Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Cível
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 - ACRL de 10-10-2019   Maior Acompanhado.
1 - Na determinação concreta do regime a aplicar a maior acompanhado, a escolha da representação geral não exclui a subsistência de campos residuais de manutenção do livre exercício de direitos, quando não apurados, em concreto, factos que revelem a incapacidade para esse exercício.
2 - Tais factos porém podem resultar por interpretação do conjunto dos factos provados. Se está provado que alguma pessoa sofre de esquizofrenia, com défice cognitivo moderado a grave, doença que a impede de governar a sua pessoa e bens, se encontra internada em instituição de saúde mental há 20 anos, não sabe ler nem escrever, não consegue escolher a roupa que vai vestir, frequenta actividades mas sempre acompanhada por outra pessoa, e não é capaz de tomar decisão para as tarefas elementares do quotidiano, deste conjunto factual resulta a incapacidade irreversível de entender e tomar decisões relativamente a casamento, constituição de relações de união de facto com protecção legal, recurso a técnicas de procriação assistida e recusa de tratamentos médicos.
Proc. 1135/18.9T8FNC.L1 6ª Secção
Desembargadores:  Eduardo Petersen Silva - Cristina Neves - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Processo n° 1135/18.9T8FNC.L1
Apelação
Relator: Eduardo Petersen Silva
1° Adjunta: Desembargadora Cristina Neves
2° Adjunto: Desembargador Manuel Rodrigues
Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido e sob impulso do estabelecimento de saúde mental, instaurou, ao abrigo do disposto nos artigos 138°, n° 1 e 141°, ambos do Código Civil e 891° e seguintes do Código de Processo Civil, acção especial de interdição por anomalia psíquica em relação a MJF..., solteira, nascida a …/1964, natural do E…, concelho de F..., residente na C…, F..., alegando, em síntese, que a Requerida sofre, desde pelo menos os 20 anos de idade, de psicose esquizofrénica, doença que lhe determina completa e permanente incapacidade para governar a sua pessoa e os seus bens; em virtude da doença de que padece encontra-se, desde há cerca de 20 anos, ininterruptamente internada em estabelecimento de saúde mental.
Concluiu, pedindo que se declare a Requerida interdita por anomalia psíquica e a nomeação de tutor.
Juntou certidão de nascimento da Requerida, informação médica e informação da instituição onde a Requerida se encontra internada.
Foi anunciada a propositura da acção, nos termos do artigo 892° do C. P. Civil.
Em virtude de a Requerida se encontrar impossibilitada de receber a citação, foi citado na pessoa da curadora provisória, que não deduziu contestação e uma vez que o Ministério Público é o Requerente, solicitou-se à Delegação da Ordem dos Advogados a indicação de defensor oficioso, nos termos do artigo 894°, n° 1 e 21, n° 2, do CPC.
Não foi deduzida contestação.
Foi realizado exame médico à Requerida.
Na pendência da presente acção, entrou em vigor a Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto (Lei que criou o regime jurídico do maior acompanhado, e eliminou os institutos de interdição e da inabilitação), de aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes, conforme nº 1 do artigo 26 da referida lei, e ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 26º da citada lei procedeu-se às adaptações necessárias no processo, passando o mesmo a seguir os termos do regime jurídico do maior acompanhado.
Procedeu-se à audição pessoal e directa da Requerida, conforme consta do auto de fls. 50 e vº.
Seguidamente foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta:
Pelo exposto, nos termos do artg. 900 do CPC decide-se:
1.Julgar a presente acção procedente por provada e, em consequência:
1.1. Declarar MJF..., beneficiária de medida de
acompanhamento, sujeita ao regime da representação geral (cfr. artgs. 138 e 145, nº 2, al. b), 1ª. parte, do Código Civil).
1.2. Designar a Irmã Superiora da instituição CSC..., no F..., cargo actualmente ocupado pela Irmã Superiora, FMS..., acompanhante da beneficiária. (cfr. art° 143, nº 2, al. i) do Código Civil);
1.3. Atribuir à acompanhante designada em 1.2., poderes de representação geral da beneficiária, que segue o regime da tutela, com as necessárias adaptações por força da entrada em vigor da Lei n° 49/2018, de 14/8, designadamente os poderes para receber pensões e/ou subsídios e geri-los em benefício e de acordo com as necessidades da beneficiária.
