O art° 30° do CC (português) estabelece uma norma de conflitos que submete à Lei Pessoal do incapaz a Tutela e outros institutos de protecção (a incapazes).
A lei pessoal dos indivíduos, que não apátridas, é a da respectiva nacionalidade, que se determina de acordo com a lei do país cuja nacionalidade esteja em causa (lege causae).
À luz da Lei de Nacionalidade do Estado de Angola, tendo o menor nacionalidade angolana, a lei pessoal a aplicar com vista à instauração de Tutela é a que decorre do Código de Família de Angola (Lei n° 1/1988, de 20/02) e não a lei portuguesa (art° 1921° do CC).
(elaborado pelo relator)
Proc. 1608/19.6T8BRR.L1 6ª Secção
Desembargadores: Adeodato Brotas - Fátima Galante - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Proc. 1608/19.6T8BRR.L1 (vindo do juízo de família e Menores do Barreiro)
Apelação nos próprios autos.
Apelante: NGM....
Relator: Desembargador Adeodato Brotas.
1' Adjunta: Desembargadora Fátima Galante.
2' Adjunta: Desembargadora Teresa Soares.
Sumário (elaborado pelo relator)
1- O art° 30° do CC (português) estabelece uma norma de conflitos que submete à Lei Pessoal do incapaz a Tutela e outros institutos de protecção (a incapazes).
2- A lei pessoal dos indivíduos, que não apátridas, é a da respectiva nacionalidade, que se determina de acordo com a lei do país cuja nacionalidade esteja em causa (lege causae).
3- À luz da Lei de Nacionalidade do Estado de Angola, tendo o menor nacionalidade angolana, a lei pessoal a aplicar com vista à instauração de Tutela é a que decorre do Código de Família de Angola (Lei n° 1/1988, de 20/02) e não a lei portuguesa (art° 1921° do CC).
Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I-RELATÓRIO.
1-NGM..., instaurou acção tutelar comum para instituição de tutela ao menor JCC....
Alega, em síntese, que o menor nasceu a …/2008, filho de ESC... e MFS...; a mãe do menor faleceu a 02/10/2009 e, desde a morte da mãe que o menor reside com a tia ER..., sendo desconhecido o paradeiro do pai do menor apesar de lhe telefonar esporadicamente. O pai não demonstra qualquer interesse pelo menor. Desde a morte da mãe do menor que quem dele cuida é a tia ER... e o requerente que vivem em união de facto. Por razões pessoais e profissionais o requerente e a sua companheira vieram residir para Portugal, trazendo consigo o menor, com a concordância do pai. Desconhece-se o paradeiro do pai do menor em Angola.
Conclui que seja nomeado tutor e indica para integrar o Conselho de Família, ER... e RAC....
2- A 1a instância indeferiu liminarmente a acção, em decisão com o seguinte teor:
NGM..., veio requerer a instituição da tutela ao menor JCC..., nascido em .2008, sobrinho da sua companheira, pedindo para ser nomeado seu tutor.
Alegou, para tanto, que a mãe do menor faleceu em .2008, e já nessa altura o paradeiro do pai era desconhecido (o que se mantém até hoje, mantendo o progenitor contactos telefónicos esporádicos com o filho), tendo sido ele, NGM..., conjuntamente com a tia do menor, que tem cuidado da criança desde a morte da progenitora.
Em face do alegado, cumpre antes de mais aferir se a situação sub judice é enquadrável no regime da tutela, enquanto meio de suprir as responsabilidades parentais, isto é, se o menor se encontra em situação de ser-lhe nomeado um tutor.
A tutela é uma função jurídica, confiada a uma pessoa capaz, que consiste em esta tomar a seu cargo e cuidados, um menor, passando a representá-lo e a administrar os seus bens.
A incapacidade do menor quando as responsabilidades parentais não são ou não podem ser exercidas pelos progenitores é assim suprida pela tutela nus termos do artigo 19210 do Código Civil onde se estabelece que:
1. O menor está obrigatoriamente sujeito a tutela:
a) Se os pais houverem falecido;
b) Se estiverem inibidos do poder paternal quanto à regência da pessoa do filho;
c) Se estiverem há mais de seis meses impedidos de facto de exercer o poder paternal;
d) Se forem incógnitos.
Deste modo, terão que se verificar uma destas condições (em relação a cada um dos
progenitores) para que a tutela seja instituída. Vejamos o caso sub judice:
A progenitora do menor, .faleceu no passado dia ... de 2009.
Assim, por força do disposto no art° 1904° do Código Civil, o exercício das responsabilidades
parentais pertence ao pai do menor, ainda vivo.
E, ao contrário do alegado na petição inicial, o paradeiro do progenitor da menor não é
desconhecido.
Tanto assim é que, conforme o próprio requerente veio alegar nos autos, mantém conversas esporádicas com o mesmo, por via telefónica.
