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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 21-03-2007
 Sentença criminal Fundamentação Princípio da legalidade Fundamentação de facto Exame crítico das provas Alteração substancial dos factos Alteração não substancial dos factos Declarações do co-arguido Livre apreciação da prova Tráfico de estupefacientes Tr
I - A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289).
II - A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, Note sulla garanzia costituzionale della motivazione, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32).
III - A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.
IV - Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do n.º 2 do art. 374.º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei 59/98, de 25-08), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
V - O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.
VI - O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cf., v.g., Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/01).
VII - O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
VIII - No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto – a que se refere especificamente a exigência da parte final do art. 374.°, n.° 2, do CPP –, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o art. 410.º, n.° 2, do CPP; o n.° 2 do art. 374.° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cf., nesta perspectiva, o Ac. do TC de 02-12-1998).
IX - A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
X - Não existe insuficiência da fundamentação se na decisão estão enunciados, especificadamente, os meios de prova que serviram à convicção do tribunal, permitindo, no contexto ambiental, de espaço e de tempo, compreender os motivos e a construção do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum.
XI - “Alteração substancial dos factos” significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa. É este o sentido da definição constante do art. 1.°, n.º 1, al. f), do CPP para «alteração substancial dos factos», que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
XII - A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
XIII - “Alteração não substancial” constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal. A alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
XIV - A circunstância de terem sido dados como provados «dois casos concretos de transacção de droga com indivíduos não identificados» não integra a noção de “alteração não substancial”, pois, mesmo a existir, não modificaria o quadro factual da acusação, nem teria qualquer relevância para a qualificação ou para a determinação da moldura penal, não assumindo, assim, interesse para a decisão da causa, pelo que não se verifica violação do procedimento – tributário do princípio do acusatório – previsto nos arts. 358.° ou 359.° do CPP.
XV - As declarações produzidas por co-arguido não constituem um meio proibido de prova, não se enquadrando em qualquer das previsões do art. 126.° do CPP. Não há, por isso, obstáculo legal à valoração de tais declarações em aplicação do princípio de livre apreciação da prova, nos termos do art. 127.° do mesmo diploma. Por isso, as declarações prestadas por co-arguido, que decida livremente prestá-las, podem ser valoradas como meio de prova para a formação da convicção do juiz em temos probatórios, dentro dos poderes de livre apreciação, naturalmente ponderadas e avaliadas todas as contingências sobre a credibilidade que tais declarações comportem: o problema é, assim, de valoração e credibilidade da prova e não de prova proibida.
XVI - Mas, porque a valoração das instâncias não é sindicável pelo Supremo Tribunal (salvo os casos previstos no art. 410.°, n.° 2, do CPP), não se verificando, também, afectação das regras da equidade do processo, uma vez que a condenação não resultou, exclusiva ou predominantemente, de declarações de um co-arguido que o recorrente não tivesse possibilidade de contraditar (cf., v.g., Ac. do TEDH de 05-12-2002, caso CRAXI c. Itália), improcede o alegado fundamento do recurso, de que não poderiam ter sido valoradas as declarações de um co-arguido.
XVII - A qualificação diferencial entre o tipo base do art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, e o tipo de menor intensidade (o do seu art. 25.°) há-de partir da consideração e avaliação global da complexidade específica de cada caso – em avaliação, não obstante, objectiva e com projecção de igualdade, e não exasperadamente casuística ou fragmentária. A construção da ilicitude e a “considerável diminuição” há-de, assim, resultar da imagem global do facto no que respeita, naturalmente, à intervenção do recorrente na actividade que está em causa, e aos limites da sua intervenção no contexto que a matéria de facto revela.
XVIII - Tendo em consideração que:- o recorrente F colaborava na venda de produtos estupefacientes, sem qualquer autonomia de actuação (a actividade era dirigida pelo H e pela P), recebendo de outros co-arguidos, de cada vez, a quantidade de produto para venda a um comprador individualizado, entregando imediatamente o montante da venda a um dos co-arguidos que dirigiam a actividade;- no período de 03-10-2004 a 12-12-2004, a actividade de venda repetia-se diariamente; todavia, durante este período, os factos provados não revelam, de modo concretizado, o nível e a intensidade da actividade do recorrente, sendo que, no dia em que a actividade está pormenorizadamente descrita e em que existiu vigilância policial, o recorrente procedeu a quatro actos de venda;- também, como «normalmente estava presente no local pelo menos um desses [dos co-arguidos] arguidos», não pode ser concretamente determinada, nestas circunstâncias de facto, a intensidade da permanência e da frequência do local pelo recorrente;- esta menor concretização factual, se não pode ser tomada contra o recorrente na ponderação diferencial do nível e intensidade da ilicitude, revela, não obstante, um acompanhamento próximo, directo e consciente, de uma actividade de dimensão assinalável e espacial e temporalmente consistente;nas circunstâncias referidas, a intervenção provada relativamente ao recorrente desenha um quadro (uma “imagem global”) do facto em que se não pode considerar a projecção de ilicitude como diminuída – e “consideravelmente diminuída” – quando se tome como referência as comparações de densidade entre o tipo base e o tipo de menor ilicitude, pelo que a actuação do recorrente deve ser integrada no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01.
Proc. n.º 24/07 - 3.ª Secção Henriques Gaspar (relator) Soreto de Barros Armindo Monteiro Santos Cabral