1.4. Consignar que a acompanhante designada em 1.2., no exercício da sua função, deverá privilegiar o bem estar e a recuperação da acompanhada, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação, devendo manter um contacto permanente com aquela, visitando-a, no mínimo, uma vez por semana. 1.5. Designar Maria Miquelina Ornelas Fernandes Teixeira, irmã da Beneficiária, acompanhante da beneficiária, para os actos não conferidos ao acompanhante designado em 1.2.
1.6. Consignar que a acompanhante designada em 1.5., no exercício da sua função, deverá promover o contacto da Requerida/beneficiária com os irmãos, através de visitas a esta na instituição sempre que seja possível.
1.7. Dispensar a nomeação de Conselho de Família (cfr. artg 900, nº 2 do C.Proc. Civil).
1.8. Consignar que, para os efeitos do disposto no artg. 2189, al. b) do Código Civil, a beneficiária é incapaz de testar.
1.9. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artg. 1601, al. b) do Código Civil, a presente decisão de declaração de acompanhamento da beneficiária é impedimento dirimente absoluto para o casamento.
1.10. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artg. 22, al. b) da Lei nº 7/2001 de 11/5, a situação de acompanhamento de maior, declarada pela presente sentença, impede a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto.
1.11. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artg. 69., nº 2 da Lei 32/2006, de 26/7, a situação de acompanhamento de maior, declarada pela presente sentença, veda o recurso a técnicas de procriação medicamente assistida.
1.12. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artg. 59., nº 3 da Lei 36/98, de 24/7 (Lei de Saúde Mental), a situação de acompanhamento de maior, declarada pela presente sentença, não faculta o exercício directo de direitos pessoais.
1.13. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artg. 13 da Lei 36/98, de 24/7 (Lei de Saúde Mental), a situação de acompanhamento de maior, declarada pela presente sentença, ocorre restrição de direitos pessoais, pelo que o acompanhante tem legitimidade para requerer as providências previstas na referida lei.
1.14.Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artg. 42, nº 1 do Dec. Lei nº 272/2001, de 13/10, o acompanhado não pode aceitar ou rejeitar liberalidades a seu favor.
1.15. Consignar que o tribunal autoriza o internamento da beneficiária na CSC..., no F..., onde actualmente reside (cfr. artg. 148, nº 1 do Código Civil).
1.16. Consignar que não existe notícia de que a beneficiária tenha outorgado testamento vital e/ou procuração para cuidados de saúde (cfr. artg. 900, nº 3 do CPC e artgs4g, al. b), 14, nº 3 e 16 da Lei 25/2012, de 16/7).
1.17. Fixar em cinco anos o prazo de revisão da medida aplicada, nos termos e para os efeitos previstos no artg. 155 do Código Civil.
1.18. Determinar a publicação da presente sentença em sítio oficial (cfr. artg
893, nº 1 e 2 do CPC e artg. 153, nº 1 do C.C.J.
Fixa-se à causa o valor de 30.000,01 f (artgs. 296, nº 1 e 303, nº 1 do CPC).
Sem custas, face à isenção de que beneficia — artg. 42. nº 1, al. I) do RCP.
Registe e notifique.
Inconformado, o Ministério Público interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
- O Regime Jurídico do Acompanhamento a Maior (...), instituído pela Lei 49/2018 de 14 de Agosto, tem como objectivo, plasmado no n2 1 do artigo 1402 do Código Civil, o bem-estar do acompanhado e a sua recuperação, em pleno exercício de todos os seus direitos,
- constituindo a restrição de tais direitos um regime excepcional, cuja imposição, por sentença, deverá justificar-se mediante cada situação concreta.
- Por isso, o nº 1 do artigo 145º do Código Civil limita o acompanhamento ao estritamente necessário e o nº 1 do artigo 147º do mesmo Diploma Legal, estatui, como princípio geral, a liberdade no exercício dos direitos pessoais dos acompanhados, tais como os de casar, de estabelecerem relações de união de facto, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados.
