A arguição de nulidades da sentença proferida em processo especial de acidente de trabalho está sujeita aos requisitos do art.° 77 do Código de Processo do Trabalho.
Para descaraterizar o acidente de trabalho, nos termos do art.° 14, n.° 1, a. b), da LAT, é preciso que o sinistrado atue com negligência grosseira, a qual corresponde a uma violação do dever de cuidado particularmente grave, qualificada, temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares e que torna fortemente previsível a verificação do dano ou do perigo; e que essa atuação dê azo infortúnio
Para descaraterizar o acidente de trabalho, nos termos do art.2 14, n.° 1, a. a), da LAT, importa que haja inobservância, ativa ou omissiva, do sinistrado das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, da qual provenha o acidente. Ou seja: elimina-se, num juízo de prognose póstuma, a conduta do sinistrado, e o evento não teria ocorrido, porque essas condições de segurança eram aptas, adequadas e suficientes para prevenir o acidente.
Proc. 323/16.7T8PDL 4ª Secção
Desembargadores: Sérgio Manuel de Almeida - Maria Celina Nóbrega - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
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Acid Trabalho n.° 323/16.7T8PDL.L1
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
Sinistrado (adiante, por comodidade, designado abreviadamente por A.): J....
Responsáveis (adiante designadas por RR.): L..., SA; e C..., Lda.
O A. demandou as RR. na presente acção especial emergente de acidente de trabalho alegando que
Alega o Autor, em síntese, que:
- em 21 de Abril de 2015, trabalhava por conta da Ré C..., no exercício de funções de pedreiro;
- nessa data, no exercício das suas funções, ao proceder à colocação de telhas no cimo de um edifício, escorregou e caiu de uma altura de três metros, sofrendo uma fractura do pilão tibial esquerdo, ficando com rigidez da flexão, extensão do tornozelo, inversão e eversão do pé;
- lesão e sequelas que lhe determinaram uma incapacidade temporária e, após a cura, uma incapacidade permanente parcial (IPP), com o coeficiente de 10,55/prct.;
- o acidente ocorreu por inobservância das regras de segurança da parte da Ré empregadora, não tendo a mesma colocado andaimes, `protecções' nos bordos, nem disponibilizado plataforma móvel ou sistema de arnês;
- na altura, a mesma tinha a responsabilidade por acidente de trabalho transferida para a Ré Liberty, ainda que tendo como referência um valor de retribuição anual distinto do que efectivamente auferia.
Com esses fundamentos pediu:
- a condenação da Ré C... no pagamento do capital de remição a ser calculado em função de uma pensão anual agravada, pela IPP de que ficou a padecer, assim como sie uma indemnização agravada pelos períodos de ITA e 1TP;
- a condenação da Ré Liberty, ao abrigo do art. 792, n° 3, da Lei n2 98/2009, de 4 de Setembro, também no pagamento de um capital de remição calculado com base na pensão anual a apurar, assim como de uma indemnização pelos períodos de ITA e ITP;
- de forma subsidiária, e caso não se prove que o acidente em causa se deveu a falta de observância das regras de segurança, a condenação de ambas as Rés, na medida da sua responsabilidade, no pagamento do capital de remição e da indemnização por ITA e ITP que são devidos, mas sem apuramento de responsabilidade agravada.
Citada, a Ré Liberty contestou, alegando, em síntese, que este acidente se deveu à violação das condições de segurança, devendo concluir-se, como tal, pela existência de culpa da empregadora na sua ocorrência, sendo a seguradora apenas responsável pelas prestações normais (sem agravamento) previstas na lei.
Também a Ré C... contestou, alegando ter cumprido todas as regras de segurança exigíveis, tendo a queda ocorrido dado o trabalhador, contrariando as instruções que lhe foram dadas, estar a efectuar este trabalho sem colocar o andaime e as `protecções'. Pede a improcedência da acção em relação a si, com a sua absolvição do pedido.
