I - A aceitação pode ser expressa ou tácita; é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir.
II- A declaração tácita é aquela que esta se destina em via principal a outro fim, mas a latere permite concluir com bastante segurança uma dada vontade negocial, traduzindo-se num ou vários procedimentos concludentes, mas que têm que ser inequívocos. Ou seja, uma declaração tácita da herança terá que se deduzir de factos que, com toda a probabilidade, a revelam. Há pois que «buscar um grau de probabilidade da vida da pessoa comum, de os factos serem praticados com determinado significado negocial, ainda que não seja afastada a possibilidade de outro propósito
III - Tendo a Apelante aceitado a herança em data anterior à da celebração da escritura de repúdio, esta declaração de repúdio operada nessa data, carece de qualquer efeito, visto que é posterior à irrevogável declaração de aceitação, valendo a primeira.
IV - Sendo a aceitação da herança irrevogável (art. 2061° Cód. Civil), o repúdio, embora formalmente válido, é ineficaz, pelo que ao aceitar a herança, a ora Apelante — pese embora o posterior repúdio - mantém, a qualidade de herdeira.
Proc. 3379/18.4T8LRS.L1 6ª Secção
Desembargadores: Fátima Galante - Teresa Soares - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
Processo n° 3379/18.4T8LRS.L1
6 Secção
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I - RELATÓRIO
JAC... instaurou acção de declaração, sob a forma de ação comum, contra ICC..., peticionando:
a) A declaração judicial de reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre a totalidade da fração autónoma designada pela letra D, correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano em regime dc propriedade horizontal sito na Rua FC..., freguesia de União das freguesias de P…, concelho de O..., descrito na Conservatória do Registo Predial de O… sob o n. … da Freguesia da P… c inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …;
b) A condenação da R. na restituição da fração à A., e no pagamento de indemnização de valor mensal não inferior a 600.00. acrescida de juros, desde 01/02/2018 e até à efetiva entrega.
Alega, em síntese, que A. e 12, são filhas da anterior proprietária da fração. Falecida esta, a R. repudiou a herança, mas manteve-se a residir na fração. Não obstante as interpelações da A.. a R. não o desocupa.
A R. contestou:
a) Invocando a sua ilegitimidade passiva, porquanto, tendo aceitado tacitamente a herança, resulta ineficaz o repúdio, mantendo-se na sua titularidade a quota hereditária:
b) Invocando a exceção dilatória inominada do •'Llw inclefulu da ação de reivindicação considerando adequado o processo de inventário:
c) Alegando que o repúdio resultou de acordo entre A. e R., a fim economizar nos encargos emergentes da sucessão, e facilitar a transação da fracção, uma vez emigrada a Ré
d) Peticionando a condenação da A. como litigante de má-fé, porquanto bem sabe que a Ré é proprietária da fracção.
A A. respondeu impugnando, dc facto e de direito.
Realizou-se audiência final.
Foi proferida sentença da qual consta a seguinte decisão:
«Pelo exposto, julgo parcialmente procedente por provada a presente ação, e, em consequência:
V.1 Declaro a A. titular do direito dc propriedade singular da fração autónoma designada pela letra 1), correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua F…. freguesia de União das Freguesias de P…, O…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o n. … da Freguesia de P… e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …;
V.2 Condeno a R. na restituição da fração à A.:
V.3 Condeno a R.no pagamento, à A. de quantia a liquidar incidentalmente, correspondente ao valor locativo da fração, contada desde 1 de fevereiro de 2018 até restituição».
Recorre a Ré da sentença, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
1. No presente recurso, a Apelante veio impugnar pela revogação da sentença proferida pela 1a instância, defendendo que o Tribunal a quo avaliou mal a prova constante nos autos, bem como aplicou de forma incorreta o Direito ao caso vertente.
2. Recorrente e Pecorrida são irmãs e únicas herdeiras de SNA..., deixando como único bem com valor significativo a fracção em causa.
3. Após o óbito da mãe, a Apelante, que vivia com esta, na qualidade de cabeça de casal da herança, no cumprimento das respetivas obrigações fiscais, entregou o Processo de Imposto de Selo no Serviço de Finanças competente de Odivelas (doc. n° 1 junto à Contestação).