Como defendem Paulo Guerra e Helena Bolieiro (A Criança e a Família, Coimbra Editora, pg. 299), para a instauração da tutela torna-se necessária a existência de uma prévia inibição do exercício das responsabilidades parentais pois um pai só está impedido de facto de exercer as responsabilidades quando, querendo, não as pode exercer.
Assim, numa situação em que os pais estão vivos, em paradeiro conhecido e não se demonstrando que estes manifestem total desinteresse pela vida dos filhos, não se pode aplicar, desde logo, a tutela, antes havendo que lançar mão da acção de limitação do exercício das responsabilidades parentais ou, caso se demonstre esse desinteresse, a acção de inibição das responsabilidades parentais (autores e obra citada, pg. 300).
Por outro lado, não seria possível aferir o desinteresse ou interesse do progenitor sobrevivo na acção de tutela pois, no âmbito deste processo, não existe qualquer momento de contraditório. Assim, sendo conhecido o paradeiro do progenitor do menor e não estando este inibido das responsabilidades parentais quanto à regência da pessoa do filho, conclui-se que não se encontram reunidos os pressupostos que fundamentam a instauração da tutela, designadamente, o previsto na alínea c) do número 1 do artigo 1921° do Código Civil, pelo que se afigura ser o pedido manifestamente improcedente e, em consequência, indefere-se liminarmente a petição inicial.
Não são devidas custas em face da isenção de que beneficia o processo de tutela (artigo 4.°, n.° 2, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique.
3- Inconformado, o requerente interpôs o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A- O menor JCC... reside com o Recorrente desde pelo menos 2016;
B- A mãe do menor faleceu em ... de 2009, data a partir da qual o menor deixou de ter contacto regular com o pai.
C- O pai do menor, ESC... encontra-se em parte incerta.
D- O pai do menor telefona esporadicamente ao menor, sendo que tal facto não implica o conhecimento do seu paradeiro.
E- Há mais de seis meses que o pai do menor está impedido de facto de exercer o poder parental, uma vez que o menor reside com o Recorrente e sua companheira em Portugal e o pai se encontra em parte incerta.
F- Existe uma ligação de afecto do menor perante o ora Recorrente e companheira deste, tia do menor.
G- É do Superior Interesse do Menor que seja instituída a tutela a favor do aqui Recorrente.
H- Encontram-se reunidos os pressupostos legais para ser instituída a tutela.
Pelo exposto, deve o indeferimento liminar da p.i ser revogado seguindo-se os ulteriores termos
do processo.
II-FUNDAMENTAÇÃO,
1-Ohiecto do Recurso.
É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art° 635° n° 2 do CPC/13) pelas conclusões (art°s 635° n° 4, 639° h° 1 e 640° do CPC/13) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações (caso as haja) em oposição àquelas, ou por ampliação (art° 636° CPC/13) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art° 633° CPC/13) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelo recorrente, é a seguinte a questão que importa analisar e decidir:
- Se há fundamento para revogar o despacho de indeferimento liminar, ordenando o prosseguimento dos autos.
Vejamos.
2-Factualidade relevante.
Resulta da cópia da certidão do assento de nascimento do menor que:
1°- JCC..., nasceu a … de 2008, no Hospital Augusto, província de Luanda (Angola) mostrando-se registado como filho de ESC..., natural da província de Luanda (Angola) e de MFS..., natural da província de Luanda.
3- A Questão Jurídica.
Como se referiu, a questão que se coloca é a de saber se há fundamento para revogar o despacho de indeferimento liminar e determinar o prosseguimento dos autos.
Importa verificar.
A 1a instância indeferiu liminarmente a acção baseando-se num raciocínio jurídico que teve como pressuposto a aplicação ao caso do art° 1921° do CC (português). Discorreu que ...o paradeiro do progenitor do menor não é desconhecido, porque mantém conversas esporádicas com o menor por via telefónica...; mais argumentou que ...para a instituição da tutela torna-se necessária a existência de uma prévia inibição do exercício das responsabilidades parentais...; e que ...uma vez que o progenitor está vivo e não foi inibido do exercício das responsabilidades parentais, não pode haver lugar à aplicação da tutela.
Acrescenta que ...não é possível aferir do desinteresse ou interesse do progenitor sobrevivo na acção de tutela por no âmbito do processo não existir contraditório.
Será assim?
Entendemos que não.
Na verdade, em primeiro lugar importa ter presente o art° 30° do CC (português) que estabelece uma
Norma de Conflitos relativa ao Instituto da Tutela. Determina o preceito, sob epígrafe Tutela e
institutos análogos:
À tutela e institutos análogos de protecção aos incapazes é aplicável a lei pessoal do
incapaz.
Facilmente se percebe que esta norma de conflitos submete à Lei Pessoal do incapaz a Tutela e outros
institutos de protecção a incapazes, como é o caso dos menores.
De resto, o art° 25° do CC (português) determina que O estado dos indivíduos, a capacidade das pessoas ...é regulado pela lei pessoal dos respectivos sujeitos....