- O direito de se constituir família e de contrair casamento, em condições de plena igualdade não se encontra unicamente protegido pela Lei, em relação aos Maiores Acompanhados nas citadas normas legais, merecendo, ainda, protecção constitucional, prevista nos artigos 67º e 36º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
- Não obstante, a sentença que determinou a aplicação de medida de acompanhamento à requerida, impediu-a de casar (ponto 1.9 da decisão da sentença), de constituir, com protecção jurídica, relações de facto (ponto 1.10 da decisão da sentença), de recorrer a técnicas de procriação medicamente assistida (ponto 1.11 da decisão da sentença) e de decidir sobre a prática de actos médicos no seu corpo e saúde e que a Lei de Saúde Mental permite, com carácter geral, que sejam consentidos por portador de doença mental (ponto 1.12 da decisão da sentença).
- E tais decisões, restritivas dos direitos pessoais fundamentais da requerida, foram adoptadas sem se alicerçarem em qualquer facto, ou razão de direito, que se encontre descrito na sentença, ou tenha sido alegado na petição inicial que deu origem ao presente processo.
- Pois que, dos factos dados como provados, não resulta, nem se retira essa conclusão da sentença, que a requerida se encontre incapaz de compreender e de exercer os direitos e deveres inerentes ao casamento, a uma relação de união de facto ou em relação aos seus direitos reprodutivos (haverá, quanto a estes, um impedimento natural, atenta a sua idade).
- Do mesmo modo que inexiste qualquer elemento que permita concluir que a requerida não tenha maturidade para assumir responsabilidades parentais ou para decidir sobre a prática, no seu corpo, dos actos de saúde descritos na Lei de Saúde Mental, de que foi inibida mas cuja decisão se encontra autorizada, de modo geral, a portadores de doença mental.
- A sentença padece, assim, de total fundamentação de facto e de direito, incumprindo o dever de fundamentação imposto pelos artigos 205º nº1 da Constituição da República Portuguesa e 154º nº 1 do Código de Processo Civil, violando, ainda, o disposto nos artigos 140º, nº 1, 145º nº 1, 147º nº 1 do Código Civil e os artigos 36º nº1, 67º, 25º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, ao restringir os mencionados direitos pessoais da requerida.
- Pelo exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se a nulidade da sentença, por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 al. b) do CPC e determinando-se a sua substituição por outra que não restrinja os direitos pessoais da requerida, que se encontram descritos nos pontos 1.9, 1.10, 1.11 e 1.12 da decisão da sentença.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido, tendo o tribunal sustentado a decisão e alinhado que a nulidade arguida só se verifica no caso de falta absoluta de fundamentação, o que não sucede.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, a questão a decidir é a da nulidade da sentença e saber se não deviam ter sido decretadas as medidas constantes dos pontos 1.9, 1.10, 1.11- e 1.12 do dispositivo da sentença.
III. Matéria de facto
O tribunal recorrido deu como provado os seguintes factos, cuja reapreciação não vem peticionada:
1. A Requerida MJF..., nasceu a … de Janeiro de 19…, é solteira, natural da freguesia de E..., concelho de F....
2. É filha de MFJ... e de AO..., esta ainda viva.
3. A Requerida está internada na CSC... desde 1984 com diagnóstico de esquizofrenia, apresenta actualmente défice cognitivo moderado a grave, situação que é crónica e irreversível.
4. A doença de que a Requerida padece teve o seu início provável no ano de 1984, é de carácter permanente e impede-a de governar a sua pessoa e bens.
5. A Requerida sabe o seu nome, data de nascimento, a sua idade, bem como sabe o nome de seus pais, e que tem 9 irmãos e 3 irmãs.
6. Não sabe ler nem escrever e do dinheiro só tem noção das moedas, mas não sabe o seu valor real.
7. Tem noção do tempo e do espaço.
8. Frequenta actividades na instituição, mas sempre acompanhada de outra pessoa.
9. Precisa de ajuda para escolher a roupa que vai vestir.
11. Não é capaz de tomar decisão para as tarefas elementares do quotidiano.
12. A Requerida é acompanhada medicamente na instituição onde reside e na qual se encontra internada desde 1998.
13. A Requerida tem visitas dos irmãos e dá-se bem com eles.
14. Não existe notícia de testamento vital e/ou procuração para cuidados de saúde.
IV. Apreciação
Nulidade da sentença:
Constitui jurisprudência constante a de que a nulidade da sentença por falta de fundamentação só ocorre nos casos de falta absoluta de fundamentação, que de todo torna incompreensível — inviabilizando a defesa ou a reacção — a motivação decisória do tribunal. Fundamentações erradas, fundamentações deficientes ou ainda mais insuficientes, não constituem nulidades de sentença mas erros de julgamento.