4. Ao tempo do falecimento de sua mãe, a R, pretendia sair do país e ir trabalhar pare o estrangeiro.
5. Em 13/08/2(112, por escritura outorgada no Cartório Notarial, a Ré repudiou a herança de sua mãe.
6. Em março de 2016, a R. teve uma filha, que reside consigo na fracção objeto dos autos.
7. A aceitação da herança pode ser expressa ore tácita (art. 2036°, n°' 1 Cód. Civil) e facto de habitar a fração autónoma, acrescido pelo facto de ter assumido posição de cabeça de casal e diligenciado, nessa qualidade, pelo cumprimento das obrigações legais e por todas as diligencias burocráticas após o óbito da mãe a Ré, ora Apelante, aceitou, se não expressamente, pelo menos, tacitamente herança da sua mãe (art. 2050° Cód. Civil).
8. Sendo a aceitação irrevogável, nos termos do disposto no arl. 2061º do Cód. Civil pelo que a :Apelante é herdeira de sua mãe, conjuntamente coral a sua irmã, e
9. Sendo ,a fracção autónoma um bem propriedade de ambas as herdeiras, o meio próprio para dirimir este conflito seria o processo de Inventario.
10. Também o facto da A. ter solicitado à R., em 02/08/2017, a entrega da fracção até 31/01/2018, mediante o pagamento de 24.200,00€ e explicar-lhe que em caso de recurso à via judicial, a Ré não teria direito a qualquer quantia, tendo a fracção o valor patrimonial de €. 47.700,00, prova que a fração era propriedade de ambas e que a R. tinha conhecimento desse facto.
11. A R., pessoa de fracos recursos económicos, não poderia nunca abdicar do único bem deixado de herança por sua mãe, pois este bem faz-lhe falta para ajudar a criar e educar a sua pequena filha.
12. Só pode concluir-se, como alega a Apelante, que a escritura de repudio foi um acordo entre ambas para transferir a propriedade do imóvel para uma só herdeira, por ser a forma mais económica e, ainda, porque, como a R. pretendia viajar para o estrangeiro para trabalhar, era mais fácil o imóvel estar registado somente a favor da A. para facilitar a venda, se necessario fosse.
13. Sendo a aceitação da herança irrevogável (art. 2061° Cód. Civil), o repúdio, embora formalmente válido, é ineficaz, pois ao aceitar a herança, a ora Apelante perdeu o direito ao repudio e mantém, a qualidade de herdeira de sua mãe, conjuntamente com a Recorrida.
Nestes termos, deve ser concedido provimento presente recurso, revogando-se a decisão recorrido, absolvendo a Ré, ora Apelante, do peticionado, com as inerentes consequências legais.
Contra-alegou a A. pugnando pela manutenção da sentença.
Delimitação do objecto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.°s 635.°, n.° 2 e 639.° 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.° 608.°, n.° 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de
conhecimento oficioso).
Em causa está, no essencial, apurar
- se houve ou não aceitação da herança e
- da eficácia da escritura pública de repúdio da herança.
II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. Pela ap- 1451 de 2012.09/24. roi registada a favor da A. a aquisição, por sucessão hereditária, da fração autónoma designada pela letra 1), correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua FC..., freguesia de União das Freguesias de PO..., O…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o n. … da Freguesia de P... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 9… - Docs. 1 e 2.
2. Consta do respetivo registo a anotação do repúdio por parte da Ré. - Cfr. Doc. 1
3. Autora e Ré são irmãs e únicas herdeiras de SNA..., falecida em 01/08/2010, no estado dc divorciada.
4. Em 13 de Agosto de 2012, por escritura outorgada no Cartório Notarial de ICF..., em Lisboa, a Ré repudiou a herança de sua mãe - Doc. 3.
5. Após o óbito, a R. manteve-se a residir na tração.
6. Em março de 2016. a R. teve uma Filha, que reside consigo.
7. Entre A. e R. ficou acordado que a Ré assumiria os encargos com o IMI e com o condomínio.
8. Desde o nascimento da filha da R., esses pagamentos têm sido assegurados pela Autora.
9. Como compensação pela habitação da fração. a R. entregou A., mensalmente, a quantia de 200,00 € durante um período indeterminado.
10. Em 02/08/2017, a Autora instou a R. na entrega da fracção
sua propriedade até 31/01.2018, mediante o pagamento de 24.200.00
Doc. 4.
