1 - A competência material dos tribunais afere-se pela causa de pedir e pelo pedido concretamente formulados.
2 - Invocando o autor o estabelecimento de um complemento remuneratório durante o tempo em que trabalhava ao abrigo de contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado com um instituto público, é irrelevante para a questão da competência material, que tal contrato se tenha convolado em contrato de trabalho em funções públicas.
Proc. 6560/16.7T8LSB 4ª Secção
Desembargadores: Manuela Fialho - Sérgio Manuel de Almeida - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
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Procº 6560/16.7T8LSB Comarca de Lisboa
Instância Central - Secção do Trabalho de Lisboa
Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:
I... , IP interpôs recurso da decisão proferida no saneador que julgou improcedente a exceção de incompetência do tribunal em razão da matéria.
Pede a respetiva revogação, determinando-se a incompetência do tribunal e anulando-se todos os atos posteriormente praticados.
Alega, para o efeito e em síntese, que o contrato individual de trabalho celebrado com o A. se convolou ope legis em contrato de trabalho em funções públicas, em 1/01/2009, não assumindo relevância que parte da relação de trabalho tenha decorrido sob o âmbito de contrato individual de trabalho, antes relevando a data de entrada da petição em juízo. Nesta data, o Art° 42/3 do ETAF é impeditivo da atribuição de competência à jurisdição comum. O Apelante integra a administração indireta do Estado, estando submetido ao regime jurídico aplicável aos trabalhadores exercendo funções públicas.
M... contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão por a mesma não padecer de erro na aplicação do direito e ir ao encontro do entendimento jurisprudencial mais recente sobre o caso.
O MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer do qual emana que a decisão se deve considerar isenta de reparo.
Ao pronunciar-se sobre a exceção de incompetência em razão da matéria invocada pelo R., consignou-se na decisão recorrida:
A autora alega a existência de uma relação jurídica de trabalho subordinado com o réu desde 06.03.1991 e pede que seja reconhecida a natureza retributiva do montante anual de 3.012,00 € que lhe foi pago em 2002 como prémio de produtividade e a condenação do réu a pagar-lhe tal montante anual desde o ano de 2003 até ao ano de 2015, em pagamentos mensais correspondentes a 1/12 do seu valor, acrescida das prestações que se vençam até à prolação da sentença.
Na resposta à exceção, a autora defende que o seu contrato de trabalho não se converteu em contrato de trabalho para o exercício de funções públicas a partir de 1.1.2009 por efeito do disposto no art.° 88° da Lei n° 12-A/2008, de 27.02, e do art.° 17° da Lei n ° 59/2008, de 11.09, continuando a ser-lhe aplicável o regime jurídico do contrato individual de trabalho.
Porém, tal questão é irrelevante para aferir da competência material do tribunal, pois, a jurisprudência maioritária dos tribunais superiores portugueses tem considerado que Não obstante a convolação, em 01.01.2009, do contrato individual de trabalho em contrato de trabalho em funções públicas (por virtude da entrada em vigor das Leis 12A/2008, de 27.02 e 59/2008, de 11.09), as (atualmente denominadas) Secções do Trabalho são materialmente competentes para a apreciação dos pedidos referentes ao período que decorreu até essa convolação e, bem assim, para os demais posteriores a esse período verificada que seja a conexão prevista no art. 126°, al. n), da Lei 62/2013, de 26,08 (similar à al. o) da Lei 3/99, de 31.05).
Ora, aderindo-se a esta jurisprudência em obediência ao disposto no art.° 8°, n ° 3 do Código Civil, tendo em conta os factos alegados pela autora, é de concluir que este tribunal é competente para apreciar e julgar a totalidade dos pedidos da autora, de acordo com o disposto no art.° 126°, n° 1, al. b) e n) da Lei n° 62/2013, de 26.08.
Sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, as conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.° 608º/2 e 635º/4 do CPC. Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, existe uma única questão a decidir, extraída das conclusões: a secção do trabalho é materialmente incompetente para o litígio?
Debrucemo-nos, então, sobre a questão elencada - a incompetência material das secções do trabalho para causas como a presente.
O cerne da argumentação expendida pelo Recrte. prende-se com a circunstância de o contrato de trabalho de que é titular o A. se ter convolado, ope legis, em contrato de trabalho em funções públicas em 1/01/2009, devendo relevar para efeitos de competência do tribunal o facto de, à data de entrada em vigor da ação em juízo, o vínculo existente já ser o regulado pela Lei 12A/2008.