Se portanto, no caso dos autos, há factos sobre a condição de saúde mental da requerida e as consequências que tal condição traz sobre a possibilidade dela reger a sua pessoa e bens, tais factos podem ser insuficientes para perceber porque é que ela foi inibida de casar, de se juntar em união de facto com produção de efeitos legais, de recorrer a técnicas de procriação assistida e de exercer os direitos que a Lei de Saúde Mental lhe confere, mas essa insuficiência de fundamentação não é, face ao facto da doença, absoluta. Digamos que precisaria de se ter provado um pouco mais do que aquilo que se provou, mas o que se provou já indica que estamos no caminho da ponderação das restrições aos direitos da requerida, ou seja, há já um mínimo de fundamentação que se percebe, o que não permite concluir por uma decisão completamente arbitrária.
Improcede pois, nos termos do artigo 615º do CPC, a nulidade invocada.
Isto posto, todavia, cumpre apurar se as restrições constantes dos pontos 1.9 a 1.12 da parte dispositiva da sentença devem manter-se.
Repare-se em primeiro lugar que os autos se iniciaram ao abrigo da lei anterior, com a propositura, pelo Ministério Público e a pedido da instituição de acolhimento, de acção de interdição. No requerimento inicial do Ministério Público lê-se que a doença determina a sua completa e permanente incapacidade para governar a sua pessoa e administrar o seu património, que a requerida não tem qualquer sentido crítico no tocante à orientação da sua vida nem à administração de valores patrimoniais, que não tem consciência da sua doença, nem tem capacidade para zelar pela sua saúde física e mental, não tem capacidade para confeccionar as suas refeições, embora se alimente pela sua mão, e que se encontra em suma, de forma permanente e irreversível, totalmente incapaz de cuidar de si e do seu património.
Ainda que estes factos não tenham logrado a prova nos seus precisos termos, percebe-se, com o devido respeito, que o recurso corresponde muito mais a uma questão de direito relacionada aliás com o novo regime, do que com a situação real da requerida.
Ora, na sentença fixou-se: 3. A Requerida está internada na CSC... desde 1984 com diagnóstico de esquizofrenia, apresenta actualmente défice cognitivo moderado a grave, situação que é crónica e irreversível. A doença é de carácter permanente e impede-a de governar a sua pessoa e bens, a requerida do dinheiro só tem noção das moedas, mas não sabe o seu valor real, a requerida Frequenta actividades na instituição, mas sempre acompanhada de outra pessoa e 11. Não é capaz de tomar decisão para as tarefas elementares do quotidiano.
A sentença recorrida discorreu sobre o paradigma da alteração legislativa que sobreveio durante a pendência dos autos e que determinou aliás os termos da sua adequação, e citamos:
Os presentes autos iniciaram-se como Acção especial de interdição por anomalia psíquica. Na sua pendência, em 11/2/2019, entrou em vigor o Regime Jurídico do Maior Acompanhado, instituído pela Lei n° 49/2018, de 14/8, que introduziu profundas alterações no Código Civil e no Código de Processo Civil, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação.
Dispõe o art°. 138 do Código Civil, na redacção dada pela Lei n° 49/2018 O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
Por sua vez, dispõe o art°. 140 da mesma Lei :
1- O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem- estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.
2- A medida não tem lugar sempre que o seu objectivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.