11. Mais explicitou que, em caso de recurso à via judicial, a R. não terá direito a qualquer quantia.
12. Através de mensagem de correio electrónico de 20 01.2018, a Ré recuou a proposta da Autora. alegando não ter meios para proceder ao arrendamento de outro apartamento e, por outro lado, informando neto ser elegível para beneticiar de apoios sociais de habitação - Doc. 5.
13. Mais apresentou à Autora aquela que. nas suas palavras, seria a única alternativa: ser a Ré a comprar a parte da Autora no apartamento.
14. A Autora fez saber à Ré trio aceitar tal proposta, contrapropondo a venda do bem pelo valor de E 65.000,00. comi a celebração respeti\a escritura pública até 02/03/2018 - Doc. 6.
15. A fração autónoma era o único bem com valor significativo da herança aberta por óbito da falecida mãe das partes.
16. Ao tempo do falecimento de sua mãe, a R. pretendia sair do pais e ir trabalhar para o estrangeiro.
17. A R. diligenciou pela participação do óbito no Serviço de Finanças competente de O… - Documento 1 junto com a contestação.
18. A A. diligenciou pela habilitação de herdeiros, documento de fls. 40 do processo em papel.
III — FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. A aceitação da herança é uma manifestação de vontade que pode ser feita expressa ou tacitamente, é irrevogável (art. 20161° CCivil) e não está sujeita à forma exigida para a alienação da herança.
De acordo com o artigo 2056.° do Código Civil, a aceitação pode ser expressa ou tácita; é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir.
As noções de aceitação expressa e tácita devem retirar-se a partir das noções gerais do artigo 217° do Código Civil. Quanto à declaração tácita, costuma-se esclarecer que é aquela que esta se destina em via principal a outro fim, mas a latere permite concluir com bastante segurança uma dada vontade negocial, traduzindo-se num ou vários procedimentos concludentes, mas que têm que ser inequívocos.
O silêncio não vale como declaração negocial, nesta matéria da aceitação da herança, já que esse valor não lhe está atribuído por lei, uso ou convenção (art.° 218° do Código de Processo Civil), embora, se concatenado com outros actos possa fazer parte de uma situação que permita de forma segura e inequívoca concluir pela aceitação.
Ou seja, uma declaração tácita da herança terá que se deduzir de factos que, com toda a probabilidade, a revelam, de acordo com o disposto no art. 217° n° 1 do Código Civil.
Decisivo é, pois, saber se existem elementos reconhecíveis da intenção do herdeiro em adquirir a herança, caso em que se tem de entender que ocorreu a sua aceitação.
Será, por exemplo, o caso de o familiar começar a utilizar o veículo automóvel do falecido, ou utilizar a utilizar a casa do falecido, regar o jardim e verificar o estado de conservação do imóvel. Todos estes actos podem configurar a declaração de que o herdeiro aceita a herança e passa a exercer a posse dos bens do falecido.
Também a jurisprudência se tem debruçado sobre esta problemática, concretamente, quanto à exigência lia interpretação dos actos de onde se deduza a vontade de aceitar a herança.
Enfim, os comportamentos do sucessível têm que criar uma situação da qual se conclua que com toda a probabilidade este aceitou a herança (artigo 217° do Código Civil), sendo esta aferida com os padrões que declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento daquele (artigo 236° do Código Civil).
No que tange ao critério para aferir da inequivocidade dos factos concludentes na declaração tácita, Mota Pinto defende que o citado artigo 217.°, n.°1, do Código Civil não exige que a dedução, no sentido de auto regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade2, apelando, assim, a um critério prático e não estritamente lógico.
Há pois que «buscar um grau de probabilidade da vida da pessoa comum, de os factos serem praticados com determinado significado negocial, ainda que não seja afastada a possibilidade de outro propósito
Ou, no dizer de Manuel de Andrade, aquele grau de probabilidade que baste na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões.
2. Ora, no presente caso, sabe-se que Autora e Ré são irmãs e únicas herdeiras de SNA..., falecida em 01….
A fração autónoma identificada nos autos era o único bem com valor significativo da herança aberta por óbito da falecida mãe das partes.
A Ré vivia com sua mãe na casa dos autos, onde, após o óbito de sua mãe, a Ré ficou a residir. Em Março de 2016 a Ré teve uma filha que com ela reside na fracção dos autos.
