Da responsabilidade da relatora, cfr. art. 663º, nº 7 do CPC)):
Os créditos - respetivos montantes e qualificação - que não sejam objeto de impugnação, são declarados verificados nos termos reconhecidos pelo administrador da insolvência, mas sempre sem prejuízo da sindicância e correção judicial dos mesmos no caso de erros manifestos que resultem da própria lista ou no confronto com elementos do processo que, como tal, são de conhecimento oficioso, no que se incluem erros de facto ou de direito ou, tão só, de raciocínio lógico.
Proc. 3323/16.3T8VFX-B.L1 1ª Secção
Desembargadores: Amélia Sofia Rebelo - Fátima Reis Silva - Manuela Espadaneira Lopes -
Sumário elaborado por Carolina Costa
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Sumário (Da responsabilidade da relatora, cfr. art. 663º, nº 7 do CPC)):
Os créditos - respetivos montantes e qualificação - que não sejam objeto de impugnação, são declarados verificados nos termos reconhecidos pelo administrador da insolvência, mas sempre sem prejuízo da sindicância e correção judicial dos mesmos no caso de erros manifestos que resultem da própria lista ou no confronto com elementos do processo que, como tal, são de conhecimento oficioso, no que se incluem erros de facto ou de direito ou, tão só, de raciocínio lógico.
Acordam as Juízas da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I -Relatório
1. Iniciaram os presentes autos de reclamação de créditos, apensos ao processo de insolvência de STP, Ldª, com a apresentação, em 05.01.2017, da lista de créditos elaborada pela Sra. administradora da insolvência, entre os quais crédito reconhecido a ‘DPL, Sociedade Unipessoal, Ldª’ (DPL) no montante de €358.373,45 emergente de três contratos de franquia e de fornecimento de mercadorias e serviços prestados, sendo €319.995,12 a título de capital e €38.378,33 a título de juros, crédito que ali consta qualificado como comum, sendo €60.698,85 sob condição “por respeitar ao valor dos bens retirados à posse da insolvente.”
2. Entre outros, foi apresentado requerimento para impugnação da lista de créditos pela credora DPL, com fundamento em indevida inclusão e qualificação de parte do seu crédito como sob condição.
Alegou que, desconhecendo que a insolvente havia sido declarada insolvente, confrontada com o encerramento injustificado e sem qualquer pré-aviso das duas lojas por aquela exploradas, na ausência de resposta às interpelações que lhe dirigiu, em 23.09.2016 ‘retomou’ as lojas e a totalidade da mercadoria que forneceu
à insolvente e que não foi por esta paga, bens que naquele dia inventariou, avaliou em €60.698,85 e logo escoou através da sua rede de franquiados, deduzindo aquele valor ao crédito que detinha em conta corrente relativo ao fornecimento de mercadorias à devedora, procedendo de acordo com o que nessa matéria consta do contrato de franquia e é considerado pela doutrina como dever do franquiador, de retomar ou readquirir a mercadoria em stock em caso de cessação do contrato, não havendo por isso que restituir à massa os bens constantes dos inventários juntos aos autos em 12.01.2017 por serem propriedade da credora, cujo valor abateu ao saldo da conta corrente que existia entre as duas sociedades.
Concluiu que os bens constantes dos inventários juntos pela Sr.ª administradora da insolvência (AI) não pertencem à massa insolvente, antes são sua propriedade e irá requerer a sua separação da lista de bens apreendidos; e, consequentemente, que não é titular do crédito sob condição de €60.698,85 referente ao valor desses mesmos bens uma vez que foi corretamente abatido ao saldo da conta corrente que existia entre as duas sociedades; e terminou pedindo que este crédito seja retirado da lista de créditos reconhecidos. Juntou documentos, incluindo os inventários que elaborou em 23.09.16 juntos pela AI em 12.01.207, e arrolou testemunhas.
