ACSTJ de 14-02-2007
Crime continuado Pressupostos Violação Agravante Medida concreta da pena Coacção grave Cúmulo jurídico Pena única
I - São pressupostos do crime continuado:- a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;- homogeneidade da forma de execução;- lesão do mesmo bem jurídico;- unidade de dolo;- persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa. II - Segundo Eduardo Correia (Direito Criminal, II, pág. 210), as seguintes situações, por consubstanciadoras de uma considerável diminuição da culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação criminosa:- ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, um certo acordo entre os sujeitos;- voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;- perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa;- a circunstância de o agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar haver possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade. III - Assim, tendo em vista o preceituado no n.º 2 do art. 30.º do CP, poder-se-á concluir que o crime continuado se verifica quando, com unidade de dolo e em momentos distintos, mediante várias acções ou omissões, cada uma das quais constitutiva de comportamento delituoso, se lesa o mesmo bem jurídico pertencente a uma pessoa, ou a várias sempre que o bem jurídico não seja de natureza eminentemente pessoal, face à existência de uma situação exterior que, incentivando, propiciando ou facilitando o comportamento delituoso, diminui de forma sensível a culpa do agente. IV - Quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve encontrar-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto, pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito. A situação exterior deve ser tal que objectivamente facilite a execução do facto criminoso ou prepare as coisas para a repetição do facto. V - Estando em causa a prática pelo arguido, em quatro ocasiões, de crimes de violação agravada, e resultando dos autos que:- a menor não facilitou, por qualquer forma, a repetição daqueles concretos actos, aos quais sempre ofereceu resistência, actos que sempre foram cometidos em locais distintos, a primeira vez no quarto da menor, a segunda vez numa casa geminada à casa de residência da menor e a terceira num barracão anexo, sendo certo que sempre foi o arguido a procurar a menor;- após a prática de cada um daqueles três actos, tal como após a prática do quarto e último acto, o arguido disse à menor que a mataria se contasse a alguém o sucedido, com o que a impediu, por mais de dois anos, de revelar aqueles eventos, o que mostra ter o próprio arguido sentido o mesmo grau de culpa e de receio em todos os actos cometidos;bem andaram as instâncias ao qualificarem os factos como preenchentes de quatro crimes agravados de violação p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, ambos do CP. VI - Dentro da moldura penal abstracta correspondente ao referido crime, ou seja, a de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, e tendo em consideração que:- a gravidade do crime de violação é manifesta, sendo acentuado o grau de ilicitude dos factos, que o arguido repetiu por quatro vezes, sabendo que a menor ofendida, de quem é tio e cuja casa frequentava, ainda não tinha atingido os 12 anos de idade (note-se que, aquando do primeiro facto, o pai da menor se encontrava hospitalizado, o que o arguido sabia);- a culpa é intensa, e situa-se em patamar elevado, visto que o arguido sempre se comportou com dolo directo, para satisfação da sua lascívia e desejo sexual;- é, também, muito relevante o dano ou efeito externo provocado, que se traduziu no medo, angústia e sofrimento causados, com reflexos no desenvolvimento emocional, afectivo e da personalidade da menor, ocasionando perda da auto-estima e alterações comportamentais de tristeza, revolta e profundo medo, com influência negativa a nível familiar, escolar, social e sexual, a implicar a sua sujeição a acompanhamento psicológico;- as necessidades de prevenção geral são evidentes e prementes quando é certo frequentemente chegarem ao conhecimento da comunidade novos casos e situações de criminalidade sexual;- em favor do arguido há que considerar a sua primariedade, bem como o seu bom comportamento enquanto cumpriu serviço militar, tendo-lhe sido concedidos diversos louvores e uma condecoração;- o arguido é pessoa trabalhadora, com baixo nível de instrução, tem dois filhos menores, para alimentos dos quais contribui mensalmente com a importância de € 150;nada há a censurar às penas de 6 anos fixadas pelas instâncias para cada um dos 4 crimes. VII - E, no que respeita à pena conjunta, a fixar entre um mínimo de 6 anos e um máximo de 25 anos de prisão (estando em causa, para além dos referidos 4 crimes de violação agravada, 4 crimes de coacção grave, p. e p. pelos arts. 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), todos do CP), sendo certo que, dada a primariedade do arguido e tendo em atenção os factos perpetrados e o respectivo contexto, se poderá concluir que o ilícito global não permite considerar a existência de tendência criminosa, bem como que os crimes de coacção grave foram cometidos no propósito de ocultação dos crimes de violação, pelo que se deverá concluir que todos os factos se encontram estreitamente conexionados, é de reduzir a pena aplicada (de 12) para 9 anos de prisão.
Proc. n.º 4100/06 - 3.ª Secção
Oliveira Mendes (relator)
Henriques Gaspar
Soreto de Barros
Pires Salpico
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