Refere Professor António Pinto Monteiro, em Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 148, nº 4013, Secção de Legislação, Das incapacidades ao maior acompanhado, a pág. 72 e segs. que: (...) a Lei nº 49/2018 veio dar resposta positiva às preocupações que se faziam sentir no campo das incapacidades das pessoas com deficiência, com a consagração deste novo regime jurídico do maior acompanhado. A Lei acolheu a mudança de paradigma já há muito anunciada, afastando-se do modelo de tomada de decisões por substituição e abraçando o modelo do acompanhamento, pela tomada de decisões com recurso à assistência e apoio. Proteger sem incapacitar, recorde-se, é a palavra de ordem do novo modelo. Mas fê-lo com realismo, permitindo o recurso à representação legal quando, excepcionalmente, não houver alternativa credível, no interesse do necessitado e por decisão judicial. Temos hoje, pois, em vez do modelo do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, de substituição, temos hoje, dizia, um regime que segue um modelo flexível e monista, de acompanhamento ou apoio, casuístico e reversível, que respeita na medida do possível a vontade das pessoas e o seu poder de autodeterminação.
É claro que o sucesso, na prática, deste novo modelo vai depender, em grande medida, dos tribunais, pela responsabilidade acrescida que o novo regime lhes atribui, na definição - e revisão — das medidas adequadas a cada deficiente, a cada situação! É esta mais uma tarefa que a lei confia aos tribunais, no desempenho da nobre missão de servir a vida!.
Refere, ainda, Professor António Pinto Monteiro, a fls. 80 da citada R.L.J que Optou o legislador, como se vê, por uma formulação ampla, afastando-se claramente da posição fechada relativa aos fundamentos da interdição e da inabilitação. Um ponto muito importante que neste contexto importa sublinhar é o de que na actual formulação ampla que permite o recurso às medidas de acompanhamento cabem as pessoas idosas e/ou doentes.
Mais refere o mesmo Professor, a fls. 72 e 73 da citada R.L.J que É claro que há razões de fundo, razões que estiveram presentes na tomada de posição de várias instâncias internacionais, no sentido de valorizar os direitos das pessoas deficientes, da sua dignidade e autonomia. Para lá dos avanços da ciência médica, também de um ponto de vista social foram vários os apelos - entre nós e por esse mundo fora - a uma nova compreensão dos problemas das pessoas com deficiências físicas ou mentais, ou com quaisquer outras limitações que afectem a sua capacidade jurídica. Essa tomada de consciência deu corpo a um movimento internacional de peso.
A este respeito, impõe-se mencionar a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adoptada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 56/2009, de 7 de Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 71/2009, de 30 de Julho), bem como o respectivo Protocolo Adicional, adoptado pelas Nações Unidas na mesma data de 30 de Março de 2007 (e aprovado pela Resolução da AR nº 57/2009, tendo sido ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 72/2009, de 30 de Julho). Há, assim, segundo o referido Professor, uma mudança de paradigma. No momento actual, em vez da pergunta: aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?, deve perguntar-se: quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?.
Miguel Teixeira de Sousa, em texto que corresponde à apresentação realizada no CEJ, em 11/12/2018, no âmbito da acção de formação O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado - O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, a fls. 51, refere que A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
- uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no artº. 145, nº 2 do CC; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
- uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (artº. 140º, nº 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
Em suma, a medida de acompanhamento apenas deverá ser decretada em caso de necessidade, devendo ser escolhida a que se mostrar adequada à condição do beneficiário e a que mais promova a sua autonomia e liberdade.
Casos existem em que a incapacidade é tal que o visado não consegue exprimir as suas opiniões e preferências. Nesses casos, que deverão ser excepcionais, a medida mais adequada será a de representação geral ou especial, devendo, nesses casos, atender-se à vontade que presumivelmente manifestaria o visado se estivesse em condições de o fazer.
Ora, verificados os requisitos do artº. 138 do Código Civil e não sendo garantidas, através dos deveres gerais de cooperação e de assistência, deverão, assim, ser aplicadas, ao sujeito, ora beneficiário, as medidas de acompanhamento que se afigurem necessárias no caso concreto. (Fim de citação).
Dizer desde logo que, na sequência deste excurso e em consonância com ele, o tribunal entendeu que a doença e as consequências dela obrigavam ao caso excepcional da representação geral — No caso em apreço, atento todo o circunstancialismo de facto, entendemos que será de aplicar o regime de representação geral prevista no artº. 145, nº 2, alínea b) do Código Civil. Trata-se de uma forma de representação legal - por contraposição à representação voluntária ¬seguindo o regime da tutela, com as adaptações necessárias, nos termos do nº 4 do aludido art2. 145 do Código Civil. Ao acompanhante designado incumbe a mesma actuação e deveres de cuidado e diligência exigíveis a um bom pai de família, nos termos do art2. 146, do Código Civil, dispondo o n2 1 deste preceito que No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.