3. Em 30.01.2017 foi proferido despacho a ordenar a notificação da AI para se pronunciar sobre as impugnações à lista de créditos apresentadas nos autos, ao que a AI respondeu reconhecendo créditos que foram impugnados pelos respetivos titulares com fundamento em indevida exclusão, e declarando que às demais impugnações apenas os credores por elas afetados podem responder nos termos do art. 131º, nº 2 do CIRE sob pena de, nada fazendo, a impugnação ser julgada procedente.
4. Após vicissitudes atinentes com notificação à AI para apresentar nova relação de créditos ‘retificada’ de acordo com a sua pronúncia sobre as impugnações e, posteriormente à sua junção, notificação da ‘relação de créditos reconhecidos rectificada’ aos credores - ordenadas por despachos sucessivos -, em 23.01.2019 foi proferido o seguinte despacho (subl. nosso):
Considerando que a decisão a proferir no apenso C de Restituição e Separação de Bens poderá determinar uma alteração do montante do crédito do credor DPL, caso a mencionada acção seja julgada procedente, aguardem estes autos de Reclamação de Créditos pela sentença, transitada em julgada, a proferir naquele apenso C.
5. Por despacho de 27.09.2022, proferido após trânsito em julgado da sentença proferida no apenso C, foi ordenada a notificação da AI para informar do montante atual do crédito do credor DPL face ao ali decidido, ao que a AI respondeu por requerimento de 20.10.2022 manifestando entender que o crédito atual deste credor é de €297.674,60 “uma vez que o valor de 60.698,85 €, se refere ao valor dos bens apreendidos para a massa.”, ‘informação’ sobre a qual recaiu novo despacho, proferido em 08.11.2022, a ordenar a notificação da insolvente e da credora DPL “para se pronunciarem, querendo, em dez dias”, nada tendo sido dito.
6. Em sede de saneamento, cumprido por despacho de 12.04.2023, nos termos do art. 136º, nº 1, 1ª parte do CIRE foram declarados verificados com valor de sentença os créditos incluídos na lista e não impugnados, e cumprido o processualmente devido em ordem ao prosseguimento dos autos para apreciação da impugnação deduzida pela credora DPL com fundamento em indevida inclusão e qualificação de créditos reconhecidos a outros credores, e do pedido da condenação como litigante de má fé contra aquela deduzido (enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova, admissão dos meios de prova e marcação de audiência de julgamento).
7. Relativamente à impugnação da credora DPL dirigida ao crédito reconhecido em seu benefício sob condição, naquele despacho foi consignado o seguinte:
A Sra. Administradora da Insolvência, após notificada para o efeito, consignou o montante do crédito a reconhecer à DPL, Lda., sobre o que não recaiu qualquer impugnação, pelo que, a este respeito, deve reconhecer-se o crédito de € 297.674,60, de natureza comum, à referida credora (ref.ª 12917442), ficando prejudicado conhecer as impugnações deduzidas quanto a este crédito.
8. Inconformada, a credora DPL apresentou requerimento de recurso do despacho saneador com valor de sentença na parte em que reconheceu o seu crédito pelo montante de €297.674,60, requerendo a sua revogação e substituição por outro que o reconheça pelo montante de €328.373,45. Apresentou alegações que sintetizou nas seguintes conclusões:
A. No âmbito dos presentes autos de insolvência a ora Apelante reclamou inicialmente um crédito de natureza comum, no montante de € 297.674,60.
B. Tal crédito foi apurado tendo com conta a imputação ao montante total em dívida de €60.698,85, relativo ao valor de diversos bens/mercadorias (devidamente identificados e inventariados) que foram objeto de retoma pela Apelante aquando da recuperação dos estabelecimentos comerciais objeto de contrato de franquia com a Insolvente.
C. Posteriormente à Reclamação de Créditos apresentada, a Apelante teve conhecimento que a Senhora Administradora de Insolvência não só considerava apreendidos à ordem da massa insolvente os bens/mercadorias objeto de retoma pela Apelante como também havia reconhecido a esta um crédito no montante total de €358.373,45, dos quais “297.674,60 € seriam crédito comum e o valor de 60.698,85 € seria crédito sob condição, alegadamente respeitante ao valor dos bens retirados à posse da insolvente.”
