Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 21-03-2007
 Homicídio qualificado Culpa Especial censurabilidade Especial perversidade Meio insidioso Frieza de ânimo Medida concreta da pena
I - A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa.
II - A culpa, segundo Roxin (Derecho Penal, Parte Geral, tomo I, pág. 792), consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto de este ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica, quando podia e devia ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor, sendo, por natureza, graduável, dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo, igualmente, um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica, superando as proibições impostas.
III - O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente.
IV - Como refere Figueiredo Dias, a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na atitude do agente, que revela formas de realização do acto especialmente desvaliosas, e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o art. 132.º do CP um catálogo dos exemplos-padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação.
V - É aceite jurisprudencialmente que o meio é insidioso quando corresponde a um processo enganador, dissimulado, elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida.
VI - Nas diversas posições adoptadas sobre o tema pode referir-se a existência de um denominador comum consubstanciado na dialéctica vítima-homicida em que a diminuição, ou desaparecimento, da capacidade de defesa daquela radica na actuação deste, que visa colocar a vítima nessa posição, ou através do meio empregue, ou através da forma de concretizar o desígnio criminoso (v.g. emboscada, traição). Essa dialéctica tem de revelar que à indefesa de um corresponde a utilização do meio insidioso pelo outro.
VII - No caso dos autos, o arguido localizou a vítima e a sua companheira no local onde os factos se passaram [sentados a uma mesa do salão de refeições de um restaurante] e imediatamente os abordou. É evidente, por isso, que a actuação do arguido é inesperada para a vítima e encontra esta num momento de descontracção, retirando-lhe capacidade de reacção. Porém, tal diminuição da capacidade de defesa só terá significado se tiver sido deliberadamente procurada pelo arguido e não um fruto de factores meramente aleatórios.
VIII - Tendo ainda o acórdão dado como provado que «para tal, muniu-se antecipadamente de uma arma de fogo, escolheu o momento, lugar e modo de levar a cabo os seus intentos, apanhando de surpresa a vítima, para logo de seguida, após lhe dirigir curtas palavras, disparar contra ela à distância mencionada [o arguido de imediato apontou a referida arma de fogo à região torácica e, a menos de dois metros de distância, disparou um tiro sobre o mesmo, atingindo-o naquela zona corporal], tirando-lhe a possibilidade de ocultação ou defesa e sem qualquer provocação por parte desta», é incontornável que agiu com especial censurabilidade, através de meio insidioso.
IX - A frieza de ânimo, a que se refere a al. i) do n.° 2 do art. 132.º do CP, traduz a formação da vontade de praticar o facto de modo frio, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão ou sangue-frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução;X - Por alguma forma o exemplo-padrão tem subjacente uma ideia de tempo, isto é, de concretização do período de formação de vontade ou de maturação da decisão. Na verdade, vai uma incontornável diferença entre aquele que num lapso de tempo curto formula e concretiza a intenção de matar e o que reflecte, pondera e, eventualmente, perfecciona o desígnio formulado.
XI - Tal ligação entre o tempo de formação da vontade e a frieza de ânimo que o mesmo evidencia permite a existência de uma zona de indefinição que é tanto mais acentuada quanto é certo que estamos perante fenómenos psíquicos cuja percepção assenta, também, em dados subjectivos (mais concretamente uma avaliação bio-psicológica).
XII - No caso vertente é certo que o arguido quis tirar a vida da vítima, munindo-se para o efeito de uma arma, e tal desígnio ocorreu no Porto; depois percorreu a distância que separa a cidade do Porto de …, que é do conhecimento comum ser de várias dezenas de quilómetros, e esperou o momento adequado para concretizar o seu intuito. Pode, por isso, afirmar-se a persistência da vontade de concretizar o homicídio projectado durante um espaço de tempo apreciável (pelo menos uma hora de antecedência, como afirma a decisão recorrida) sem que este tenha induzido qualquer alteração do propósito formulado, ou seja, sem produzir qualquer inflexão. Também nesta vertente se define, e densifica, a especial censurabilidade que tipifica o crime de homicídio qualificado.
XIII - O arguido procurou a morte da vítima com uma intensidade que denota a existência de um dolo directo e intenso. Todavia, não pode deixar de se equacionar o contexto em que se produziu o crime [o arguido considerou a sua conduta como uma postura de desafronto da sua honra perante o relacionamento amoroso da sua companheira com a vítima], e ainda que o comportamento anterior do arguido denota a sua inserção na comunidade como cidadão válido e cumpridor [o arguido foi “comando” e “ranger”, tendo frequentado os respectivos cursos, sabendo utilizar uma arma; é um homem qualificado na arte da guerra e do combate pela sobrevivência, e foi sempre assim considerado pelos seus superiores; esteve na guerra em Angola e Moçambique durante 4 anos e esteve exposto a situações de combate; o arguido não tem antecedentes criminais; esteve no teatro de guerra, tendo os seus serviços sido louvados; todos quantos conviveram com ele têm dele uma imagem positiva de seriedade, considerando-o um homem honrado; é pessoa sem meios de fortuna, sempre tendo vivido do seu trabalho, como sucedia no momento em que ocorreram os factos relatados], mostrando-se, pois, adequado condená-lo, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132.º, n.ºs 1 e 2, als. h) e i), do CP, na pena de 14 anos de prisão.
Proc. n.º 153/07 - 3.ª Secção Santos Cabral (relator) Oliveira Mendes Henriques Gaspar (tem voto de vencido) Maia Costa