Sendo o pagamento pontual da retribuição do trabalhador uma das obrigações principais do empregador e constituindo a retribuição o meio de subsistência por excelência do trabalhador e do seu agregado familiar, o não pagamento pontual dessa obrigação pode lesar seriamente os seus interesses, sobretudo quando o empregador sistematicamente se atrasa nesse pagamento e esses atrasos põem em causa a satisfação de necessidades essenciais; ou então, quando esses atrasos se repercutem na programação da vida pessoal e familiar do trabalhador e nos compromissos por ele assumidos perante terceiros.
Proc. 5140/12.0TTLSB.L1 4ª Secção
Desembargadores: Filomena Carvalho - Duro Mateus Cardoso - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
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Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa
1- RELATÓRIO
J… intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra L…, pedindo a condenação da ré no pagamento de €11.555,00 a título de indemnização e créditos laborais vencidos.
Alega, no essencial, que em 6 de Janeiro de 1999 celebrou contrato de trabalho com a ré, esta não lhe pagou retribuições referentes aos meses de Junho, Julho, Agosto e subsídio de férias de 2012, o que motivou a comunicação da resolução do contrato de trabalho.
A ré contestou e deduziu pedido reconvencional.
Contestando, sustenta a inexistência de justa causa de resolução do contrato de trabalho.
Reconvindo, pede a condenação do autor no pagamento de €970,00, acrescida de juros de mora, a título de indemnização pela falta de pré-aviso.
Foi admitida a reconvenção, proferido o despacho saneador e fixado o objecto do litígio.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida a sentença, na qual foi exarada a seguinte
Decisão:
I- Julgo a ação parcialmente procedente e condeno L…, Lda. A pagar a José Alberto Veloso a quantia de €2.226, 03 a título de créditos laborais vencidos;
II- Julgo a reconvenção totalmente procedente e condeno J… a pagar a L…, Lda. a quantia de €970, 00 a título de indemnização, acrescida de juros de mora computados à taxa de 4/prct. desde a data da notificação da contestação ao autor até integral pagamento;
Custas da ação a cargo do autor e ré na proporção dos respetivos decaimentos e custas da reconvenção a cargo do autor (art° 527° do NCPC).
Registe e notifique.
Inconformado, interpôs o Autor recurso para esta Relação, tendo sintetizado as razões da sua discordância nas seguintes
CONCLUSÕES
b) O Tribunal a quo não deveria ter dado como provado o facto, que por conta da retribuição referente ao mês de Agosto de 2012 a Ré, apenas pagou a A. A quantia de €300,00.
c) A Ré não provou tal facto.
d) O facto foi mal fundamentado.
e) O A. fundamentou e provou a resolução do seu contrato de trabalho.
f) O Tribunal a quo, deveria condenar a Ré, ao pagamento da indemnização de antiguidade a que alude o artigo 396° do Código do Trabalho.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a anulando-se a douta sentença recorrida, fazendo-se JUSTIÇA Contra-alegou a Ré, sustentando o bem fundado da decisão recorrida no que tange à não verificação de justa causa para a resolução do contrato, sustentando, porém, que não logrou provar o pagamento das prestações salariais em que foi condenada, por facto imputável ao Autor, concluindo que a sentença deve ser revogada, nessa parte.
Admitido o recurso e subidos os autos a esta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a sentença deve ser revogada. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes as questões suscitadas:
. Impugnação da matéria de facto;
.Apreciação da justa causa invocada para a resolução do contrato pelo trabalhador.
II - FUNDAMENTOS DE FACTO
A 1ª instância deu como assentes os seguintes factos:
1° Em 6 de janeiro de 1999 ré e autor subscreveram o documento intitulado de Contrato de Trabalho Sem Termo junto a fls. 7 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, do qual consta, designadamente:
Entre a firma L…, Lda. (...) e J… G.), foi celebrado este contrato de trabalho sem termo, conforme as seguintes cláusulas:
1° O 2° outorgante desempenhará as funções de empregado de balcão, mediante um vencimento inicial de Esc: 58.900$00 mensais, aos quais serão deduzidos os descontos previstos na lei vigente;
2° O 2° outorgante terá direito a receber a quota parte do subsídio de férias e de natal correspondente ao tempo de trabalho efetuado;
3° Este contrato entra em vigor em 1 de janeiro de 1999 (...);
2° Em junho de 2012 o autor auferia ao serviço da ré a quantia de €485,00 a título de retribuição mensal;
3° O autor remeteu à ré, que a recebeu no dia 18 de setembro de 2012, a carta datada de 15 de setembro de 2012, junta a fls. 8 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, da qual consta, designadamente:
(...) Eu J… (...), venho comunicar a resolução do meu contrato de trabalho por justa causa, com efeitos imediatos (15.09.2012), nos termos e para os efeitos do disposto no art° 394°, n° 2, da Lei n° 7/2009, de 12/02 (Código do Trabalho) devido a falta de pagamento dos meses de junho, julho, agosto e subsídio de férias.