D. Porque tal valor tinha sido imputado ao montante em dívida em virtude da retoma dos bens (não sendo assim devido) e porque entendia não serem os referidos bens objeto propriedade da massa insolvente, a Apelante pugnou pela retirada da lista de créditos do montante de € 60.698,85 que lhe havia sido reconhecido como crédito sob condição, tendo ainda apresentado Ação de Separação/Restituição de bens (que correu termos no apenso C dos presentes autos de insolvência), peticionado a Separação de tais bens da massa insolvente e restituição à Apelante.
E. Transitado em julgado Acórdão no âmbito da Ação de Separação/Restituição de bens que considerou serem os bens objeto de retoma propriedade da massa insolvente, resultou provado que os mesmos não foram pagos pela Insolvente e que o valor dos mesmos tinha sido objeto de imputação à dívida pela Apelante daí resultando um crédito reclamado pela Apelante de valor mais reduzido.
F. Assim, quer em termos lógicos, quer da documentação que resulta dos diversos apensos dos autos, e da posição expressa pela Apelante nos mesmos, a devolução dos bens objeto de retoma (como veio a ser decidido) implica necessariamente o aumento do crédito da Apelante, uma vez que resulta ineficaz a compensação operada por esta e, como tal, verifica-se o renascimento do correspondente crédito na esfera jurídica da Apelante.
G. Aliás, o próprio reconhecimento inicial por parte da Senhora Administradora de Insolvência do crédito de € 60.698,85 (ainda que sob condição), a acrescer aos € 297.674,60 invocados pela Apelante, reforça esta ideia, pois a eventual condição, que, a verificar-se, seria determinante para o referido valor ser adicionado ou subtraído ao inicialmente reclamado seria os bens serem (ou não) propriedade da massa insolvente.
H. Assim, sendo os bens propriedade da massa insolvente, tem de considerar-se como ineficaz a compensação operada pela Apelante e o respetivo acerto de contas inicialmente efetuado por esta, acrescendo os € 60.698,85 ao crédito inicialmente reclamado (devendo, ao invés, tal valor ser retirado da lista de créditos, caso viesse a considerar-se que os bens eram propriedade da Apelante), sendo forçoso concluir que qualquer outro entendimento que não o supra exposto não é factual ou juridicamente sustentável.
I. Não se pode concluir que a ora Apelante, notificada do entendimento da Senhora Administradora de que o seu crédito era apenas de “297.674,60 €, uma vez que o valor de 60.698,85 €, se refere ao valor dos bens apreendidos para a massa” se tenha conformado com tal realidade, pois não só tal notificação não consubstanciava interpelação para impugnação mas apenas para uma pronúncia facultativa, mas também porque resultava já dos autos que anteriormente a Apelante havia expresso nos mesmos a sua posição a este respeito.
J. Ao montante total inicialmente reclamado de € 297.674,60 deverão assim ser adicionados os € 60.698,85 objeto de compensação que ficou sem efeito, aos quais deverão ser reduzidos € 30.000,00, referentes aos montantes pagos pela Caixa Geral de Depósitos a título de garantias bancárias que, à data da reclamação de créditos apresentada, ainda não se encontravam pagas mas que já haviam sido acionadas.
K. Consequentemente, porque viola o disposto no artigo 136, n.º 5 do CIRE, deverá a decisão de que ora se recorre ser revogada e substituída por outra que reconheça à ora Apelante, credora reclamante nos autos principais de insolvência, um crédito no montante de € 328 373,45, de natureza comum.
