ACSTJ de 14-05-2009
Concurso de infracções Conhecimento superveniente Cúmulo jurídico Tribunal competente Pena única Fundamentação Prevenção geral Prevenção especial Pluriocasionalidade Cúmulo por arrastamento Sucessão de crimes Constitucionalidade Pena suspensa
I -No caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes, ou seja, quando posteriormente à condenação se denotar que o agente praticou anteriormente àquela condenação outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do disposto no art. 77.º do CP, segundo o n.º 1 do art. 78.º do mesmo diploma, não dispensando o legislador a interacção entre as duas normas. II - A pena de concurso é imposta em julgamento, sendo territorialmente competente o tribunal da última condenação, realizando este, oficiosamente ou a requerimento, as diligências reputadas essenciais à decisão – arts. 471.º, n.º s 1 e 2, e 472.º do CPP. III - A atribuição da competência ao tribunal da última condenação deriva da circunstância de ser ele que detém a melhor e mais actualizada perspectiva do conjunto dos factos e da personalidade do agente, retratada no conjunto global das condenações e do trajecto de vida do arguido, concebida como «o mais idóneo substracto a que pode ligar-se o juízo de culpa jurídico-penal», «a forma viva fundamental do indivíduo humano por oposição a todos os outros» – cf. Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, pág. 171. IV - No concurso superveniente de infracções tudo se passa como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente com a sentença, todos os crimes praticados pelo arguido, formando um juízo censório único, projectando-o retroactivamente. A formação da pena conjunta é, assim, a reposição da situação que existiria se o agente tivesse sido atempadamente condenado e punido pelos crimes à medida em que os foi praticando (cf. Lobo Moutinho, Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, ed. da FDUC, 2005, pág. 1324); o cúmulo retrata, pois, o atraso da jurisdição penal em condenar o arguido e a atitude do próprio agente em termos de condenação pela prática do crime, tendo em vista não prejudicar o arguido por esse desconhecimento ao estabelecer limites à duração das penas a fixar. V - Propondo-se o legislador sancionar os factos e a personalidade do agente no seu conjunto, em caso de cúmulo jurídico de infracções, de concluir é que o agente é punido, decerto que pelos factos individualmente praticados, mas não como um mero somatório, em visão atomística, antes de forma mais elaborada, dando atenção àquele conjunto, numa dimensão penal nova fornecendo o conjunto dos factos a gravidade do ilícito global praticado, no dizer de Figueiredo Dias (ob. cit., págs. 290-292), levando-se em conta exigências de culpa e de prevenção, tanto geral como de análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (prevenção especial de socialização). VI - Imprescindível na valoração global dos factos, para fins de determinação da pena do concurso, é analisar se entre eles existe conexão e qual o seu tipo; na avaliação da personalidade revela sobretudo se o conjunto global dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, a uma “carreira” ou tão-só a uma pluriocasionalidade, sem radicar na personalidade, bem como o efeito da pena sobre o seu comportamento futuro – cf. Figueiredo Dias, ob. cit., § 421. VII - A pena de concurso é imposta em audiência de julgamento, no estabelecimento das garantias de defesa do condenado, pautada pelo respeito pelo princípio do contraditório e, como não pode deixar de ser, fundamentada, nos termos dos arts. 205.º, n.º 1, da CRP, e 374.º, n.º 2, do CPP. VIII - Mas essa fundamentação afasta-se da prevista, em termos gerais, no art. 374.º, n.º 2, do CPP, tudo se resumindo a uma especial e imprescindível fundamentação, onde avultam, na fixação da pena unitária, a valoração, em conjunto, dos factos, enquanto “guia”, e a personalidade do agente, mas sem o rigor e a extensão pressupostos nos factores de fixação da pena previstos no art. 71.º do CP (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, §§ 420 e 421). IX - Do que não pode prescindir-se é de uma específica fundamentação, sob a forma sucinta, é certo (cf. o Ac. deste STJ de 02-04-2009, Proc. n.º 508/09 -3.ª), vocacionada ao alcance dos factos na sua globalidade e à caracterização da personalidade do agente, sendo que nesta entra em jogo a constatação de todo um processo de socialização e de inserção nos padrões comunitários pré-estabelecidos ou, pelo contrário, de percurso desviante, sem identificação social e de vivência comunitária – cf. Ac. deste STJ de 09-01-2008 e Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 197 e ss.. De perscrutar, ainda, a susceptibilidade de o arguido se deixar influenciar pela pena a aplicar, indiciada pela sua instrução, grau de cultura, meio social, apoio e meio familiar, capacidade e hábitos de trabalho, etc., tudo do maior relevo em termos de prevenção especial. X - Tem sido pacífico neste STJ o entendimento de que o concurso de infracções não dispensa que os vários crimes tenham sido praticados antes de ter transitado em julgado a pena imposta por qualquer um deles, representando o trânsito em julgado de uma condenação penal o limite temporal intransponível no âmbito do concurso de crimes, excluindo-se da pena única os praticados posteriormente; o trânsito em julgado de uma dada condenação obsta a que se fixe uma pena unitária em que, englobando as cometidas até essa data, se cumulem infracções praticadas depois deste trânsito. XI - O limite determinante e intransponível da consideração da pluralidade de crimes para o efeito de aplicação de uma pena de concurso é o trânsito em julgado da condenação