A declaração de insolvência priva o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência;
Tal privação não corresponde a uma efetiva incapacidade ou ilegitimidade do devedor insolvente, mas apenas a uma indisponibilidade relativa deste;
Declarada a insolvência caducam os contratos de mandato que não se mostre serem estranhos à massa insolvente, pelo que se o devedor mantém poderes de disposição e administração sobre os bens objeto do litígio não se justifica que o contrato de mandato que celebrou no âmbito do mesmo caduque;
Estando em causa ação em que a A., entretanto declarada insolvente, pede, além do mais, que lhe sejam entregues bens que pertencem à massa insolvente, deve a mesma ser substituída na causa pelo administrador de insolvência, caducando o mandato forense que havia sido conferido.
Proc. 17510/16.0T8SNT.L1 7ª Secção
Desembargadores: Conceição Saavedra - Cristina Coelho - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Proc. n°. 17510/16.0T8SNT.L1
Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste
Juízo Central Cível de Sintra — Juiz 5
Apelante: LMV...
Apelados: MMV... e VMP...
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I- Relatório:
LMV... veio, em 22.9.2016, propor contra MMV... e VMP..., ação declarativa pedindo a condenação dos RR. a restituir-lhe duas frações autónomas que identifica num prédio sito no B… Clube de Campo, concelho de S…, bem como a pagar-lhe a quantia de e 315.900,00. Invoca que é proprietária juntamente com o ex-marido, LAB..., das referidas frações e que os RR. as utilizam gratuitamente desde Dezembro de 2006, por cedência não autorizada da sociedade Corrente Negocial-Empreendimentos e Investimentos Imobiliários, S.A., a quem a A. e o referido ex-marido haviam prometido vender as mesmas. Diz ainda que, atento o valor locativo mensal daqueles imóveis, os RR. se locupletaram à custa dos proprietários, até à data da instauração da ação, com a quantia global de E 315.900,00. Requer a intervenção provocada do referido ex-marido, entretanto declarado insolvente.
Contestaram os RR., invocando que a A. foi declarada insolvente por sentença proferida em 23.9.2016, já transitada em julgado, pelo que perdeu a mesma a possibilidade de administrar os seus bens, cabendo a sua representação ao administrador da insolvência. Concluem, em consequência, pela sua ilegitimidade ativa. Impugnam, no mais, a factualidade alegada, sustentando que assumiram formalmente a posição de promitentes-compradores no aludido contrato que a A. e o ex-marido incumpriram, informando os RR., em Junho de 2012, que não conseguiam pagar ao BES a dívida que aquelas frações garantiam. Em Novembro de 2009, por sua vez, o BES deduziu contra aqueles execução hipotecária respeitante às ditas frações, pelo que os RR. instauraram, por sua vez, em 2.7.2012 contra os mesmos ação em que requereram o reconhecimento do direito à resolução do contrato, a restituição do sinal pago em dobro (€ 280.000,00), bem como o reconhecimento do seu direito de retenção sobre tais imóveis e a serem pagos com preferência sobre os demais credores. Reclamaram, entretanto, os ora RR. os referidos créditos sucessivamente nos processos de insolvência de LAB... e da aqui A., créditos que ali foram reconhecidos. Concluem pela improcedência da causa.
Respondeu a A. que quando interpôs a ação não tinha sido ainda declarada insolvente, sendo que o insolvente mantém poderes para mover ações judiciais que, como a presente, não envolvam diminuição do seu património. Conclui pela improcedência da arguida exceção de ilegitimidade. Por despacho de 22.3.2018, foi determinada a notificação do Administrador da Insolvência nomeado à A. para que viesse requerer nos autos o que tivesse por conveniente em 10 dias.
Em 3.5.2018, foi proferido o seguinte despacho: É do conhecimento oficioso deste Tribunal que a aqui A. LMV... foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 31 de Outubro de 2017, proferida nos autos de Processo n° 1…1/16.0T2SNT pendente na Secção de Comércio da Instância Central — Sintra — J4, desta Comarca.
Assim, com fundamento na declaração de insolvência da aqui A. e nos termos do disposto no artigo 110° n° 1 do CIRE declaro a caducidade do mandato forense conferido nos autos.
Notifique.
Notifique o Sr. Administrador de Insolvência identificado a fls. 82 verso para, em face do despacho supra, querendo vir requerer o que tiver por conveniente.