Relativamente à determinação da lei pessoal, estabelece o art° 31° n° 1 do CC (português) que A lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo. .
Pois bem, deste preceito resulta que Portugal, como regra, adopta o critério da nacionalidade. Ou seja, pertencerá à lei pessoal do incapaz determinar os termos da aplicação da Instituição da Tutela (Cf. Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3ª edição, pág. 339 e seg.).
Assim, a lei pessoal dos indivíduos, que não apátridas, é a da respectiva nacionalidade, que se determina de acordo com a lei do país cuja nacionalidade esteja em causa (lege causae) — (cf. Helena Brito, CC anotado, vol. I, coord. Ana Prata, AAVV, Almedina, pág. 58).
Ora, no caso em apreço, o menor cuja tutela se visa instituir nestes autos terá nacionalidade angolana. Na verdade, nasceu em território do estado angolano e é filho de pais que nasceram (e viviam à data do nascimento) em Angola, na província de Luanda.
Vejamos o que estabelece a lei de nacionalidade de Angola.
De acordo com a actual Lei da Nacionalidade angolana (Lei 2/2016, de 15/04) a nacionalidade pode ser originária ou adquirida (art° 2°); e, relativamente à aplicação da lei no tempo, determina o art° 3° daquela lei que As condições de atribuição, aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade angolana são regidas pela lei em vigor no momento em que se verificam os actos ou factos que lhes dão origem.
O menor nasceu a .2008.
Á data vigorava a Lei 1/2005, de 01/07. Determinava o art° 9.º n° 1, al. a) dessa lei: É cidadão
angolano de origem, o filho de pai ou mãe de nacionalidade angolana nascido em Angola.
Portanto, o menor tem nacionalidade angolana visto que nasceu em território do estado angolano e é filho de pais que nasceram (e viviam à data do nascimento) em Angola (na província de Luanda). Assim sendo, ao caso dos autos aplica-se, nos termos da norma de conflitos do art° 30° do CC (português) a lei pessoal do menor, isto é a lei angolana, relativa à instituição de tutela.
Vejamos então.
É sabido que após a independência do Estado de Angola aplicou-se, no respectivo território, o código civil português de 66.
Porém, em 1988, a Lei 1/1988, de 20/02, revogou a aplicação do Livro IV do CC (português) e instituiu o Código da Família (cf., sobre a questão, Helena Mota, O código da Família Angolano e o Livro IV do Código Civil Português de 1966. Adaptação Inovação, ire Textos de Direito da Família - Para Francisco Pereira Coelho
(coord. Guilherme de Oliveira), AAVV, Impressa da Universidade de Coimbra, 2016, pág. 235 e segs.; Carlos Alberto B.
Burity da Silva, A necessidade de Revisão do Código Civil Angolano. Princípios Estruturantes e Eixos Fundamentais da Reforma, in Revista do Direito de Língua Portuguesa, ano 1, n° 2, Jul./Dez. de 2013, pág. 7 e segs.).
Pois bem, o instituto da Tutela está previsto nos art° 220° a 246° do Código da Família de Angola. Determina o art° 220° desse Código da Família que Estão sujeitos a tutela: a)- Os menores cujos pais não possam exercer a autoridade parental; b)- Os maiores interditos.
Quanto aos fins da tutela, determina o art° 221° do Código da Família: A tutela visa o suprimento da autoridade paternal e a guarda, educação, desenvolvimento e protecção dos interesses pessoais e patrimoniais dos menores e a defesa e protecção dos interesses patrimoniais dos maiores interditos. Por sua vez, o art° 222° do Código da Família estabelece que: Está obrigatoriamente sujeito a tutela o menor: a)- Cujos pais sejam desconhecidos, estejam ausentes ou tenham falecido; b)- Cujos pais estejam inibidos da autoridade paternal; c)- Cujos pais estejam, há mais de um ano, sem exercer de facto a autoridade paternal; d)- Cuja adopção tenha sido revogada. .
Como vimos, por força do art° 30° do CC (português) são estes requisitos, do art° 222° do Código de Família de Angola, relativos à instituição da tutela, que se aplicam ao caso dos autos e não os previstos no art° 1921° do CC (português).
E, de entre eles, salientam-se, com relevância para o processo, o previsto na alínea a) — mãe falecida ¬e na alínea c) — pai que há mais de uma ano está sem exercer de facto o poder paternal. Requisitos esses que foram suficientemente alegados pelo requerente.
Por conseguinte, não havia fundamento para indeferir liminarmente esta acção tutelar comum para instituição de tutela ao menor.
Importa revogar a decisão que indeferiu liminarmente a acção e determinar o prosseguimento dos autos com a realização das diligências e demais termos do processo.
111-DECISÃO.
Em face do exposto, acordam na 6ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa revogar a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos.
Sem custas (art° 4° p° 2, al. f) do RCP)
Lisboa, 21/11/2019
(Adeodato Brotas)
(Fátima Galante)
(Teresa Soares)