O empregador ao praticar a omissão desta obrigação legal e convencional violou de forma consciente, culposa (e com dolo) as suas garantias legais e convencionais, bem como lesou interesses patrimoniais sérios do trabalhador.
Com a resolução do contrato de trabalho, solicito o pagamento dos dias de trabalho prestado até 15/09/12, bem como dos vencimentos dos meses 6, 7, 8, mais o subsídio de férias do ano de 2012 e ainda a liquidação dos direitos pela cessação do contrato de trabalho e a indemnização devida nos termos do art° 396° do Código do Trabalho acima referido, sob pena de recorrer às competentes instâncias judiciais (...);
4° Por conta da retribuição referente ao mês de agosto de 2012 a ré apenas pagou ao autor a quantia de €300,00 (alterado nos termos infra referidos);
5° Até 15 de setembro de 2012 a ré não pagou ao autor subsídio de férias do ano de 2012;
III - FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Questão prévia
Antes de entramos na apreciação das questões suscitadas pelo Apelante/Autor há que tomar posição quanto à pretensão da Ré/Apelada, formalizada em sede de contra-alegações, no sentido de ser alterada a sentença no que toca à condenação que lhe foi imposta respeitante a créditos salariais.
Vejamos.
A ampliação do âmbito do recurso a requerimento do Recorrido vem prevista no art. 636 do NCPC, que reproduz, sem alterações, o anterior art. 684-A, na redacção do DL 180/96, de 25.9.
Assim, dispõe o n°1 do art. 636 que No caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevendo da necessidade da sua apreciação.
Daqui decorre que o âmbito do recurso só pode ser ampliado pelo recorrido nas situações em que a parte tendo apoiado a acção ou a defesa em vários fundamentos, a mesma decaiu em um ou mais desses fundamentos e não em outros. Subindo o processo em recurso por iniciativa da outra parte, a lei confere ao recorrido (parte vencedora que não recorreu por, afinal, ter tido ganho de causa) a possibilidade de, precavendo-se da eventualidade de o recorrente lograr procedência do recurso, requerer ao tribunal ad quem o conhecimento do fundamento ou dos fundamentos em que decaiu.
Não é, manifestamente, o caso, já que a sentença da 1a instância apenas acolheu, parcialmente, o pedido do Autor. Se a Ré não concordava com essa decisão, cabia-lhe dela interpor recurso, caso se verificassem os respectivos pressupostos legais, ou com ela conformar-se, caso estes não estivessem reunidos.
Não se conhecerá, pois, da pretensão da Ré/Apelada.
2. Da impugnação da matéria de facto
O Apelante impugna o ponto 4 da matéria de facto, alegando que a factualidade aí vertida não podia dar-se como assente, já que a Ré não apresentou qualquer prova, nomeadamente documental, nesse sentido, limitando-se a afirmar o seu legal representante, em sede de depoimento de parte, que havia pago parte do salário referentes Agosto de 2012, o que não aconteceu.
Analisando a motivação da decisão fáctica, e quanto ao facto enunciado no ponto 4, exarou-se que este foi apurado com base nas declarações de parte da Ré que, nesta matéria, configurou confissão por se tratar de factos cujo reconhecimento pela ré lhe é desfavorável e favorece o autor, nos termos do disposto nos arts. 454° e 466°, n°3 do NCPC e 352° do CC.
Ora o facto do legal representante da Ré ter afirmado, em sede de depoimento de parte, que pagou parte da retribuição do Autor referente a Agosto de 2012 (€300,00) não representa a admissão de um facto favorável ao Autor, mas antes que lhe é desfavorável. Desfavorável é antes a admissão de que, pelo menos parte do salário desse mês, não lhe foi pago.