9. Não foram apresentadas contra-alegações.
II – Objeto do Recurso
É consensual que, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha nos temos do art. 662º nº 2 e 608º, nº 2, este, ex vi art. 663º, nº 2, ambos do CPC, o âmbito do recurso é delimitado pelo objeto da decisão recorrida e definido pelas conclusões das alegações (cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), e destina-se à reapreciação da bondade da decisão recorrida e não à apreciação de questões não submetidas à apreciação do Tribunal a quo, cujo conhecimento está vedado ao tribunal ad quem. Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa (ou do incidente), se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na determinação, interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5º, nº 3 do CPC).
Assim, considerando o teor da decisão recorrida e das conclusões de recurso, cumpre apenas apreciar se, como pretende a recorrente, o seu crédito deve ser reconhecido pelo montante total inscrito na lista de créditos reconhecidos apresentada pela AI, ou se, como entendeu o tribunal recorrido, impõe-se desconsiderar e subtrair a parcela que aí foi reconhecida como crédito sob condição.
III – Fundamentação
A) De Facto
Para além das incidências processuais acima relatadas, com relevo para a
apreciação do recurso mais se aditam as seguintes:
a) STP, Ldª apresentou-se à insolvência em 02.09.2016, que foi declarada por sentença proferida em 21.09.2016.
b) Em 05.01.2017 a AI remeteu aos autos auto de arrolamento de bens e direitos elaborado em 19.11.2016, nele descrevendo, sob a verba nº 2, “Os bens constantes dos dois Inventários elaborados pela empresa DPL, Lda., em 23 de Setembro de 2016 e aí melhor identificados, descritos e avaliados, no valor global de 60.698,85 €, enviados à insolvente, por carta datada de 28 de setembro de 2016, (...), inventários que juntou aos autos por requerimento de 12.01.2017.
c) Em 20.01.2017 a recorrente fez instaurar ação para restituição e separação de Bens por apenso ao processo de insolvência, que correu termos sob a letra C, pedindo, além de outro, para “Serem separados do Auto de Arrolamento de Bens e Direitos e restituídos à DPL PT os bens constantes dos dois inventários elaborados pela DPL PT em 23 de Setembro de 2016, juntos pela Exma. Senhora Administradora Judicial aos autos em 12.01.2017, através do requerimento com referência CITIUS n.º 4941967, os quais são propriedade da DPL PT;
d) Por sentença proferida naqueles autos em apenso C, confirmada por acórdão desta Relação de 07.06.2022, foi determinada a “Manutenção da apreensão de: “Os bens constantes dos dois inventários elaborados pela empresa DPL, Lda., em 23 de Setembro de 2016 e aí melhor identificados, descritos e avaliados, no valor global de 60 698, 85€, enviados à insolvente (...).”, que constitui a verba n.º 2.
B) De Direito
A questão aqui submetida a apreciação revela-se de grande simplicidade já que a sua solução, mais que determinada pelo regime jurídico aplicável, impõe-se pela lógica das premissas que antecedem e em que se materializa a sua discussão.
Não obstante, para enquadramento jurídico da dita solução, afigura-se pertinente breve referência às especificidades da tramitação do processo de verificação e graduação de créditos apenso ao processo de insolvência e valor dos atos que o cumprem. Especificidades que, no intuito de reduzir entropias e conferir maior celeridade, com o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (por comparação com o pretérito Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência) conduziram à simplificação daquele processado, sendo que em determinadas matérias o foi através da manutenção e alargamento da desjudicialização de atos e de atividade processual intrínseca ao processo da insolvência. Propósito que com maior expressividade se manifestou ou concretizou no apenso para verificação e graduação do passivo, desde logo, através do envio dos requerimentos de reclamação de créditos ao AI em vez da sua apresentação nos autos, e da instauração do apenso de verificação e graduação de créditos com a apresentação em juízo da lista de créditos por este devida elaborar após o termo do prazo para reclamação de créditos fixada na sentença, conforme estabelecem os arts. 128° e 129° do CIRE. Procedimento que (a par com o regime de prazos legais sucessivos em conjugação com a ausência, por regra, de notificações aos interessados a partir da publicação da sentença de insolvência) conduz a óbvia simplificação processual de carácter administrativo, otimizada pelo disposto no art. 130°, n° 3 ao determinar que Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista.