O Art° 64° do CPC dispõe que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Cabe às leis de organização judiciária determinar as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (Artº 65º do CPC).
No regime atual os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca, que se desdobram em instâncias centrais e em instâncias locais, sendo que naquelas podem ser criadas secções de competência especializada, nomeadamente, em matéria de trabalho (Artº 79º e 81º da L 68/2013 de 26/08 (LOSJ).
No caso, tendo sido criada a 1ª secção do trabalho da instância central de Lisboa pergunta-se se esta terá competência para dirimir o litígio que nos ocupa.
Segundo o Art° 126°/1-b) da LOSJ compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado.
De acordo com o disposto no Art° 38º/1 da L68/2013 DE 26/08 - LOSJ - a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei. E são irrelevantes também as modificações de direito, exceto em caso de supressão do órgão a que a causa estava afeta ou atribuição de novas competências (n° 2).
Contudo, não é de regras de fixação de competência que temos que nos socorrer para dirimir a questão em apreciação. O que importa aquilatar é como é que se afere a competência de um tribunal.
Isto porque, para além das normas acima citadas da LOSJ, também o Art° 83º/1 da Lei 12A/2008 dispunha que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os competentes para apreciar os litígios emergentes das relações jurídicas de emprego público. Situação correspondente vamos encontrar na atual lei geral do trabalho em funções públicas, aprovada pela Lei 35/2014 de 20/06 que, no seu a Art° 12º estipula que são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes de vínculo de emprego público. E o Art° 4º/3-d) do ETAF, na redação que lhe foi dada pela Lei 59/2008 de 11/09, dispôs que fica igualmente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas.
Portanto, sendo o contrato de trabalho invocado um contrato de trabalho em funções públicas o regime acima citado imporá o conhecimento das questões que com ele se prendam pelos tribunais da jurisdição administrativa.
Assim sendo, e arguindo a Recrte. a migração do contrato da Recrdª para o regime do contrato de trabalho em funções públicas, vejamos, então, se as secções de trabalho da jurisdição comum são ou não competentes.
Em causa na ação está, como se alega na petição inicial uma relação jurídica de trabalho subordinado entre o autor e o réu desde 06.03.1991, relação essa que teve como base a celebração de um contrato de trabalho a termo certo. Em causa está ainda um sistema de complementos remuneratórios instituído pelo R. em 1991 ao qual o mesmo terá posto termo em Janeiro 2003. Por outro lado, e tendo ainda em atenção a petição inicial, peticiona-se o reconhecimento da natureza retributiva do montante anual de 3.012,00€ que lhe foi pago em 2002 como prémio de produtividade e a condenação do réu a pagar-lhe tal montante anual desde o ano de 2003 até ao ano de 2015.
Em presença da estruturação da ação nestes moldes, veio o R. alegar a exceção de incompetência em razão da matéria assente na circunstância de ele próprio ser um organismo que integra a administração indireta do Estado e, por outro, na de a relação jurídica reportada pelo A. ser, desse 1/01/2009, regida pelo Código do Trabalho em Funções Públicas dada a convolação ope legis do contrato inicialmente firmado, o que aconteceu por força dos Arte 88º e ss. e 109º da Lei 12-A/2008 de 27/02.
O entendimento segundo o qual a competência de um tribunal se afere pela relação jurídica tal qual a mesma vem configurada pelo autor, é uma constante jurisprudencial. Nesta lógica, a apreciação da competência decide-se em presença do pedido e da causa de pedir, sendo irrelevantes as qualificações jurídicas alegadas pelas partes ou mesmo o juízo de mérito sobre a pretensão formulada.
Ora, em passo algum da petição inicial vemos que o A. assuma a invocada convolação. O que ali se alega é a admissão ao abrigo de contrato de trabalho a termo certo, convolado em contrato de trabalho sem termo ao qual é aplicável a lei geral do trabalho.
Por outro lado, ali se alega também o estabelecimento de um sistema de complementos salariais desde Junho de 1991, altura em que o vínculo que unia as partes era, ainda, um contrato de trabalho a termo certo.
Donde, em presença da petição inicial, nada inculca no sentido de a relação jurídica existente ser de natureza administrativa, aqui também não cabendo decidir acerca do vínculo existente.