Proferido despacho saneador, com condensação da matéria de facto e realizada audiência de julgamento, o Tribunal proferiu a final sentença em que julgou a acção
procedente nos seguintes termos:
a) fixa-se, em favor do Autor, J..., uma indemnização pelos períodos de incapacidade temporária absoluta- (ITA) e de incapacidade temporária parcial (ITP).no valor, de,€ 3417,00 (ITA) + € 536,00 (ITP), com acréscimo de €1464,;7•, (ITA) + € 229,6p (ITP), a título de agravamento por actuação culposa da empregadora; no valor total de 4881,72 (ITA) + €1765,60 (ITP);
b) fixa-se, em favor. do Autor, pelo coeficiente de incapacidade permanente parcial. (IPP) determinado, uma pensão anual no valor de € 645,14, com acréscimo de € 276,48, a título de agravamento por actuação culposa da empregadora no valor total de € 921,62 (pensão a ser objecto de remição);
c) condena-se as Rés, L..., SA, na proporção de 88,14/prct., e C…, Lda.,. na proporção de 11,86/prct., a pagar ao Autor a indemnização e o capital de remição calculados sem agravamento, fixados nas alíneas anteriores, nos valores de € 3417,00 + €' S36,00 (indemnização) e € 645,14 (pensão a remir), sem prejuízo da dedução dos valores já liquidados e do exercício do direito de regresso por parte da Ré seguradora;
d) condena-se a Ré C... a pagar ao Autor o agravamento da indemnização e do capital de remição fixados em a) e b), nos valores de € 1464;72 + € 229,60 (indemnização) e € 276,48 (pensão á remir.);
e) condena-se as Rés, na respectiva proporção, a pagar ao Autor os juros de mora devidos sobre as prestações acima fixadas, calculados à taxa legal, desde a datado seu vencimento até definitivo e integral pagamento.
Inconformada, a R. empregadora recorreu, concluindo:
1. O Tribunal a quo condenou a R. recorrente, em virtude de acidente ocorrido a 21 de Abril de 2015, a pagar ao A., na proporção de 11,86/prct., a indemnização e o capital de remição calculados sem agravamento, nos valores de € 3417,00 + € 536,00 (indemnização) e € 645, 14 (pensão a remir), sem prejuízo da dedução dos valores já liquidados e do exercício do direito de regresso por parte da R. seguradora; o agravamento da indemnização e do capital de remição nos valores de € 1464172 + € 229,60 (indemnização) e € 276,48 (pensão a remir); e os juros de mora, devidos sobre as prestações acima fixadas, calculados à taxa legal, desde a data do seu vencimento até definitivo e integral pagamento.
2. Tal decisão contraria a matéria de facto dada como provada;
3. Foi dado como provado que a Ré, mediante determinação do seu gerente, Humberto Simas, procedeu à colocação de um andaime que cobria uma das fachadas da moradia `em obra'.
4, 5. Provou-se também que tal andaime foi entretanto retirado, e que o A. trabalhava sem que tal andaime voltasse a ser colocado, e assim actuava contra as instruções que a Ré lhe havia dado.
6. A alínea a) do n.º 1 do art.º 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que regulamenta os acidentes de trabalho diz que o empregador não tem que reparar os danos decorrentes do acidente que: a) for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
7. O comportamento do trabalhador que actuou contra instruções dadas pelo empregador, isto é, não colocou os andaimes de protecção que haviam sido disponibilizados para o efeito e que haviam sido anteriormente colocados na outra fachada do imóvel, foi a causa essencial dos danos sofridos pelo A.
8.. A actuação do trabalhador não só violou as instruções recebidas da entidade empregadora, como também foi temerária, enquadrando-se no conceito de negligência grosseira, previsto no artigo 14.º, número 1 b) e número 3 da Lei número 98/2009, de 4 de Setembro;
9. Não se provou que os factos dados como provados de que a recorrente não tivesse colocado `protecções de quedas' nos bordos e de que a não disponibilização ao Autor de uma plataforma móvel de acesso, de um mecanismo de arnês / “linha de vida” e de um capacete fossem essenciais para a não ocorrência do acidente;
10. Não existe qualquer nexo de causalidade entre a não utilização dos utensílios referidos na alínea anterior e o acidente;
11. Foi o incumprimento desobediente das instruções da empregadora por parte do trabalhador, a única causa do acidente e dos danos provocados no trabalhador;
12. O empregador forneceu os elementos de segurança necessários e indicou ao trabalhador como utilizá-los;
13. O trabalhador violou, por omissão, as condições de segurança que lhe foram disponibilizadas;
14. O trabalhador agiu voluntariamente;
15. Não houve qualquer razão para o trabalhador não usar os meios de segurança disponibilizados;
16. Existe nexo de causalidade entre a não utilização do material disponibilizado e o acidente;
17, 18. A decisão da 1.2 instância contraria totalmente os factos dados como provados em julgamento, tornando nula a sentença proferida na 1.2 Instância, conforme determina a alínea c) do n.21 do art.° 615.2 do Código do Processo Civil. _
Remata impetrando se declare nula e, em consequência, se revogue a sentença proferida pelo Tribunal da 1.2 Instância.
