse fundamento, julgou que não era materialmente competente, entendimento que, no que respeita à referida acção de impugnação pauliana, teve acolhimento no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.05.2013.
Porém, não é dessa forma que surge formulada a pretensão das Requerentes, e, reforça-se, é quanto a esse pedido e causa de pedir desenhados pelo autor na petição inicial, e independentemente do mérito do mesmo, que cabe aferir da competência material. Não pretendem as Requerentes, apenas que os bens em causa sejam restituídos ao património do devedor (o Requerido) na medida do seu interesse - antes pretendem ver declarado que apenas por fraude à lei se encontram formalmente na esfera das Requeridas, quando pertencem realmente ao Requerido, constituindo, consequentemente garantia do crédito das Requerentes.
Concluindo-se desta forma que o que se pretende é ver reconhecido o crédito relativamente ao Réu - fundado na responsabilidade civil do mesmo por atos praticados enquanto administrador - e diluída a separação de personalidade jurídica, entre Requerido e Requeridas para considerar que os bens que estão sob o domínio das Requeridas, são do Réu, não pode deixar de entender-se que a acção não exorbita o campo do exercício de direitos sociais e por isso, é também o juízo do Comércio o Competente para conhecer da acção principal com esses fundamentos, relativamente às Requeridas, e, consequentemente, do procedimento cautelar destinado a assegurar o efeito útil daquela, nada obstando à demanda conjunta dos três.
Procede, pois, nesta parte, a apelação.
Conforme .supra anunciado, em face da procedência da apelação quanto à competência material, cabe agora averiguar se os factos alegados, a provarem-se, permitem - ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida - concluir pela verificação do pressuposto do arresto consistente na verificação do receio justificado de perda de garantia patrimonial.
Neste ponto, impõe-se recordar que para o decretamento de uma providência cautelar basta que, através de um exame e instrução perfunctórios da questão (summaria cognitio), se conclua pela séria probabilidade da existência do direito invocado e pelo justificado receio de um prejuízo irreparável ou de difícil reparação, caso não sejam adotadas as medidas cautelares que se requerem.
Nas providências antecipatórias o tribunal antecipa, ainda que numa composição provisória, a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal.
O arresto é a providência cautelar gizada para acautelar a garantia patrimonial do crédito.
Como bem se refere na decisão recorrida, são requisitos do arresto, por um lado, a provável existência do crédito invocado pela requerente, e, por outro, o justo receio de perda da garantia patrimonial deste crédito - artigo 391° do Código de Processo Civil.
No que tange ao justo receio da perda da garantia patrimonial o mesmo pode derivar dos mais diversos fatores ou causas tais como: o acentuado decréscimo da solvabilidade do devedor, a dissipação ou extravio de bens, a desproporção entre o seu ativo e passivo, a natureza ocultável do património, a ocorrência de procedimentos anómalos reveladores do propósito de não cumprir.
E como supra se aludiu, o artigo 392°, n.° 2 do Código de Processo Civil confere ao credor o direito de requerer arresto contra o adquirente de bens do devedor, devendo, para tanto, caso não se mostre já impugnada a aquisição, alegar os factos que tornem provável a procedência da impugnação.
Ora, no caso dos autos, afigura-se que os factos alegados, a demonstrarem-se, permitiriam fundar o justo receio de perda de garantia patrimonial. Na verdade, perante a alegação de manifesta desproporção entre o activo e o passivo do Requerido e a consequente insuficiência patrimonial para fazer face ao ressarcimento do crédito, o comportamento que imputam ao Requerido, concretizado na continuada apropriação de meios e bens das sociedades em proveito próprio, e a dissipação de património, designadamente (mas não só - veja-se o alegado nos pontos 70 a 73 do requerimento inicial) através da instrumentalização das Requeridas, que, inversamente, se deixam instrumentalizar para esse efeito, no que aos concretos bens cujo arresto vem peticionado respeita (cf. artigos 92 a 97 e 105, 67, 68, 98 a 100 e 106, do requerimento inicial), não pode deixar de considerar-se que haverá sinais claros de que o Requerido, em parte com a colaboração das Requeridas, ocultam o património do primeiro de modo a tornar consideravelmente difícil a cobrança coerciva do crédito em que as Requerentes sustentam a sua pretensão e a cujo cumprimento pretendem eximir-se.
Sendo assim, e havendo, pois, mais do que uma solução plausível para a questão de direito, designadamente a que as Recorrentes invocam, e que consiste na alegação da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade Requerida e na interposição fictícia da Requerida C..., importa, para a prolação de uma decisão conscienciosa e justa, apurar a matéria substantiva constante do requerimento inicial das Requerentes, devendo os autos, para esse efeito, prosseguir a sua tramitação.
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida e decretam que o Tribunal recorrido é também competente para a tramitação e o julgamento do procedimento cautelar no que respeita aos pedidos formulados contra as Requeridas Z... e C..., e mais determinam o prosseguimento dos autos relativamente também às pretensões deduzidas contra essas duas Requeridas, salvo se a tanto outros fundamentos obstarem.
Sem custas.
Registe e notifique.
Comunique de imediato à primeira instância.

Lisboa, 17/11/2018
(Ana Pessoa)
(Eurico José Marques dos Reis)
(Ana Maria Fernandes Grado)