Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 14-05-2009
 Homicídio qualificado Frieza de ânimo Reflexão sobre os meios empregados Legítima defesa Animus defendendi Idade Atenuante Prevenção especial Prevenção geral Medida concreta da pena
I -A qualificativa (exemplo padrão) prevista na al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP – que, na redacção da Lei 59/2007, passou a integrar a al. j), mantendo-se, contudo, o seu elemento gramatical – menciona o que agiu com frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados ou persistiu na intenção de matar por mais de 24 horas, decompondo-se, assim, em três segmentos, com campos de incidência bem clarificados.
II - Não se mostra factualmente demonstrada a reflexão sobre os meios empregues – significando um amadurecimento temporal sobre o modo de praticar o crime, a congeminação serena e perdurante, no campo da consciência, da ideação da matar e dos meios a usar – se apenas se provou que, no dia dos factos, o arguido, seguindo no mesmo sentido, passou à frente da vítima e, depois, por meio inapurado, a encaminhou para um terreno marginal à estrada municipal por onde caminhavam, povoado de oliveiras e onde crescia erva de pequeno porte, lhe espetou uma forquilha com 5 bicos (dentes) em ferro, no pescoço, face e coxa, pelo menos duas vezes e, depois, com um pau de oliveira, que lhe servia habitualmente de arrimo, lhe vibrou pancadas, em número indeterminado, na cabeça, face e nuca, causando-lhe ferimentos corporais, deles advindo a morte por efeito directo e necessário.
III - Falha, ante a parcimónia factual, a comprovação plena de um prévio tempo de preparação do homicídio, uma tenacidade no animus necandi, o pressuposto de que ele se deixou motivar então pela intenção criminosa, meditou nos instrumentos a empregar, tanto mais que um era de uso habitual e o outro, nos meios rurais, empregue nos trabalhos agrícolas, bem como a escolha pré-ordenada do local à consumação do delito.
IV - Tendo em consideração que: -a vítima tinha 76 anos de idade na data dos factos, sofrendo de problemas de visão, que o obrigavam a ter óculos com lentes muito graduadas, e caminhava com dificuldade devido às artroses e varizes que tinha nas pernas (logo, mais vulnerável); -foi atraída pelo arguido para um terreno marginal à estrada por onde ambos seguiam a pé, e ali foi alvo da sua fúria – depois de o espetar, provocando-lhe três feridas contusas na face anterior do pescoço e ainda três feridas circulares na face externa do terço médio da coxa direita com um instrumento muito perigoso, a forquilha, o arguido continuou a agressão à paulada, na região da cabeça, nuca e face, até lhe causar a morte;o uso da forquilha, a persistência na consumação da morte da vítima, pela agressão plúrima em zonas vitais, com o pau, a inconsideração da extrema fragilidade física daquela e da sua idade também já avançada (embora menos que a do arguido), e o local escolhido, manifestam uma atitude interna, um estado de espírito, de franca e evidente insensibilidade e desprezo, indiferença para com o valor jurídico da vida, uma deficiência de carácter, que, por isso, refrange qualidades desvaliosas ao nível da personalidade e, deste modo, não pode deixar de se considerar que agiu com frieza de ânimo.
V - A legítima defesa, causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 32.º do CP, não abdica de um especial circunstancialismo factual e de um elenco de pressupostos ao nível do direito, não sindicando o STJ aquele, enquanto tribunal de revista, reponderando, no entanto, o direito aplicável.
VI - A legítima defesa pressupõe que o facto é praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores; não préordenada, ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime; actual, no sentido de, tendo-se iniciado a execução, não se ter verificado ainda a consumação; e necessária, ou seja, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa adequado, menos gravoso ou prejudicial – por a todo o direito corresponderem “limites imanentes” –, a sustar o resultado iminente – cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 45 e 59.
VII - Mesmo quando é enormíssima, mediante o recurso a um só meio, a desproporção entre o dano causado por esse meio e o interesse por ele defendido, tem de entender-se que a agressão é legítima, suportando aquela causa de exclusão de ilicitude.