O trabalhador, patrocinado pelo MºPº, contra-alegou, pedindo a improcedência da ação e concluindo:
1. Atentos os fundamentos do recurso não tem razão a recorrente.
2. As ordens e instruções de montagem do andaime não eram apenas para o autor, destinavam-se ao acesso ao telhado, ao A. e outros trabalhadores, e foi igualmente referido que o A. sozinho, não conseguia montar o andaime.
3. Como era habitual, diariamente, o representante da entidade empregadora havia passado pela obra, observou os trabalhos com a ausência do andaime, e nada referiu ou ordenou.
4. Resultou provado que:
Nas circunstâncias descritas em 3), 4), 5) e 6), o Autor prestava as suas funções sem que a 2° Ré tivesse procedido a: colocação de `protecções de quedas' nos bordos; disponibilização ao Autor de uma plataforma móvel de acesso, de um mecanismo de arnês / `linha de vida' e de um capacete.
5. Tal matéria probatória, consubstanciada na prova da ausência de disponibilização ao A. dos referidos mecanismos de segurança, que não foram disponihilizados ao sinistrado, resulta patente, clara e está em consonância com a da fundamentação da sentença, sob recurso.
6. Se atentarmos às circunstancias do acidente, o A. estava no telhado, onde se deslocava sem qualquer proteção, vindo a cair como resulta e nas circunstâncias descritas nos autos.
7. Pretende com as suas conclusões a recorrente fazer crer que um simples andaime, montado apenas num dos lados, sem qualquer resguardo ou guarda-corpos, tal como facultado ao A., fosse suficiente para amparar a queda, e como tal a sua ausência é a causa direta das consequências da queda.
8. Mas também entende a recorrente que não sem mostra por sua vez essencial a obviar a referida queda em altura, a utilização e disponibilização de outros mecanis¬mos, como plataforma móvel de acesso, de um mecanismo de arnês / `linha de vida'.
9. Porém, nada nos permite habilitar com elevada probabilidade que a queda não se daria, ainda que ali estivesse o andaime, este com efeito, não existe para impedir a queda dos trabalhadores que laboram em altura.
10. Não pode a recorrida estabelecer o nexo de causalidade entre a ausência de montagem do andaime por parte do trabalhador, e causa do acidente e dos danos provocados no trabalhador.
11. Mas pode sim estabelecer-se, tal nexo de causalidade com a falta dos mecanismos de segurança referidos em 4, e não observados pela recorrida.
12. Com efeito, resulta da matéria assente que, a recorrente não colocou `prote¬ções de quedas' nos bordos e que não disponibilizou ao A. uma plataforma móvel de acesso, de um mecanismo de arnês / `linha de vida' e um capacete.
13. Pelo que (não) pode concluir-se, como pretende a recorrida, que as ausências destes mecanismos não foram essenciais para a ocorrência do acidente.
14. Nem concluir-se, como pretende a recorrida, que não existe qualquer nexo de causalidade entre a não utilização dos utensílios referidos e o acidente;
15. O argumento da responsabilização do A. pelo acidente não pode, pois, colher qualquer provimento.
16. Como se constata da matéria probatória e da argumentação bem expendida da sentença recorrida, não evidenciou provado que o sinistrado intencionalmente tivesse violado, por omissão, as regras de segurança estabelecidas pela entidade patronal.
17. Nada nos diz, pois, que o A. atuou voluntária e conscientemente, desprezando as instruções de segurança dadas pela entidade empregadora.
18. Inexiste qualquer fundamento que conduza à descaracterização do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado.