A Ré diligenciou pela participação do óbito no Serviço de Finanças competente de Odivelas, onde consta como herdeira, com sua irmã JAC..., e beneficiária da transmissão.
Entre A. e R. ficou acordado que a Ré assumiria os encargos com o IMI e com o condomínio, mas desde o nascimento de sua filha, esses pagamentos têm sido assegurados pela Autora.
Também ficou acordado, que, como compensação pela utilização da casa, a Ré entregasse à A. a quantia de 200,00€, o que fez durante um período indeterminado.
Ao tempo do falecimento de sua mãe, a R. pretendia sair do pais e ir trabalhar para o estrangeiro, projecto que nunca se concretizou.
Sucede que, sem que se tivesse apurado o motivo, em 13 de Agosto de 2012, por escritura outorgada no Cartório Notarial, a Ré repudiou a herança.
Mais tarde, em 02/08/2017 - já após o nascimento da filha da Ré — a A. instou a Ré na entrega da fracção até 31/01.2018, mediante o pagamento de 24.200.00 €, referindo que, em caso de recurso à via judicial, a Ré não terá direito a qualquer quantia.
Todavia a Ré recusou esta proposta da Autora, alegando não ter meios para proceder ao arrendamento de outro apartamento. Mais apresentou à Autora como alternativa, ser a Ré a comprar a parte da Autora no apartamento.
A Autora fez saber à Ré que não aceitava tal proposta, contrapropondo a venda do bem pelo valor de € 65.000,00.
A fração autónoma era o único bem com valor significativo da herança aberta por óbito da falecida mãe das partes.
3. Este conjunto de actos, concatenados e interpretados, traduzem para qualquer declaratário de boa-fé, a firme convicção de que não só a Ré aceitou a herança, como a própria A. a tratou como herdeira e sucessora da mãe de ambas.
É sintomático o acordo entre ambas, relativo ao pagamento de despesas e encargos, como o IMI e o condomínio, a partir do óbito e a suportar pela Ré. Como também o pagamento de compensação pela utilização exclusiva da casa.
Também a proposta da A., feita em Agosto de 2017, de entrega do andar, contra o pagamento à Ré de 24.200,00, valor correspondente a cerca de metade do valor patrimonial do imóvel de 47.700,00€ (cfr. certidão permanente da caderneta predial, junta com a petição inicial), indicia que a própria A. reconhece à Ré direito à herança.
Por último, não pode deixar de se estranhar que a Ré tivesse a intenção de abdicar do único bem com valor que integrava a herança, sem qualquer contrapartida, sabendo-se que as suas condições económicas precárias da mesma, comprovadas, aliás, pelo deferimento do pedido de protecção jurídica.
De facto a Ré/Apelante, alegou que a escritura de repúdio resultou de um acordo entre ambas, transferindo a propriedade do imóvel para uma só herdeira, por ser a forma mais económica e, ainda, porque, como a R. pretendia viajar para o estrangeiro para trabalhar, era mais fácil o imóvel estar registado somente a favor da A. para facilitar a venda, se necessario fosse. Todavia, embora verosímil, a Ré não fez prova do alegado.
Tudo para se concluir que, tendo a Apelante aceitado a herança em data anterior à da celebração da escritura de repúdio (13 de Agosto de 2012), esta declaração de repúdio operada nessa data, carece de qualquer efeito, visto que é posterior à irrevogável declaração de aceitação, valendo a primeira.
Como refere o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 06/21/2007 A aceitação e o repúdio duma herança são por natureza incompatíveis. Assim uma vez aceite não pode haver repúdio.
Sendo a aceitação da herança irrevogável (art. 2061° Cód. Civil), o repúdio, embora formalmente válido, é ineficaz, pelo que ao aceitar a herança, a ora Apelante — pese embora o posterior repúdio - mantém, a qualidade de herdeira de sua mãe, conjuntamente com a Recorrida.
Tanto basta para que se conclua pela procedência do recurso, pelo que, a sentença recorrida, que julgou procedente a acção de reivindicação não pode manter-se.
IV — DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar procedente o recurso, pelo que, revogando a sentença recorrida, se julga a acção improcedente por não provada, absolvendo-se a Ré, ora Apelante, do pedido.
Custas pela Recorrida.
Lisboa, 21 Novembro de 2019
Fátima Galante)
(Teresa Soares)
(Octávia Viegas)