Contudo, em presença do regime introduzido pela Lei 12-A/ 2008 de 27/02, e, no que ao caso importa, muito concretamente em presença do disposto no Art° 88º, segundo o qual certas situações de trabalhadores contratados por tempo indeterminado transitam para o novo regime legal, poderá equacionar-se a incompetência?
Antes de mais, cumpre lembrar que o enquadramento assim pretendido pela Recrte. já é matéria de mérito e não de forma.
Nessa medida, não cabe no âmbito da decisão sobre competência.
Mas, mesmo admitindo que a relação se convolou a partir de 1/09/2009 para uma relação de trabalho em funções públicas, as secções do trabalho são diretamente competentes para apreciar o pedido na parte relativa ao período que antecedeu a entrada em vigor do novo regime, situação relativamente á qual não havia dúvidas sobre a competência da jurisdição laborai comum.
Esta razão permitiu já à Relação do Porto concluir pela competência dos tribunais de trabalho por aplicação do critério de extensão da competência que resulta da alínea o) do artigo 85.º da LOFTJ (Ac. de 28/04/2014). Norma que encontra correspondência no Art° 126º/1-n) da Lei 62/2013.
E o STJ, no Ac. de 16/06/2015 veio sufragar este entendimento, ali se consignando que é na petição inicial que se configura o vínculo estabelecido entre as partes, pelo que ainda que por força do Art° 17º/2 da Lei 59/2008 de 11/09 (que aprova o regime do contrato de trabalho em funções públicas) se conclua pela transição dos trabalhadores das modalidades de nomeação e de contrato de trabalho para a modalidade de contrato de trabalho em funções públicas, pretendendo o autor exercitar direitos que, em grande parte, se reportam a período anterior a 1/01/2009, período em que, segundo alega, vigorava um contrato de trabalho, não pode deixar de se estender a competência do tribunal à totalidade das questões que estão em causa, no termos do Artº 85º/o) da LOFTJ, dada a conexão de dependência que se verifica.
Linha de raciocínio também seguida pelo STJ no Ac. de 11/02/2016, segundo o qual incumbe aos Tribunais Judiciais - Secções do Trabalho das instâncias centrais dos Tribunais de Comarca - a competência para conhecer de uma ação movida contra um Município em que um trabalhador pede que se declare a existência de um contrato de trabalho com o Réu, com início em 2006 e termo em julho de 2014 e que se condene este em várias pretensões derivadas daquele contrato e da respetiva cessação e fundamentadas no regime jurídico do contrato individual de trabalho.
Também neste sentido decidiu esta Relação, em 23/09/2015, num acórdão relatado pela ora segunda adjunta. Ali se consignou que, por força do disposto nos artigos 17º nº 2 e 23º da Lei 59/2008, a transição dos trabalhadores do IFAP das modalidades de nomeação e de contrato de trabalho para a modalidade de trabalho em funções públicas ocorreu em 1.1.2009. Formulando os Autores pedidos que fundamentam na existência de contrato de trabalho e relativos a períodos anteriores e posteriores a 1.1.2009, sendo o Tribunal do Trabalho competente materialmente para apreciação dos anteriores àquela data, aos posteriores deverá estender-se a competência do mesmo Tribunal, nos termos do artigo 85º al.o) do LOFTJ.
No caso concreto, o pedido, como já deixámos antever, é de reconhecimento da natureza de uma dada prestação como retribuição, condenação no pagamento do montante em 1/12, integração do valor na retribuição base devendo ser pagos enquanto vigorar o contrato de trabalho e condenação no pagamento de um valor correspondente à retribuição vencida desde 2003 até 2015.
Em presença deste pedido, assente na causa de pedir já supra evidenciada, dúvidas não subsistem, pois, que, a petição, tal como é configurada pelo autor, não permite abdicar da competência da jurisdição comum, secções do trabalho, para o respetivo conhecimento. É que a decisão a proferir emana de factualidade que pressupõe a existência de um contrato de trabalho.
Termos em que improcede a apelação.
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante. Notifique.
Lisboa, 08-02-2017
Manuela Bento Fialho
Sérgio Almeida
Celina Nóbrega
Elabora-se o seguinte sumário:
1 - A competência material dos tribunais afere-se pela causa de pedir e pelo pedido concretamente formulados.
2 - Invocando o autor o estabelecimento de um complemento remuneratório durante o tempo em que trabalhava ao abrigo de contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado com um instituto público, é irrelevante para a questão da competência material, que tal contrato se tenha convolado em contrato de trabalho em funções públicas.