19. Ao invés resulta provado sim que existiu uma conduta negligente da empregadora, actuando sem o cuidado que lhe seria exigível na falta de observância das regras de segurança.
20. Inexiste a invocada nulidade, prevista na alínea c), nº1, do art.° 615º do C.P.C.
21. Não ocorre qualquer contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos, o raciocínio expresso na fundamentação aponta para a correta consequência jurídica e está também essa de pelo em consonância com a matéria de facto dada como provada.
22. In caso, não existe qualquer contradição, e a questão suscitada pela recorrente não colide com a sentença, inexistindo, assim, a invocada nulidade.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre apreciar neste recurso - considerando que o seu objecto é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.2 635/4, 639/1 e 2, e 663, todos do Novo Código de Processo Civil - se existe alguma nulidade da sentença e se o acidente é descaraterizado ou se verifica de qualquer modo alguma causa de exclusão de responsabilidade do empregador.
Factos provados:
1. No dia 21 de Abril de 2015 o Autor exercia funções no interesse e sob as ordens, direcção e fiscalização de C..., Lda, com a categoria profissional de `pedreiro'.
2. Recebendo uma retribuição anual de € 8735,76 (€ 550,00 X 14 prestações, a título de retribuição base, mais € 94,16 x 11 prestações, a título de subsídio de alimentação).
3. Na data assinalada em 1), às 16:35 horas, o Autor, no exercício das suas funções nos termos definidos nas alíneas anteriores, encontrava-se numa obra de reparação de telhado localizada na Rua da Igreja, n° 14, Achada, Nordeste.
4. Após ter acedido ao telhado, com o uso de uma escada de mão em ferro com 3/3,5 metros de altura, o Autor, naquele momento, procedia à colocação de `telha regional' por cima de `telha de fibrocimento'.
5. Então, procurando descer para outro ponto do telhado, o Autor escorregou, caiu, deslizou pelo telhado e foi projectado.
6. O que levou a que caísse ao solo, a partir de uma altura de 3 metros.
7. Como consequência do descrito nas alíneas anteriores, o Autor:
a) sofreu fractura do pilão tibial esquerdo (tornozelo);
b) foi assistido no Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, onde permaneceu 3 dias;
c) depois, foi transferido para a Clínica do Bom Jesus, em Ponta Delgada, onde foi submetido a cirurgia, com colocação de placa de material de osteossíntese por fractura do terço inferior da tíbia da perna esquerda;
d) manteve-se em situação de incapacidade temporária absoluta (ITA) até io de Novembro de 2015;
e) manteve-se em situação de incapacidade temporária parcial (ITP), de 40/prct., desde u de Novembro de 2015 até à data da alta, 29 de Janeiro de 2016;
f) ficou, após a alta, com cicatriz cirúrgica, com necessidade de cuidados hidratantes, e rigidez da flexão, extensão do tornozelo, inversão e eversão do pé;
g) e ficou a padecer, após a alta, de incapacidade permanente parcial (IPP) com o coeficiente de 10,55/prct..
8. Nas circunstâncias descritas em 3), 4), 5) e 6), o Autor prestava as suas funções sem que a 2á Ré tivesse procedido a:
a) colocação de `protecções de quedas' nos bordos;
b) disponibilização ao Autor de uma plataforma móvel de acesso, de um mecanismo de arnês / `linha de vida' e de um capacete.
9. Em momento anterior ao descrito em 3), 4), 5) e 6), a Ré, mediante determinação do seu gerente, Humberto Simas, procedeu à colocação de um andaime que cobria uma das fachadas da moradia `em obra'.
10. Tal andaime identificado no número anterior foi, entretanto, retirado.
11. Na sequência do descrito no número anterior, o Autor actuava nos termos definidos em 3), 4), 5) e 6) sem que tal andaime voltasse a ser colocado.
12. E assim actuava contra as instruções que a Ré lhe havia dado.
13. Após a ocorrência do descrito em 3), 4), 5) e 6), a Ré montou um andaime numa das fachadas da moradia `em obra'.
14. Na data assinalada em 1), a 2á Ré tinha sua `responsabilidade emergente de acidente de trabalho' transferida para L..., SA, mediante a apólice n° 640069o619, tendo como referência uma retribuição anual de € 7700,00 (€ 550,00 X 14 prestações).
