ACSTJ de 21-03-2007
Abuso de confiança fiscal Crime omissivo Consumação Condição de punibilidade Aplicação da lei penal no tempo Princípio da aplicação do regime concretamente mais favorável
I - Na descrição do art. 105.º, n.º 1, do RGIT, a construção do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal define uma conduta que consiste na simples não entrega à administração fiscal de uma prestação tributária que o agente deduziu nos termos da lei como substituto tributário, e que estava, também nos termos da lei, obrigado a entregar em determinado prazo – o prazo de entrega que a lei fixa para cada tipo e espécie de prestação deduzida. II - A conduta prevista no tipo traduz-se, pois, em uma omissão pura, na não entrega nos termos e nos prazos estabelecidos, isto é, esgota-se no não cumprimento de um dever, previsto na lei, de entrega das prestações deduzidas. Sendo uma infracção omissiva pura, consuma-se com a não entrega, dolosa, nos termos e no prazo da entrega fixado para cada prestação – art. 5.°, n.º 2, do RGIT. III - Os factos descritos no art. 105.°, n.ºs 1 a 3, do mesmo diploma, só são, porém, puníveis – dispõe o n.º 4 desse preceito – se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (al. a)), ou «se a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a comunicação para o efeito» (al. b)). IV - Esta condição da al. b) foi prevista ex novo na redacção do n.º 4 do artigo 105.° do RGIT introduzida pela Lei de Orçamento para 2007. V - As condições de que depende, no caso, a punibilidade da conduta («os factos […] só são puníveis») constituem, pela natureza com que se apresentam na estrutura da norma, e pela função e finalidades a que, aí, estão determinadas, elementos que não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa, mas que se ligam apenas, por circunstâncias adjacentes à natureza relevantemente funcionalista da infracção, à finalidade da pena, diminuindo a intensidade ou eliminando as necessidades da punição. VI - «São sobretudo razões de política criminal que sustentam [o artigo 105.º, n.º 4 do RGIT]. Desde logo e em primeiro lugar, o legislador terá atendido ao facto de a entrega, ainda que fora de prazo, pôr fim ao prejuízo patrimonial do Estado provocado pelo agente; por outro lado, aquela norma constitui um incentivo ao pagamento das prestações em falta e permite ainda evitar custos que o procedimento criminal acarreta para a administração fiscal; por último, esta alteração legislativa foi sensível à necessidade de um certo lapso temporal que permita à administração fiscal o tratamento das informações fiscais relevantes, designadamente as que dizem respeito ao cumprimento dos deveres fiscais» (cf. Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, 2006, pág. 136). VII - Os elementos que não fazem parte do tipo, da ilicitude ou da culpa, isto é, que não integram nem contendem com a dignidade penal do facto, mas apenas com a admissibilidade do procedimento ou com a (des)necessidade circunstancial da punição, constituem ou pressupostos processuais ou condições objectivas de punibilidade. VIII - Com efeito, em determinados casos, para que possa ter lugar o efeito sancionador, atende-se a outros elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo. Por vezes, essas inserções ocasionais da lei entre a prática do facto ilícito e a sanção concreta, inscrevem-se no direito material, hipótese em que se fala de condições objectivas ou externas de punibilidade; noutros casos, constituem parte do direito processual e denominam-se pressupostos processuais. IX - As condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção (cf. Acs. do STJ de 7-02-2007, Proc. n.º 4086/06, e de 21-02-2007, Proc. n.º 4097/05). São elementos situados fora do tipo, cuja presença constitui um pressuposto da actuação das consequências penais de uma acção típica e antijurídica; sendo componentes globais da situação sobre que incide a acção, não são, porém, propriamente parte da acção (cf. Maurach – Zipf, Derecho Penal, Parte General, tomo I, pág. 372). As condições de punibilidade tomam, no rigor das coisas, um sentido de funcionalismo normativo, como elemento de ligação entre a dogmática do facto e a política criminal (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2004, pág. 622). X - Não fazendo parte da acção, integram, todavia, o complexo facto-condições de que depende a aplicação de uma sanção penal (a punição), mas estão fora do perímetro de delimitação da infracção penal enquanto categoria autónoma de tipo de ilícito e de culpa. XI - Integrando o complexo facto-condições, assumem, ainda, dimensão material, pela influência ou consequência que têm na construção e integração dos pressupostos da punição, mas não contendem com a natureza do crime, nem com implicações, sequências e consequências no plano das relações e criminalização-descriminalização quando se sucedam diversas condições de punibilidade. XII - A projecção material das condições de punibilidade no complexo acção-qualificação penal-aplicação da pena (necessidade de pena) determina que a categoria seja ainda inerente ao regime de sancionamento e, por aí, aos princípios aplicáveis quanto aos efeitos da sequência temporal de normas de conteúdo material penal. XIII - A regra é a do art. 2.°, n.° 4, do CP: aplicação do regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente, no caso de as «disposições penais» vigentes no momento da prática do facto punível serem diferentemente estabelecidas em leis posteriores. XIV - Não se tratando, como se referiu, de caso de modificação que tenha a ver com a definição do crime, não existiu alteração dos elementos da infracção do art. 105.° do RGIT (a não entrega da prestação tributária retida no prazo legalmente fixado), que permaneceu tal como se definia anteriormente à Lei 53-A/2006, de 29-12. XV - Não tendo havido eliminação do número das infracções nem modificação dos respectivos elementos constitutivos, não se configura qualquer hipótese de descriminalização, mas tão-só se verifica a previsão de uma outra condição de punibilidade que, se for o caso, deve ser tida em consideração se, e na medida em que, integrar um «regime» que «concretamente» se mostre mais favorável ao agente. XVI - A favorabilia reside aqui em que deve ser proporcionada ao agente a possibilidade de preencher – pois pode depender apenas de facto seu – a nova condição que, uma vez satisfeita, pode determinar o afastamento da punibilidade, por desnecessidade de aplicação de uma pena: a regularização da situação fiscal com a entrega da prestação no prazo determinado após a notificação que lhe seja feita. XVII - É, assim, de determinar o envio do processo ao tribunal recorrido, para que se proceda em conformidade com o disposto no art. 105.°, n.º 4, al. b), do RGIT.
Proc. n.º 4079/06 - 3.ª Secção
Henriques Gaspar (relator)
Soreto de Barros
Armindo Monteiro
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