Deste procedimento e normas citadas extrai-se que a lista de créditos identifica, descreve e classifica os créditos reconhecidos com valor de projeto de decisão por pré-destinado a integrar decisão judicial através da prolação de sentença homologatória de verificação de créditos, exceto na parte em que resulte modificada pelas impugnações que à mesma sejam apresentadas (cfr. arts. 130º e 131º) e/ou pela devida sindicância judicial oficiosa de erro que a lista manifeste (art. 130º, nº 3 do CIRE). Com efeito, o juiz limita-se à homologação da lista de créditos, tal como reconhecidos pelo AI, e à subsequente graduação de créditos de acordo com o direito aplicável aos termos que naquela constam descritos; só assim não será se a lista padecer de erro manifesto, o que é igualmente válido para o resultado a que conduza impugnação que não foi objeto de resposta, se desconforme com o resultado imposto pelos elementos objetivos que resultam dos autos, sendo certo que em qualquer caso não dispensa o devido enquadramento jurídico dos factos que resultem assentes por ausência de resposta.
A sindicância do erro manifesto previsto pelo art. 130º, nº 3 do CIRE – e que se impõe estender ao art. 131º, nº 3 - deve interpretar-se em termos amplos, encarando-a como o exercício de um poder-dever do Juiz para, no confronto com o que consta da própria lista ou do que resulta dos elementos disponíveis nos autos de insolvência (lato senso), verificar a conformidade substancial e formal dos créditos inscritos na lista que vai homologar. Corresponde esse ao entendimento que tem sido perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça, desde o icónico acórdão de 25.11.2008 até aos mais recentes acórdãos na matéria, e que no que aqui releva se sintetiza no seguinte: Mesmo que não haja impugnação por banda de qualquer interessado, o juiz pode e deve filtrar a menção do crédito constante da lista apresentada pelo administrador da insolvência, apreciando as suas características, procedendo à sua qualificação jurídica e aferindo se as garantias referidas pelo administrador se mostram conformes com as regras de Direito aplicável.//É este, de facto, o entendimento que predomina na doutrina e na jurisprudência e que rebate a
ideia de um efeito cominatório pleno decorrente da falta de impugnação da lista apresentada pelo administrador da insolvência, impondo ao juiz, nesse caso, uma decisão meramente homologatória. Não é a inexistência de impugnações da lista que dita a inexistência de erros na sua elaboração.
Cumpre referir que as assinaladas especificidades processuais do procedimento de verificação e graduação de créditos por apenso a processo de insolvência impõem uma consideração consentânea do âmbito e/ou dos efeitos do princípio do dispositivo e dos ónus de alegação e de prova dos factos constitutivos dos direitos a que cada um dos credores se arroga, princípios que, considerando o poder de o AI reconhecer créditos não reclamados mas que dele são conhecidos, devem ter-se plenamente em funcionamento na fase dos articulados de impugnação à lista de créditos e de resposta à impugnação, na subsequente atividade de instrução para produção das provas apresentadas caso os termos do litígio com aqueles gerado assim o determinem, mas sem prejuízo da consideração oficiosa de tudo o que, nos termos dos arts. 5°, 411° e 412° do CPC, seja relevante para a sua apreciação. Os erros e/ou as lacunas que resultem ou constem da lista de créditos reconhecidos - traduzidos em desconformidades formais ou substanciais dos créditos nela inscritos, em si mesmo ou no confronto com os elementos disponíveis nos autos e/ou o direito aplicável, ou em meras omissões de elementos de facto ou de direito, tais como a natureza do privilégio creditório reconhecido e o(s) bem(s) sobre os quais estes e as garantias incidem -, ainda que possam corresponder a reprodução de erros (de facto ou de direito) ou lacunas contidas nos requerimentos de reclamação de créditos dos credores que os tenham apresentado, deverão ser corrigidas, supridas ou integradas pelo Juiz.