Inconformada, interpôs recurso a A., apresentando alegações que culminam com as seguintes conclusões que se transcrevem:
a) Vem o presente recurso interposto do douto despacho que decretou a extinção do mandato forense conferido pela Autora, por caducidade, nos termos do artigo 110° do CIRE.
b) Ora, a doutrina e a jurisprudência tem entendido que que, mesmo após o trânsito em julgado de sentença que declarou a insolvência, o insolvente tem capacidade judiciária em ação de indemnização contra terceiros, com vista ao ressarcimento de danos, porquanto a propositura de ação não só não envolve qualquer diminuição do património do insolvente, como até poderá em caso de sucesso, aumentar o seu património.
c) Veja-se a este propósito o acórdão do STJ — Processo : 497/14.1TBVLG.S decidiu que a declaração de insolvência não obriga à extinção do mandato forense, e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no processo 4572/13.1TBSTB.E.1, in , dgsi.pt, entre outros com igual entendimento.
d) Com efeito, deve ser considerado válido o mandato forense conferido pela ora Recorrente.
Pede a revogação da decisão recorrida.
Não se mostram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II- Fundamentos de Facto:
A factualidade a ponderar é a que acima consta do relatório.
III- Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
A questão única a ponderar é a de saber se deve considerar-se válido o mandato forense conferido pela A. no âmbito dos presentes autos em virtude desta ter sido declarada insolvente. Analisando.
Sem prejuízo do especialmente estabelecido no título X do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), a declaração de insolvência priva o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência (art. 81, n° 1, do C.I.R.E.). Por sua vez, integra a massa insolvente todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (art. 46 do C.I.R.E.).
Tal privação justifica-se, naturalmente, pelo interesse dos credores e pela necessidade de salvaguardar o património que responde pela satisfação dos respetivos créditos.
Assim, o insolvente passa a ser representado, quanto aos bens da massa, pelo administrador da insolvência.
Não estará em causa uma efetiva incapacidade ou ilegitimidade do devedor insolvente, mas sim uma indisponibilidade relativa, conforme se observou no Ac. do STJ de 7.11.2017. Como se refere no aludido aresto: (...) pode dizer-se que o administrador da insolvência assume o controlo da massa insolvente essencialmente por razões inerentes ao interesse objetivo da massa (ou seja, essencialmente no interesse dos credores), e não por razões ligadas a qualquer limitação legal - incapacidade ou ilegitimidade - do devedor.
A privação referida não abrange, assim, os direitos exclusivamente pessoais, os bens excluídos da massa insolvente, como os bens impenhoráveis ou os abrangidos por uma separação de patrimónios, nem se estende a negócios obrigacionais que não responsabilizam a massa, em relação aos quais o devedor conserva a liberdade de disposição.
A questão que aqui se coloca não tem que ver com a posição da A. na causa, matéria que não é apreciada na decisão recorrida. Muito menos terá que ver com qualquer juízo sobre a bondade ou viabilidade da pretensão formulada na ação.
Trata-se somente de ajuizar da validade do mandato forense conferido pela A. após a dita declaração de insolvência.
Em todo o caso, as questões não estão dissociadas, pois se o devedor mantém poderes de disposição e administração sobre os bens objeto do litígio não se justifica que o contrato de mandato que celebrou no âmbito do mesmo caduque.
Dispõe o art. 110, n° 1, do C.I.R.E., que: Os contratos de mandato, incluindo os de comissão, que não se mostre serem estranhos à massa insolvente, caducam com a declaração de insolvência do mandante, ainda que o mandato tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, sem que o mandatário tenha direito a indemnização pelo dano sofrido.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, não caducam, por efeito da declaração de insolvência do mandante, os contratos relativos a negócios de caráter não patrimonial ou relativos a bens que não integram, nem possam vir a integrar a massa insolvente e, no que se refere ao mandato forense, a questão da sua caducidade só se coloca quando respeitem a litígios cujo objeto não se mostre estranho à massa insolvente .