15. A 1á Ré entregou ao Autor, pelo menos, a quantia de € 3517,94, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária.
16. J... nasceu no dia 3 de Março de 1973.
Da nulidade.
Invoca o recorrente o disposto no art.° 615/1/c do Código de Processo Civil, que dispõe que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão (ou ocorra alguma obscuridade que torne a decisão ininteligível).
Há contradição entre a fundamentação e a decisão, que existe quando os fundamentos invocados conduziriam, logicamente, a decisão diversa, como é, há muito, pacífico (cfr. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.88, BMJ 380-444: 13.2.97, BMJ 464-525; por todos o acórdão do mais alto Tribunal de 7.5.2oo8: A decisão tem como antecedentes lógicos os fundamentos de direito (premissa maior) e os fundamentos de factos (premissa menor), não podendo o sentido da decisão achar-se em contradição ou oposição com os fundamentos, o que sucede sempre que na construção da sentença os fundamentos expressos pelo juiz, necessariamente, haveriam de conduzir a uma solução de sentido antagónico: a proposição final (conclusão) revela-se incompatível com as proposições logicamente antecedentes (fundamentos), o que traduz um vício de raciocínio).
Mas não podemos ir mais longe. Com efeito, a arguição de nulidades da sentença em processo laborai apresenta especificidades em relação aos erros de julgamento, sendo que outrossim está sujeita a um regime especial. Dispõe o artigo 6152 do CPC da reforma de 2013, aprovada pela Lei n.° 41/2013, de 26.6, sob a epigrafe causas da nulidade da sentença, na al. b) do n.° 1, que:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; (…)
O artigo 77° do Código de Processo do Trabalho, por seu lado, estatui:
- A arguição da nulidade da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso.
2 - Quando da sentença não caiba recurso ou não se pretenda recorrer, a arguição das nulidades da sentença é feita em requerimento dirigido ao juiz que a proferiu.
3 - A competência para decidir sobre a arguição pertence ao tribunal superior ao ou juiz conforme o caso, mas o juiz pode sempre suprir a nulidade antes da subida do recurso (cheios nossos).
Portanto a arguição de nulidades da sentença em processo laboral deve ser feita expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso, não podendo sequer o tribunal superior conhecer nulidade que não tenha sido arguida dessa sorte, mas apenas nas respectivas alegações
A R. recorrente nada suscitou expressa e separadamente no requerimento de
interposição de recurso, reservando a questão para as alegações de recurso. Assim sendo a arguição é extemporânea e não pode ser conhecida. É isto que se decide.
De fundo
Mas será que, ainda assim, faltam os requisitos para a responsabilização da R.? Sendo o evento dos autos súbito e imprevisto, exterior, limitado no tempo, ocorrido no tempo e local de trabalho e que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano do trabalhador, trata-se de um acidente de trabalho, tal como resulta do art.º 82 da LAT (Lei 98/2009, de 4.9).
Defende a R. recorrente que o A. violou as regras de segurança no trabalho e atuou com negligência grosseira, o que descarateriza o acidente.
Dispõe o art.° 14 da LAT, sob a epigrafe Descaracterização do acidente, que:
1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera -se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente dificil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Este é, diga-se, o regime que já vigorava antes de 2009 (o art.º 6º, n.º 2, al. a), da LAT aplicável (Lei 100/97) dispunha, no art.º 7°, n.º 1: não dá direito a reparação o acidente: (...) b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado (...). E o RLAT (Decreto-Lei n.2143/99, de 30.04, consagrava no art.-2 S°, n.° 2, que Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Da lei resulta, em suma, que a descaracterização do acidente com fundamento na negligência grosseira, como decidiu, seguindo orientação pacífica, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.5.2014, exige a verificação de dois requisitos: que o acidente provenha de negligência grosseira do sinistrado e que esta sua conduta seja a causa exclusiva do mesmo.
Quando é que existe negligência grosseira do sinistrado?
Quando há uma violação agravada do dever de cuidado, em que não incorreria uma pessoa vulgar, uma conduta de tal modo destemperada que qualquer um vê que só por sorte não acabará mal. Como diz o mesmo Supremo Tribunal de Justiça, na fundamentação do acórdão de 21.3.13, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência. (..) A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo. Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta.