Assim, os créditos - respetivos montantes e qualificação - que não sejam objeto de impugnação, são declarados verificados nos termos reconhecidos pelo AI, mas sempre sem prejuízo da sindicância e correção judicial dos mesmos no caso de erros manifestos que resultem da própria lista ou no confronto com elementos do processo que, como tal, são de conhecimento oficioso, no que se incluem erros de facto ou de direito ou, tão só, de raciocínio lógico, como no essencial urge ser o presente caso.
2. No caso, o erro de raciocínio ínsito à decisão recorrida é, antes de mais, de natureza processual: por referência ao valor que o tribunal a quo atribuiu à ausência de pronúncia da recorrente sobre a ‘informação’ que entendeu solicitar à AI e que esta veio prestar sobre o montante do crédito da recorrente em função do resultado da ação para separação e restituição de ‘bens’ apreendidos para a massa insolvente (apenso C); e por tratar-se de questão que ao tribunal competia apreciar e definir por extravasar da competência funcional da AI na medida em que, conforme consignado no despacho que sustou os autos, o montante do crédito da recorrente estava dependente do resultado da sentença proferida na ação em apenso C, da qual competia ao tribunal – e não à AI –extrair os efeitos que da mesma resultassem em sede de apreciação e fixação do montante do crédito da recorrente, constando dos autos todos os elementos para o efeito.
O erro é também de raciocínio lógico, decorrente da acrítica e indevida osmose do ‘parecer’ que na matéria foi prestado pela AI, na medida em que o resultado que com esse fundamento formal definiu – não reconhecimento do crédito da recorrente que na lista consta qualificado como sob condição -, é contrariado pelas coordenadas que os autos fornecem; as mesmas que determinaram o tribunal a quo a decretar a suspensão destes autos de reclamação de créditos com fundamento na prejudicialidade do resultado da discussão no âmbito daquela ação em apenso C.
Justificando:
Se,
i) da lista de créditos reconhecidos elaborada pela AI consta reconhecido crédito comum da recorrente no montante de €358.373,45, do qual €60.698,85 qualificado sob condição “por respeitar ao valor dos bens retirados à posse da insolvente.”;
ii) da verba nº 2 do auto de arrolamento de bens elaborado pela AI, que na mesma data foi apresentado nos autos, consta relacionado “Os bens constantes dos dois Inventários elaborados pela empresa DPL, Lda., em 23 de Setembro de 2016 e aí melhor identificados, descritos e avaliados, no valor global de 60.698,85 €
(...);
iii) em sede de impugnação da lista de créditos a recorrente confirmou que, deparando-se com as lojas exploradas pela insolvente encerradas, no dia 23.09.2016 delas retirou a mercadoria que lhe tinha fornecido, que inventariou, avaliou em €60.698,85, e abateu esse valor à conta corrente da insolvente;
e,
iv) em 20.01.2017 a recorrente fez instaurar ação para restituição e separação de Bens por apenso ao processo de insolvência, que correu termos sob a letra C, pedindo, além de outro, para “Serem separados do Auto de Arrolamento de Bens e Direitos e restituídos à DPL PT os bens constantes dos dois inventários elaborados pela DPL PT em 23 de Setembro de 2016, juntos pela Exma. Senhora Administradora Judicial aos autos em 12.01.2017, através do requerimento com referência CITIUS n.º 4941967, os quais são propriedade da DPL PT;
v) em 23.01.2019 foi decretada a sustação dos autos de reclamação de créditos até que naquela ação sobreviesse sentença transitada em julgado por – não obstante tratar-se de crédito que na lista constava reconhecido sob condição... - o tribunal recorrido ter considerado que a mesma poderá determinar uma alteração do montante do crédito do credor DPL Supermercados, caso a mencionada acção seja julgada procedente, que o mesmo é dizer, caso fosse ordenado o levantamento do que a AI e o tribunal consideraram como apreensão dos bens descritos nos inventários elaborados pela recorrente;
vi) por sentença proferida naqueles autos em apenso C, confirmada e transitada, aquele pedido foi julgado improcedente e declarada a “Manutenção da apreensão de: “Os bens constantes dos dois inventários elaborados pela empresa DPL, Lda., em 23 de Setembro de 2016 e aí melhor identificados, descritos e avaliados, no valor global de 60 698, 85€, enviados à insolvente (...).”, que constitui a verba n.º 2;
Logo,
O montante do valor que a recorrente atribuiu aos bens que forneceu à insolvente e que, por tê-los ‘recuperado’, ‘abateu’/deduziu ao montante que por esta lhe era devido, volta a integrar a dívida da insolvente, com recíproco e inerente acréscimo do crédito da recorrente no mesmo montante por efeito da manutenção da (suposta) apreensão desses bens decretada pela sobredita sentença.
