ACSTJ de 22-06-2005
Contrato de mútuo Contrato de crédito ao consumo Natureza real Contrato de compra e venda União de contratos Eficácia Nulidade do contrato Contagem dos prazos
I - O facto de o contrato de mútuo ser um contrato real quoad constitutionem, de que, por isso, não se pode falar quando não ocorra entrega efectiva da importância mutuada não impede a estipulação de que a prestação possa ser feita a terceiro de harmonia com o previsto no art.º 770, al. a), do CC. II - Trata-se de estipulação usual nos contratos de crédito ao consumo, que integra um mandato para pagamento ou, eventualmente, uma delegação de pagamento (delegatio solvendi) conferida pelo consumidor ao financiador. III - Assim, a circunstância de a entrega do dinheiro não ser feita directamente ao consumidor, mas sim ao vendedor do bem de que o credor financiou a aquisição, não afasta a natureza real do contrato de crédito ao consumo na modalidade de mútuo, tendo-se esse contrato por cumprido com a entrega da importância mutuada ao fornecedor do bem adquirido pelo devedor. IV - Neste tipo de contratos de crédito ao consumo, mesmo quando o dinheiro não lhe for directamente entregue, o credor empresta dinheiro para o consumidor adquirir bens ou serviços, estabelecendo-se, no âmbito duma operação económica unitária, uma relação ab initio tripartida em que a compra e venda, contrato de consumo, é a causa do contrato de crédito e este instrumental em relação àquela, podendo, até, haver colaboração entre vendedor e financiador. V - Há, no entanto, dois acordos diversos, dois negócios jurídicos distintos, juridicamente autónomos ou independentes, formal e substancialmente separados, sujeitos, cada um deles, ao regime jurídico correspondente, pelo que, nada a tal obstando a sua ligação, produzem efeitos jurídicos próprios, relevando o financiamento de modo autónomo. VI - A ligação genética dos contratos de crédito e de consumo - o mútuo está incindivelmente ligado à compra e venda - explica o regime estabelecido no art.º 12 da LCC (Lei do Crédito ao Consumo - DL n.º 359/91, de 21-09), em que há reconhecimento normativo duma específica união (ou coligação) de contratos. VII - Para além da forma legal imposta - redução a escrito assinado por ambos os contraentes -, o art.º 6, n.º 1, da LCC exige a entrega dum exemplar do contrato ao consumidor no momento da assinatura dessa convenção, acarretando a falta dessa entrega, de harmonia com o disposto no art.º 7, n.º 1, do mesmo diploma legal, a nulidade - mista, atípica - do contrato, só invocável por quem efectivamente visa beneficiar, como expressamente determina a 2.ª parte do n.º 4 do art.º 7 da LCC. VIII - Essa exigência está relacionada com o termo inicial do período de reflexão também imperativamente estabelecido, sempre conforme art.º 18, n.º 1, da LCC, no n.º 1 do art.º 8 dessa lei, que determina que a revogação da declaração negocial - direito potestativo extintivo de arrependimento ali conferido ao consumidor - deve ser declarada no prazo de 7 dias a contar da assinatura do contrato. IX - O momento determinante para o início da contagem do prazo aludido é referido à assinatura do contrato, e não, como se estaria em crer melhor, à entrega dum exemplar deste, devidamente assinado pelas partes, altura a partir da qual o consumidor passa a dispor efectivamente de meio indispensável para levar a efeito a reflexão e ponderação que a lei quer garantir. X - Dado que a invalidade importa a destruição dos efeitos negociais e que o normal é que a liquidação de um contrato tenha lugar entre quem nele outorgou, quando invoque a nulidade de contrato de crédito ao consumo estabelecida em seu benefício, será, desde logo, quem nele foi parte que terá de restituir a prestação efectuada, mesmo se, como então acordado, a terceiro em relação a esse contrato, pela contraparte, em cumprimento, em lugar do a tal adstrito, da obrigação resultante do contrato de compra e venda.
Revista n.º 1618/05 - 7.ª Secção Oliveira Barros (Relator) * Salvador da Costa Ferreira de Sousa
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