Interrogando-se ainda sobre a caducidade automática nestes casos, defendem estes autores, como salienta a apelante: (...) As particularidades do exercicio de tais mandatos, pelo conhecimento técnico e prático que envolvem os litigios a que respeitam, conduzem a considerar uma resposta negativa à questão acima formulada. Acresce, como argumento adiconal particularmente relevante para sustentar a solução da não caducidade, a circunstância de, se a tutela dos credores exigir solução diferente, estarem ao alcance do administrador de insolvência os meios para a assegurar. Em verdade, sendo ele o substituto do insolvente em todas as acções pendentes, mesmo que não apensas ao processo de insolvência, pode sempre revogar o mandato (cfr. n° 3 do art.° 85°). (...).
No caso, a A. pede a condenação dos RR. a restituir-lhe duas frações autónomas de que se reclama proprietária juntamente com o ex-marido, LAB..., cuja intervenção nos autos requer, invocando que os RR. as utilizam gratuitamente desde Dezembro de 2006, por cedência não autorizada da empresa a quem a A. e o referido ex-marido haviam prometido vender as mesmas. Pede ainda a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia de E 315.900,00, valor com que os RR., segundo diz, se locupletaram à custa dos proprietários, atento o valor locativo mensal daquelas frações.
Tendo ainda especialmente em conta, como vimos, o teor da contestação apresentada nos autos, forçoso é concluir que o mandato forense conferido a duas Advogadas, por procuração com poderes forenses gerais e especiais (fls. 7 verso), que foi utilizado para interpor a presente ação não é estranho à massa insolvente, contra o que defende a apelante, posto que esta reclama precisamente na causa, além de um montante indemnizatório, a entrega de bens que integram a massa insolvente.
Veja-se, de resto, que os RR. apenas não deduziram pedido reconvencional porque, segundo referem, já instauraram previamente a ação própria contra os proprietários das frações e reclamaram o crédito que entendem assistir-lhes nos processos de insolvência de cada um deles.
Desta conclusão ressalta, aliás, uma outra que tem que ver com a circunstância de operar neste caso o indicado art. 81, n° 1, do C.I.R.E., uma vez que, com a declaração de insolvência da A. (e do seu ex-marido), é ao(s) administrador(es) da(s) insolvência(s) que compete administrar os referidos bens no lugar daqueles. De resto, estamos no domínio de uma ação de natureza exclusivamente patrimonial intentada pelo devedor em que o administrador da insolvência substitui o insolvente (art. 85, n°s 1 e 3, do C.I.R.E.).
Quer isto significar que estão em causa os interesses gerais dos credores da massa insolvente, não podendo a A. reclamar para si em juízo, a entrega de tais bens.
Deste modo, cremos que a especial natureza do exercício do mandato forense não afasta, pelo menos neste caso, o regime da caducidade previsto no n° 1 do art. 110 do C.I.R.E..
Haverá também aqui um especial interesse dos credores na condução da lide, cumprindo compaginar o interesse processual respetivo com os restantes processos em que se debate, direta ou indiretamente, a mesma questão ou questão conexa.
Se cabe ao administrador da insolvência prosseguir com a causa no lugar do devedor, deverá o mesmo constituir, em nome da massa insolvente, mandatário para o efeito, o que não exclui, naturalmente, a possibilidade de recondução daquele que acompanhou a causa até à declaração da insolvência, se assim for pretendido.
É de concluir, em suma, face à declaração de insolvência da A., atenta a natureza da causa e aos interesses que nela se discutem, que caducou o mandato forense conferido nos autos, como se declarou na decisão recorrida.
Improcede o recurso.
IV- Decisão:
Termos em que, e face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela A..
Notifique.
Lisboa, 5.2.2019
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
Sumário do Acordão (da exclusiva responsabilidade da relatora — art. 663, n° 7, do C.P.C.)
A declaração de insolvência priva o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência;
II- Tal privação não corresponde a uma efetiva incapacidade ou ilegitimidade do devedor insolvente, mas apenas a uma indisponibilidade relativa deste;
III- Declarada a insolvência caducam os contratos de mandato que não se mostre serem estranhos à massa insolvente, pelo que se o devedor mantém poderes de disposição e administração sobre os bens objeto do litígio não se justifica que o contrato de mandato que celebrou no âmbito do mesmo caduque;
IV- Estando em causa ação em que a A., entretanto declarada insolvente, pede, além do mais, que lhe sejam entregues bens que pertencem à massa insolvente, deve a mesma ser substituída na causa pelo administrador de insolvência, caducando o mandato forense que havia sido conferido.