Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 15-03-2007
 Homicídio Homicídio qualificado Culpa Ilicitude Especial censurabilidade Especial perversidade Motivo fútil Imputabilidade diminuída
I - O legislador português optou por determinar que o homicídio qualificado não é mais do que uma forma agravada do homicídio simples previsto no art. 131.º do CP.
II - Não há, pois, diversos tipos criminais de crimes contra a vida, mas apenas um, que é o crime base, sendo que há circunstâncias que especialmente o agravam (crime qualificado) e outras que especialmente o atenuam (crime privilegiado).
III - Por isso, também está fora de questão que se considere o crime base o de homicídio qualificado, não sendo o homicídio simples mais do que uma forma atenuada daquele.
IV - A qualificação do crime vem prevista no art. 132.º e aí o legislador não quis organizá-la de uma forma taxativa, antes optou por uma fórmula aberta, embora cingida a certos parâmetros, que deixa ao aplicador uma margem de ponderação das circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o conceito legal de homicídio qualificado.
V - Tal é feito pela afirmação genérica de um especial tipo de culpa que vem descrito no n.º l do referido art. 132.º do CP.
VI - Mas aliou-se essa formulação genérica à chamada técnica dos “exemplos-padrão”, em que a cláusula geral seria constituída por um tipo de culpa (art. 132.º, n.º 1) combinado com uma exemplificação não definitiva e facultativa (art. 132.º, n.º 2), sendo que esses exemplos-padrão estão formulados no n.º 2 do art. 132.º.
VII - A técnica legislativa resultante da conjugação do n.º l com o n.º 2 do art. 132.º leva a que possa ocorrer um homicídio em que se verifica alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 e, contudo, não se tratar de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela circunstância não revela “especial censurabilidade ou perversidade” (n.º 1), como pode suceder o contrário, a circunstância não estar prevista no n.º 2, mas poder ser substancialmente análoga e integrar-se no tipo especial de culpa do n.º l.
VIII - Vem a doutrina entendendo, embora dividida, que os exemplos-padrão prendem-se essencialmente com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram a um maior desvalor da conduta (por ex., o homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa.
IX - Como se disse já neste Supremo Tribunal, «a qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do art. 132.º do CP; essencial, é que as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples».
X - «A ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é a censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito».
XI - «No art. 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores... Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente... Importa salientar que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete» – cf. Teresa Serra, Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, 2000, pág. 15.
XII - No caso sub judice, a decisão recorrida concluiu pela verificação da agravativa referida na al. d) do n.º 2 do citado art. 132.º com base na seguinte fundamentação: «o arguido agiu determinado por motivo fútil, pois o que aconteceu foi que o arguido tomou a decisão de tirar a vida à vítima “para fazer algo pelo seu país”».
XIII - Discorda-se, contudo, de tal conclusão:- acha-se provado que o arguido sofre de um distúrbio psiquiátrico que evoluiu desde os 23/24 anos de idade, de curso prolongado, e que se traduziu em vários internamentos psiquiátricos, sendo o diagnóstico de difícil caracterização, apontando-se duas entidades como as situações mais possíveis: em primeiro lugar um distúrbio de personalidade, com descompensações psicóticas, ou uma psicose esquizofrénica em segundo lugar, sendo que o arguido sempre manifestou má adesão aos processos terapêuticos e apresenta actualmente juízo crítico em relação aos acontecimentos, bem como à eventual consequência dos seus actos;- em sede de facto acha-se consignado que o arguido apresenta imputabilidade diminuída;- e do exame psiquiátrico-forense colhe-se ainda ser «praticamente impossível afirmar com segurança se o doente apresentava sintomatologia da linha psicótica no período correspondente aos acontecimentos descritos no processo»;pelo que, desconhecendo-se o estado de vontade em que agiu o arguido, afastado se mostra o motivo fútil, que é o tal “motivo sem motivo”, a sem razão que permita compreender psicologicamente a acção.
XIV - O agente deve e tem de poder ser merecedor de um especial juízo de culpa ou de censura ético-jurídica em razão desse especial desvalor de que a prática do facto se revestiu. Isto, porque «quando se entenda a culpa, materialmente, como resposta da personalidade total do agente que se exprime no facto, este só pode aparecer como consequência fundadora daquela personalidade, numa visão total da personalidade que fundamenta e se manifesta no facto» – Ac. deste Supremo Tribunal de 21-06-2006, Proc. n.º 1559/06 - 3.ª.
XV - «As circunstâncias que objectivamente podem qualificar o crime de homicídio traduzem uma culpa exasperada, enquanto reflexos de uma personalidade que merece ser particularmente censurada por um maior desvalor da atitude do agente ou de refracções daquela em aspectos peculiares da execução do facto.
XVI - Caso se considerasse a descrita actividade do arguido na definida agravativa para efeitos de qualificação do crime de homicídio, provavelmente estaria a averbar-se à conta da culpa factores que não constituem senão limitações da personalidade, que, por congénitos ou adquiridos numa fase remota, de pré-consciência, se tornaram estruturantes do comportamento e, nessa medida, menos dignos de censura ético-jurídica ou, pelo menos, não passíveis de uma censura tão intensa como a que é pressuposta pelo tipo de culpa qualificado que se contém no art. 132.° do CP»a – Ac. deste Supremo Tribunal de 02-11-2006, Proc. n.º 2933/06 - 5.ª.
Proc. n.º 340/07 - 5.ª Secção Costa Mortágua (relator) Rodrigues da Costa Arménio Sottomayor Reino Pires