Ora, a situação dos autos não configura negligência grosseira. Com efeito, provou-se que:
1, 3. No dia 21 de abril de 2015, às 16:35 horas, o Autor, no exercício das suas funções, encontrava-se numa obra de reparação de telhado localizada na Rua da Igreja, n° 14, Achada, Nordeste.
4. Após ter acedido ao telhado, com o uso de uma escada de mão em ferro com 3/3,5 metros de altura, procedia à colocação de `telha regional' por cima de `telha de fibrocimento'.
5, 6. Procurando descer para outro ponto do telhado, o A. escorregou, caiu, desli¬zou pelo telhado e foi projectado, o que levou a que caísse ao solo a partir de uma altura de 3 metros.
8. O Autor prestava as suas funções sem que a recorrente tivesse procedido à:
a) colocação de 'protecções de quedas' nos bordos;
b) disponibilização ao A. de uma plataforma móvel de acesso, de um mecanismo de arnês / `linha de vida' e de um capacete.
9, io, Il. Em momento anterior ao infortúnio a Ré, mediante determinação do seu gerente Humberto Simas, procedeu à colocação de um andaime que cobria uma das fachadas da moradia `em obra', o qual foi, entretanto, retirado, sendo que o Autor actuava sem que tal andaime voltasse a ser colocado.
12. E assim actuava contra as instruções que a Ré lhe havia dado.
13. Após a ocorrência do infortúnio a Ré montou um andaime numa das fachadas da moradia `em obra'.
Estes factos não apontam nem menos ainda demonstram que seria de esperar com grande probabilidade a verificação do acidente naquelas circunstâncias, sendo o A. um profissional, atuando até a uma altura relativamente próxima do solo. Quer dizer,
não há o comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência,
ou, parafraseando ainda o supra citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uma omissão fortemente indesculpável, naquelas circunstâncias em que aquele trabalhador vai ao telhado sem que o andaime voltasse a estar colocado, ao arrepio das instruções da R. empregadora.
E de resto não bastaria a (inexistente) negligência grosseira: seria necessário que o acidente decorresse exclusivamente daquela omissão da montagem do andaime em violação das instruções da empregadora. Evidentemente que isto não se verifica, não havendo modo de dizer que se o andaime lá estivesse ele não teria escorregado, caído, deslizado pelo telhado e sido projectado, ou, vá lá, a sê-lo, que teria tombado sobre o andaime, ou, pelo menos, que se teria podido agarrar a este, de algum modo minimizando a queda. Não há como afirmar isto.
O que afasta de todo a causa de descaraterização prevista no art.° 14/1/b da LAT.
Será que, ainda assim, aquela desobediência do A. às instruções da R. de montar o andaime previamente permite concluir que o infortúnio provem de omissão sua que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei?
Diz a sentença que a empregadora não disponibilizou uma plataforma móvel de acesso, não disponibilizou um mecanismo de arnês/linha de vida, não disponibilizou qualquer `protecção' de quedas nos bordos, estando disponível apenas um andaime que se limitava a cobrir uma das fachadas deste edifício (sem que se apure se o mesmo tinha sequer guarda-corpos). É verdade que este andaime também não estava colocado naquele momento (havia sido retirado em momento anterior, em circunstâncias não concretamente apuradas), e que o Autor assim agia contrariando as instruções da sua empregadora. Mas se o único equipamento de segurança era este andaime com cobertura de uma simples fachada (...) o acidente nem sequer resultou, em exclusivo, dessa acção imprevidente do trabalhador. Ou mesmo de uma violação das regras de segurança, sem causa justificativa, por parte deste último.
E nota o recorrido que nada nos permite habilitar com elevada probabilidade que a queda não se daria, ainda que ali estivesse o andaime, este com efeito, não existe para impedir a queda dos trabalhadores que laboram em altura.