Dito de outra forma, mas com o mesmo resultado, o crédito que na lista de créditos consta reconhecido sob condição (no caso, suspensiva) “por respeitar ao valor dos bens retirados à posse da insolvente”, passou a crédito sem condição na medida em que esta se verificou; a saber, a manutenção, por sentença transitada, da (suposta) apreensão daqueles bens – à qual fáctica e juridicamente só poderá corresponder obrigação de reposição ou de restituição (em espécie ou em valor) a cargo da recorrente, mas que não cabe aqui apreciar por não integrar o objeto do apenso de verificação de créditos –, com consequente anulação do abate que a recorrente fez sobre o montante em dívida pela insolvente pelo valor que atribuiu a esses mesmos bens.
Sem necessidade de outras considerações, do exposto resulta o desacerto da decisão recorrida e a procedência dos fundamentos do recurso e do pedido que pelo mesmo vem deduzido.
Sem prejuízo de se acrescentar que o que aqui se discutiu assenta num evidente equívoco – o de considerar que a verba nº 2 do auto de arrolamento corresponde a apreensão dos bens a que a mesma reporta, que não corresponde, pelo menos à apreensão material de bens pressuposta pelos nºs 1 a 4 do art. 150º do CIRE que, sob a epígrafe Entrega dos bens apreendidos, regula os termos em que aquela é cumprida, em função da localização ou da situação jurídica dos bens ou das dificuldades com que o AI se depare na sua concretização. Porém, trata-se de equívoco que respeita e se reflete na definição do ativo da massa insolvente e que à AI e ao tribunal a quo caberá resolver, mas que não pode afetar a definição creditícia da recorrente sobre a insolvência no sentido de lhe ser recusado o reconhecimento de um crédito que, por sentença transitada em julgado proferida nos autos em apenso C - e contrariando o que era pretensão (ilegítima) da recorrente -, o tribunal concluiu não poder ser compensado, como efetivamente não é, por recurso direto a bens que integravam já a esfera patrimonial da insolvente, em benefício singular da recorrente e com prejuízo para o universo dos credores.
Termos em que se conclui pela procedência do recurso.
IV – Das custas
Na ausência de parte que tenha dado causa ao recurso, de contra-alegações, de decaimento da recorrente, e de causa legal de isenção ou dispensa de tributação, as custas do recurso são da responsabilidade desta por aplicação do critério subsidiário da vantagem ou do proveito processual previsto pelo art. 527º, nº 2 do CPC, e porque apenas a recorrente dele beneficiou.
V - Decisão
Pelo exposto, as Juízas desta secção acordam em julgar a apelação procedente e, consequentemente, na revogação da decisão recorrida que, conforme redução do pedido apresentada em sede de recurso pela recorrente, se substitui por outra, a julgar verificado o crédito da recorrente como crédito comum no montante total de €328.373,45 (trezentos e vinte e oito mil, trezentos e setenta e três euros, e quarenta e cinco cêntimos).
Custas da apelação a cargo da recorrente, a computar por referência ao valor do crédito em discussão no presente recurso (€60.698,85).
Lisboa, 14.12.2023
Amélia Sofia Rebelo
Fátima Reis Silva
Manuela Espadaneira Lopes