E porque o facto consignado no ponto 4, segundo essa motivação, apenas foi suportado no depoimento de parte da Ré que, como referimos, nessa parte não pode ser tido como confessório, atento o disposto no art. 352 do CC, assiste razão ao Apelante.
Assim, determina-se a alteração da redacção do ponto 4, que passará a ser a seguinte:
4. A Ré não pagou ao Autor pelo menos parte da retribuição de Agosto de 2012.
Em consequência, e quanto aos créditos reclamados pelo Autor, competindo à Ré a prova do seu pagamento, por se tratar de um facto extintivo do direito invocado por aquele (art. 342, n°2 do CC), e não o tendo feito também com referência ao mês de Agosto de 2012, deverá suportar a integralidade do seu pagamento (e não de apenas uma parte), no montante de € 485,00, ascendendo a quantia em dívida, a título de créditos salariais, a €2 526,03.
Procede, pois, o recurso nesta parte.
3. Da justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador
Discorda também a Apelante da sentença recorrida na parte em que julgou não verificada a justa causa para a resolução do contrato por iniciativa do trabalhador. Tendo esta ocorrido na vigência do CT de 2009, assim como os factos que a fundamentaram, deve ser apreciada de acordo com o respectivo regime (art. 7°, n°s 1 e 5, al.c) da Lei 7/2009, de 12.2).
Ora, no que respeita a saber se procede a justa causa de resolução do contrato de trabalho invocada pelo Autor, há que ter em conta o art. 394 daquele diploma legal. Aí se configuram duas situações de desvinculação, por iniciativa do trabalhador, ocorrendo justa causa, respeitando ambas a situações anormais e particularmente graves em que deixa de ser exigível que aquele permaneça ligado à empresa por mais tempo: a primeira reporta-se a fundamentos subjectivos, por terem na sua base um comportamento culposo do empregador, dando lugar a indemnização (art. 394, n°2 e 396); a segunda reporta-se a fundamentos objectivos, que não têm na sua base um comportamento culposo do empregador (art. 394, n°3).
Em qualquer das situações está subjacente ao conceito de justa causa, que o art. 394 não define, mas que a doutrina e a jurisprudência têm considerado a impossibilidade definitiva da subsistência do contrato de trabalho, tal como é empregue no âmbito do despedimento promovido pelo empregador (cfr. Albino Mendes Batista, Estudos sobre o Código do Trabalho, 2aed., págs. 25 e sgs).
Acresce que, nos termos do n°4 do art. 394, a justa causa será apreciada pelo tribunal em conformidade com o disposto no n°3 do art. 351, com as necessárias adaptações, ou seja, deverá o tribunal atender ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre as partes e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.
Por outro lado, a declaração de resolução deve ser feita por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento desses factos (art. 395, n°1), só podendo ser atendidos, para efeito de apreciação da ilicitude da resolução, os factos constantes de tal comunicação (art. 398, n°3).
Assim, em suma, existe justa causa para o trabalhador resolver o contrato de trabalho, motivadamente e com direito a indemnização, desde que se verifiquem os seguintes elementos (cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, parte II, Almedina, 2006, pág. 910 e sgs):
- comportamento da entidade empregadora enquadrável em qualquer das alíneas do n°2 do citado art. 394 ou outro de idêntica (elemento objectivo);
- que esse comportamento possa ser imputado à entidade empregadora a título de culpa (elemento subjectivo);
- que tal comportamento, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, em termos de ser inexigível ao trabalhador a conservação do vínculo laboral (elemento causal). O mencionado n°2 do art. 394 indica, de forma exemplificativa, os comportamentos do empregador que podem constituir justa causa de resolução por parte do trabalhador, com direito a indemnização, a saber:
a) falta culposa de pagamento pontual da retribuição;
b) violação culposa das garantias legais ou convencionais do trabalhador;
c) aplicação de sanção abusiva;
d) falta culposa de condições de segurança e saúde do trabalhador,
e) lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador;
f) ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, praticada pelo empregador ou seu representante.
Em conformidade com as regras gerais relativas ao ónus da prova, compete ao trabalhador provar a existência do comportamento do empregador subsumível a qualquer das alíneas referidas no n°2 do art. 394, ou outro que, não estando ali expressamente previsto, viole os seus direitos e garantias, por força do art. 342, n°1 do CC, e à entidade patronal demonstrar que esse comportamento não procede de culpa sua, nos temos do art. 799 do mesmo diploma legal.