Este é, efetivamente, o ponto chave. É que só afasta a responsabilidade do empregador, nos termos da al. a) do n.2 i do art.° 14 da LAT a desobediência, ativa ou omissiva, do sinistrado às condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei da qual (desobediência) provenha o acidente. Ou seja: elimina-se, num juízo de prognose póstuma, a conduta do sinistrado, e o evento não teria ocorrido, porque essas condições de segurança eram aptas, adequadas e suficientes para prevenir o acidente. Se o empregador tivesse mandado montar resguardos laterais ao telhado que impedem a queda, ou, melhor ainda, guarda corpos capazes de o suster, então é indubitável que a queda resultaria da conduta do trabalhador. E é isso que a jurisprudência tem afirmado, citando-se por todos o acórdão desta Relação de Lisboa de 19-12-2012, subscrito por um dos juízes deste coletivo (que se destaca porquanto embora a recorrente o cite, ele não a apoia): V. Tendo a empregadora definido os procedimentos de segurança a serem utilizados na realização dos trabalhos, não lhe era exigível que contasse também com a eventualidade de os mesmos não serem observados por qualquer um dos trabalhadores, quer voluntária quer involuntariamente. O que aqui releva é a ponderação sobre a adequação dos meios de segurança que foram definidos para terem obstado ao acidente, desde que tivessem sido cumpridos pelos trabalhadores. VI. Por isso mesmo, não há um nexo causal entre a queda do sinistrado e o facto de não estar instalado um meio de protecção colectivo contra quedas, ou seja, a uma rede. O empregador disponibilizou um outro meio de segurança ao trabalhador, o arnês de segurança para ser preso à linha de vida instalada, que, embora individual, era igualmente adequado e suficiente para evitar o resultado que se verificou.
Convergindo, na doutrina Carlos Alegre, in Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª. Edição, Almedina, pág. 61, a propósito das circunstâncias exigíveis para que haja direito à reparação escreve: a) sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, exigindo-se aqui, a intencionalidade ou dolo, na prática ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves (inadvertência, imperícia, distracção) (no sentido da necessidade da intencionalidade na violação das regras de segurança, ver o Acórdão do STJ de 23/06/2004 (CJStj 2004, tomo II, pág. 285) e Acórdão do TRC de 26/04/2006 (CJ 2006, tomo II, pág. 56). Esta regra implica que o acto ou omissão negligente violador de uma regra de segurança, do qual resulte um acidente, não deve excluir o direito à reparação a cargo do empregador. Certo é que deve tratar-se do cometimento de um acto proibido ou a abstenção de um acto ordenado. Quanto à omissão, é preciso que seja relativa a algo que dependa exclusivamente ou esteja nas atribuições do seu autor. É
ainda necessário demonstrar a existência da relação de causalidade entre o acto e a omissão violadora das condições de segurança e o acidente: é o que resulta da expressão provier de. (...) d) O acidente deve ser consequência necessária do acto ou omissão do sinistrado. Este requisito determina a necessidade de verificação do nexo de causalidade entre a violação da regra de segurança e o evento que causou a morte ou o dano na pessoa do sinistrado.
Não é isso, manifestamente, o que aqui ocorre: a montagem prévia de um andaime, desacompanhada do emprego de outros meios de segurança, não garante que o acidente dos autos, que aliás era perfeitamente evitável, não teria ocorrido. E só isso levaria a excluir a responsabilidade da empregadora.
Destarte, o recurso improcede.
DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal julga o recurso improcedente e confirma a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
Lisboa, 8 de fevereiro de 2017
Celina Nóbrega
Paula Santos
1. A arguição de nulidades da sentença proferida em processo especial de acidente de trabalho está sujeita aos requisitos do art.° 77 do Código de Processo do Trabalho.
II. Para descaraterizar o acidente de trabalho, nos termos do art.° 14, n.° 1, a. b), da LAT, é preciso que o sinistrado atue com negligência grosseira, a qual corresponde a uma violação do dever de cuidado particularmente grave, qualificada, temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares e que torna fortemente previsível a verificação do dano ou do perigo; e que essa atuação dê azo infortúnio
III. Para descaraterizar o acidente de trabalho, nos termos do art.2 14, n.° 1, a. a), da LAT, importa que haja inobservância, ativa ou omissiva, do sinistrado das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, da qual provenha o acidente. Ou seja: elimina-se, num juízo de prognose póstuma, a conduta do sinistrado, e o evento não teria ocorrido, porque essas condições de segurança eram aptas, adequadas e suficientes para prevenir o acidente.
(Sumário do Relator, art.º 713/7, Código de Processo Civil)