VIII - Taipa de Carvalho, alargando o conceito de actualidade, recondu-la também àqueles casos em que a agressão não seja, em si mesma, ainda idónea a lesar o bem jurídico e nem sequer constitua um começo de lesão, mas seja, contudo, de esperar, segundo a experiência normal, que tal conduta se sucederá – cf. A Legítima Defesa, Coimbra Editora, pág. 272.
IX - A legítima defesa não dispensa, ainda, a verificação do pressuposto de impossibilidade de recurso à autoridade pública, atenta a natureza subsidiária da defesa face à actuada pelos órgãos do Estado, requisito não enunciado no CP82, em contrário da versão de 1886, mas que a jurisprudência destaca.
X - Essencial à legítima defesa é o animus defendendi, a intenção de, pelo contra-ataque, se suspender uma agressão ilegítima actual. Essa intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem.
XI - Segundo a jurisprudência deste STJ, o agente há-de ter consciência da legítima defesa, enquanto elemento subjectivo da acção de legítima defesa, de afirmação de um seu direito, de realização, no conflito de valores e interesses jurídicos, de um interesse mais valioso, pese embora com aquela vontade ou intenção de legítima defesa possam concorrer outros motivos, como o ódio, a vingança ou a indignação.
XII - As legislações de pretérito dedicaram um peso atenuativo à avançada idade, que, se não justifica a acção, pode, contudo, explicar o impulso criminoso, ajudando ao alimentar de suposições erradas, por vezes, e a um menor discernimento.
XIII - O CP actual é omisso quanto a esse ponto, diversamente do que sucede com os jovens de idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, em que a idade funciona como atenuante em nome de uma desejável e expectável ressocialização e prevenção da reincidência, mas esse objectivo não se descortina numa fase crepuscular da vida, que já não postula essa especial feição ressocializadora: o trajecto vital, com o seu conteúdo substancialmente positivo ou negativo, está ultimado, não comportando motivo para grande ou excessiva preocupação.
XIV - Já se entendeu neste STJ (Ac. de 07-10-1999, in BMJ 490.º/48) que o significado da prevenção especial se vai esbatendo com a idade; a necessidade de pena reduz-se, pois o idoso não tem dilatado espaço vital para delinquir e a pena a aplicar pode traduzir uma reacção sem pragmatismo à vista, do ponto de vista da prevenção especial, mas sem que se possa abdicar do fim público da pena, no aspecto da afirmação da validade e eficácia da norma violada, do reforço do sistema punitivo.
XV - Embora longe de se erigir em princípio regra a consideração de que o idoso, só por o ser, beneficia automaticamente de uma redução da pena, tem de atender-se a certas particularidades do caso.
XVI - Tendo em consideração que: -o arguido agiu com forte vontade criminosa, sobressaindo a extrema gravidade do facto, em função da supressão do valor fundamental do direito à vida, avultando um dolo muito intenso e uma ilicitude em grau muito elevado, a inferir dos meios usados na agressão, particularmente pelo uso da forquilha e do pau até à destruição do crânio da vítima – achando-se esta em condições de inferioridade física – e pelo local escolhido; -ao nível da prevenção geral não concorre qualquer circunstância a proclamar a redução da pena, considerando a reiteração de crimes contra a vida das pessoas, não tolerando o sentimento comunitário abrandamento punitivo, e muito embora a avançada idade do arguido comporte, ainda, algum sentido de favor; a prática voluntária do homicídio, de forma totalmente consciente e livre, com conhecimento perfeito da contrariedade à lei do acto e seus efeitos, num evidente contexto de brutalidade e crueldade, não legitima uma perda de eficácia punitiva que desça do limiar mínimo dos 12 anos de prisão fixados em 2.ª instância, ponto óptimo da medida da pena, justa e sem reparo.
Proc. n.º 389/06.8GAACN.C1.S1 -3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Santos Cabral