Neste sentido, veja-se o Ac. do STJ de 4.11.11 (in www.dgsi.pt), em cujo sumário se diz que (n)o que diz respeito ao ónus da prova da culpa, quando ocorra violação de qualquer dever contratual do empregador, vale a regra do art. 799, n°1 do Código Civil, o que significa que, demonstrados os comportamentos que configuram, na sua materialidade, violação dos deveres contratuais imputados ao empregador - cuja prova compete ao trabalhador, nos termos do art. 342, n°1, do Código Civil -, a culpa do empregador se presume, havendo de ter-se por verificada, caso a presunção não seja ilidida.
Revertendo ao caso concreto e tendo presente a missiva rescisória, verifica-se que nela o trabalhador imputa á Ré a falta de pagamento dos salários de Junho, Julho, Agosto e do subsídio de férias de 2012.
Cotejando a matéria de facto dada como assente, verifica-se que apenas se provou que a Ré não pagou ao Autor parte do salário de Agosto de 2012 e o subsídio de férias desse ano.
Quanto a este último, há que ter presente que o direito a férias se vence no dia 1 de Janeiro de cada ano, reportando-se ao trabalho prestado no ano civil anterior (art. 237 do CT/09).
Por sua vez, salvo acordo escrito em contrário, o subsídio de férias deve ser pago antes do início do período de férias e proporcionalmente em caso de gozo interpolado (art. 264, n°3 do CT).
Assim, cabia ao Autor ter alegado e provado que já havia gozado parte ou a totalidade do período de férias, o que não fez, pelo que não pode dizer-se que, à data da resolução do contrato, já havia mora debitoris quanto a esse subsídio. Resta-nos assim, como fundamente rescisório, a falta de pagamento de parte do salário de Agosto de 2012.
A conduta da Apelada constitui efectivamente uma violação do dever de pagar pontualmente a retribuição que era devida ao Apelante (art. 127, n°1, b) do CT), que se presume culposa, nos termos do ar. 799, n°1 do CC.
Mas há que ponderar que, para os efeitos que ora relevam, presunção de culpa no não pagamento pontual de uma obrigação e justa causa para a resolução do contrato pelo trabalhador não são necessariamente uma só realidade.
É que esta última, a aferir nos termos do n°3 do art.351 do CT, pela remissão feita pelo n°4 do art.394 do mesmo diploma, deve atender ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre as partes ou entre este e a sua entidade empregadora e ao envolvimentos e circunstâncias precedentes e posteriores ao comportamento invocado como constituindo justa causa, tudo com a finalidade de se aquilatar se a relação de trabalho ficou imediata e praticamente impossível de subsistir (vd. Acs. do STJ de 18.2.09 e de 18.10.06, disponíveis em www.dgsi.pt).
Sendo o pagamento pontual da retribuição do trabalhador uma das obrigações principais do empregador e constituindo a retribuição o meio de subsistência por excelência do trabalhador e do seu agregado familiar, o não pagamento pontual dessa obrigação pode lesar seriamente os seus interesses, sobretudo quando o empregador sistematicamente se atrasa nesse pagamento e esses atrasos põem em causa a satisfação de necessidades essenciais; ou então, quando esses atrasos se repercutem na programação da vida pessoal e familiar do trabalhador e nos compromissos por ele assumidos perante terceiros.
Porém, da factualidade apurada não se retiram - nem o Autor nada mais alegou que não a mera materialidade do não pagamento das retribuições e subsídio - elementos que apontem no sentido de, com a apurada actuação da Ré (falta de pagamento de parte do salário de Agosto), se ter tornado impossível a manutenção da relação de trabalho.
Há, pois, que concluir pela não verificação de justa causa para a resolução do contrato, pelo que o Autor não tem direito à indemnização a que se reporta o n°1 do art. 396 do CT, improcedendo, nesta parte o recurso.
IV - DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, pelo que se altera o ponto 1 do dispositivo, condenando-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de €2.526,03, a título de créditos laborais vencidos, mantendo-se no mais a decisão recorrida.
Custas por Apelante e Apelado na proporção do respectivo decaimento.
Lisboa, 25 de Março de 2015