Donde se vê que, para o tribunal recorrido, a doença e a sua irreversibilidade, e as consequências dela, levam, em termos gerais, à representação geral. Aqui — na interpretação dos factos e na convocação das normas pertinentes e na subsunção dos primeiros às segundas — encontramos mais um trecho, aliás importante, de fundamentação da sentença recorrida, que reforça aliás o argumento de inexistência de nulidade da sentença.
Se mudámos o paradigma, e se do que se trata é de acompanhar alguém que não consegue realizar as tarefas de inclusão social de modo autónomo, e apenas na medida em que o não consegue, nessa se justificando que tenha apoio, então ainda assim, e em tese, mesmo que se conclua pela necessidade de representação geral, esta representação geral deverá corresponder a um grau máximo de necessidade de acompanhamento mas ainda assim concretamente definido, o que significa que nem tudo o que era consequência do antigo regime dualista deve ser, sem que se comprove necessário, determinado, ou dito de outro modo, a representação geral não exclui a subsistência de campos, mais ou menos reduzidos, de livre exercício dos direitos pessoais.
Ora, quanto às restrições que a sentença determinou nos pontos 1.9 a 1.11, impedimento dirimente para o casamento, proibição de recurso a técnicas de procriação assistida, e proibição de atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto (não foi proibida a união de facto em si mesma): ¬nada a dizer, dum ponto de vista prático vista a idade da requerida — e o próprio Ministério Público o reconhece — quanto às técnicas de procriação assistida.
Mas em termos estritamente jurídicos? O problema dos termos estritamente jurídicos e das decisões dos tribunais, é que estes não se destinam a fazer doutrina, mas a decidir questões concretas que dependem de factos. O facto que parece existir em exclusivo é o da idade. Com a idade que tem, existe a probabilidade da requerida só conseguir ter filhos mediante forte apoio médico e técnicas de procriação assistidas. Porém, a questão não pode ser vista como simplesmente de procriação assistida, tendo de compreender a consequência: - ter filhos. Isto inclui a componente de ter a capacidade de os criar (ainda que não economicamente), e para esta componente os autos comprovadamente adiantam mais alguns factos relativos à própria incapacidade da requerida de tratar de si mesma. Ou seja, ainda que em abstracto pudéssemos dizer que a requerida deveria ter a possibilidade de pedir técnicas de procriação assistida, em concreto não faz qualquer sentido o recurso a estas técnicas quando quem a elas recorre não tem capacidade alguma de tratar dos filhos. Portanto, em termos muito concretos e é para isso que o tribunal serve, dizemos que não tem sentido revogar a decisão quanto ao ponto 1.11.
Quanto ao casamento: - o estatuto de maior acompanhado sendo determinado como impedimento dirimente do casamento leva à proibição absoluta do casamento.
A factualidade relevante é a já referida.
Se não constitui obstáculo a casar não saber ler nem escrever ou não ter noção do dinheiro, conjugando-se o mais provado — apresenta actualmente défice cognitivo moderado a grave, situação que é crónica e irreversível, a doença é de carácter permanente e impede-a de governar a sua pessoa e bens, a requerida Frequenta actividades na instituição, mas sempre acompanhada de outra pessoa e 11. Não é capaz de tomar decisão para as tarefas elementares do quotidiano, muito dificilmente conseguiríamos concluir que ainda assim a requerida teria capacidade de entendimento suficiente para, desde logo, escolher um cônjuge, mas sobretudo para entender os direitos que para ela derivariam do casamento bem como os deveres correspondentes, e capacidade alguma teria de cumprir estes e de exigir a satisfação dos seus direitos. Donde concluímos que a matéria de facto, analisada no seu conjunto, permite confirmar a decisão recorrida nesta parte.
Quanto à união de facto: - dispõe o artigo 2º al. b) da Lei nº 7/2001 de 11 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto, que impedem a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto, a demência notória, mesmo com intervalos lúcidos e situação de acompanhamento de maior, se assim se estabelecer na sentença que a haja decretado (...).