queprimeiramente teve lugar, por qualquer crime praticado anteriormente; no caso de conhecimento superveniente de infracções aplicam-se as mesmas regras, devendo a última decisão que condene por um crime anterior ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito da primeira, se o tribunal, a esse tempo, tivesse tido conhecimento da prática do facto – como se, por ficção de contemporaneidade, todos os factos que posteriormente foram conhecidos tivessem sido julgados conjuntamente no momento da decisão primeiramente transitada. XII - Se os crimes agora conhecidos forem vários, tendo uns ocorrido antes de condenação anterior e outros depois dela, o tribunal proferirá duas penas conjuntas, uma a corrigir a condenação anterior e outra relativa aos factos praticados depois daquela condenação; a ideia de que o tribunal devia proferir aqui uma só pena conjunta contraria expressamente a lei e não se adequaria ao sistema legal de distinção entre punição do concurso de crimes e da reincidência, dando lugar a cúmulos separados e a pena executada separada e sucessivamente – cf. Figueiredo Dias, ob. cit., § 425, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 247. XIII - Orientação diversa é a que se verte no chamado «cúmulo por arrastamento», postergada por este STJ a partir de 1997, desde logo pelo Ac. de 04-12-1997 (CJSTJ, V, tomo 3, pág. 246), assinalando-se que «aniquila a teleologia e a coerência interna do ordenamento jurídico-penal, ao dissolver a diferença entre as figuras do concurso de crimes e da reincidência (Comentário de Vera Lúcia Raposo, RPCC, Ano 13, n.º 4, pág. 592)». XIV - Esta posição não atenta contra princípios fundamentais do Estado de Direito, particularmente o do respeito pela dignidade humana, da tipicidade, da culpa, da legalidade e da inexistência de prisão perpétua, sendo, por isso, credenciada pelo TC no seu Ac. n.º 212/02, de 22-05-2002 (Proc. n.º 243/2002, DR II Série, n.º 147, de 28-06-2002), em ponderação da conformidade constitucional do decidido no Ac. deste STJ de 17-01-2002, (in CJSTJ 2002, tomo 1, pág. 180), repudiando interpretação favorável ao cúmulo por arrastamento. XV - Tem sido objecto de controvérsia a questão da inclusão no cúmulo de penas cuja execução foi suspensa, maioritária e afirmativamente se pronunciando este STJ, sob alegação de que o caso julgado se forma sobre a medida da pena e não sobre a sua execução, ficando a suspensão da execução da pena resolutivamente sujeita à condição da ocorrência de condenação que aquela revogue, neste sentido se pronunciando este STJ no seu Ac. de 2611-2008, Proc. n.º 3175/2008, destacando-se do extensíssimo leque jurisprudencial os Acs. publicados nos BMJ 354.º/345, 360.º/340, 424.º/410, 465.º/319, 404.º/178, 467.º/356, 468.º/79, 485.º/121, e os recentes de 03-10-2007, Proc. n.º 2576/07, de 31-01-2008, Proc. n.º 4081/07, de 27-03-2008, Proc. n.º 411/08 (com voto de vencido), e de 25-09-2008, Proc. n.º 2818. XVI - Opõe-se-lhe a tese do não englobamento sufragada nos Acs. deste STJ de 02-06-2004, Proc. n.º 1391/04, de 20-04-2005, Proc. n.º 4742/04 e, na doutrina, por Nuno Brandão em comentário ao Ac. deste STJ de 03-02-2003, in RPCC, 2005, I, págs. 117-153, com o fundamento de que a suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição, autónoma face à pena substituída, não uma forma de execução, com regulamentação própria. XVII - Igualmente se entende que não obstante o trânsito em julgado do despacho revogatório da suspensão é admissível suspender a execução da pena única resultante do cúmulo – cf. Ac. do STJ de 10-10-2001, Proc. n.º 1806/01 -3.ª, in CJSTJ, 2001, III, pág. 189, posição sustentada pelo TC in Ac. n.º 3/2006, 03-11-2006, Proc. n.º 904/75 (Acs. do TC, vol. 64, págs. 147 e ss.). XVIII - Tendo em consideração que: -o exame do acórdão recorrido evidencia que, quanto aos factos, no aspecto e em vista da sua apreciação global, se limita a fazer remissão para as sentenças condenatórias, o que não satisfaz a exigência de descrição sucinta que permita alcançar o leque de factos em que o tribunal se alicerçou para decidir, não facultando base de sindicância nem defesa ao arguido. -não valem enunciados genéricos, fórmulas tabelares, remissões para a lei, juízos conclusivos, premissas imprecisas; -o acórdão é omisso quanto à questão da suspensão da execução da pena, porque não emite juízo de expressa revogação das duas penas que intervieram na formação da pena de conjunto, nem sequer esclarece se estas foram revogadas e se foram objecto de trânsito, ou se foram cumpridas, pois que, a tê-lo sido, devem ser objecto de desconto à face da lei nova, decorrente da alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09; -em termos de prognose futura, está ao alcance do tribunal indagar – o que não fez – se, realmente, o tempo de reclusão tem sido motivo de interiorização, de motivação para o direito, se, como se diz no relatório social, comporta virtualidades de ressocialização, que urge não descurar em termos de mudança de rumo de vida, já que é um jovem, cujo trajecto vital futuro importa definir com rigor; conclui-se que o tribunal se absteve de conhecer de questões que devia apreciar (sendo estas não só as colocadas pelas partes mas também as que, no exercício das suas funções, lhe sejam suscitadas com interesse para a decisão do pleito, nos termos do art. 668.º do CPC), pecando o acórdão recorrido por omissão de pronúncia e sendo, assim, nulo, suprindo-se essa nulidade após baixa à 1.ª instância – arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, al. c), do CPP.
Proc. n.º 6/03.8TPLSB.S1 -3.ª Secção
Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral
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