A parte final citada revela claramente que está no poder do tribunal decidir se se justifica ou não o impedimento de atribuição dos direitos ou benefícios previstos na Lei nº 7/2001. Percorrendo estes (artigos 3º - e 4º e 5º), o que está essencialmente em causa são direitos relacionados com questões patrimoniais, e para estes, comprovadamente, a requerida não tem — desde logo porque não sabe tratar de si mesma e não tem noção do valor do dinheiro — qualquer capacidade. Mesmo o direito a adoptar, nos termos do artigo 7º, não faz sentido quando a requerida não consegue tratar de si mesmo em termos das tarefas do seu quotidiano, renovando-se aqui o que se disse quanto à procriação assistida e aos filhos.
Em suma, e não estando proibida — aliás por ausência de disposição legal nesse sentido — a união de facto em si mesma, mas apenas estando restringidos os direitos e benefícios dela decorrentes nos termos da Lei nº 7/2001, entendemos que a matéria de facto apurada é suficiente para fundamentar essa restrição.
Por outro lado, quanto à restrição constante do ponto 1.12, considerando que a Lei 36/98 de 24 de Julho (Lei de Saúde Mental) estabelece os princípios gerais da política de saúde mental (artigo 1º), que a protecção da saúde mental efectiva-se através de medidas que contribuam para assegurar ou restabelecer o equilíbrio psíquico dos indivíduos, para favorecer o desenvolvimento das capacidades envolvidas na construção da personalidade e para promover a sua integração crítica no meio social em que vive (artigo 2º nº 1, no fundo alinhando já pelo paradigma novo), e considerando que são direitos do doente (artigo 5º) a) Ser informado, por forma adequada, dos seus direitos, bem como do plano terapêutico proposto e seus efeitos previsíveis; b) Receber tratamento e protecção, no respeito pela sua individualidade e dignidade e sobretudo c) Decidir receber ou recusar as intervenções diagnósticos e terapêuticas propostas, salvo quando for caso de internamento compulsivo ou em situações de urgência em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio ou para terceiros, significa isto que, para, nos termos do nº 3 do mesmo artigo, o direito a que se refere a alínea c) ser exercido(...) pelos representantes legais quando os doentes sejam (...) maiores acompanhados e a sentença de acompanhamento não faculte o exercício direto de direitos pessoais, e sabendo-se que o direito de receber ou recusar intervenções diagnósticos e terapêuticas se baseia desde logo na capacidade de compreender o que são (al. a), se alguém é incapaz — sem qualquer perspectiva de o vir a ser — de tomar qualquer decisão elementar sobre o seu quotidiano, muito mais será de tomar uma decisão sobre um assunto de maior gravidade.
Entende-se assim que também aqui o tribunal recorrido tinha factos suficientes para decidir como decidiu, e também aqui andou bem o tribunal recorrido.
Pelo exposto, improcede o recurso.
Sem custas.
V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso e em consequência confirmam integralmente a sentença recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 10 de Outubro de 2019
Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves
Manuel Rodrigues
Sumário (a que se refere o artigo 663º nº 7 do CPC):
Na determinação concreta do regime a aplicar a maior acompanhado, a escolha da representação geral não exclui a subsistência de campos residuais de manutenção do livre exercício de direitos, quando não apurados, em concreto, factos que revelem a incapacidade para esse exercício.
Tais factos porém podem resultar por interpretação do conjunto dos factos provados. Se está provado que alguma pessoa sofre de esquizofrenia, com défice cognitivo moderado a grave, doença que a impede de governar a sua pessoa e bens, se encontra internada em instituição de saúde mental há 20 anos, não sabe ler nem escrever, não consegue escolher a roupa que vai vestir, frequenta actividades mas sempre acompanhada por outra pessoa, e não é capaz de tomar decisão para as tarefas elementares do quotidiano, deste conjunto factual resulta a incapacidade irreversível de entender e tomar decisões relativamente a casamento, constituição de relações de união de facto com protecção legal, recurso a técnicas de procriação assistida e recusa de tratamentos médicos.
Eduardo Petersen Silva
Processado por meios informáticos e revisto pelo relator