ACSTJ de 14-05-2009
Recurso da matéria de facto Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Competência do Supremo Tribunal de Justiça Dolo Dolo eventual Culpa Erro notório na apreciação da prova Crime preterintencional Nexo de causalidade Negligência
I -O Tribunal da Relação fecha, em regra, o julgamento da matéria de facto, nos termos dos arts. 427.º e 428.º do CPP. Com efeito, consagra o art. 431.º do CPP a regra do duplo grau de jurisdição de recurso em termos de matéria de facto, pelo que está vedado aos sujeitos processuais erigir o seu recurso para o STJ tendo por fundamento a ocorrência de qualquer dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. II - Estes vícios prendem-se com a matéria de facto, respeitam à confecção da sentença, à sua estruturação factual, e hão-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, sem possibilidade de recurso a elementos estranhos àquela, conforme preceitua o n.º 2 do art. 410.º do CPP, o que se torna mais consentâneo com o propósito do legislador em configurar o recurso como remédio jurídico pontual e não reexame global da matéria de facto, obstando a que o tribunal superior possa fundar a sindicância da matéria de facto em outros elementos de prova, como documentos e quaisquer outros elementos de prova, em ofensa à imediação do tribunal recorrido. III - O STJ, como tribunal de revista, não está, contudo, impedido de verificar oficiosamente a ocorrência de qualquer dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, pois mal se compreenderia que fizesse alicerçar a solução de direito em matéria de facto viciada, ao arrepio do princípio constitucional de que o direito processual penal assegura todos os direitos de defesa (art. 32.º, n.º 1, da CRP) – cf. Ac. do Pleno das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, DR I Série A, de 28-12-1995. IV - O dolo é a intenção criminosa. V -Na modalidade de dolo eventual o conteúdo do ilícito é menor do que nas outras classes, porque o resultado não foi proposto nem tido como seguro. VI - Pertence ao dolo eventual a consciência da existência do perigo concreto de realização do tipo e ainda a consideração séria desse perigo por parte do agente, ou seja, o agente calcula como relativamente elevado, muito próximo, aquele perigo e, assim, o risco de realização do tipo. VII - É essencial à conformação com o resultado típico que o agente se decida por suportar o estado de incerteza existente no momento da acção, denotando uma postura especialmente reprovável face ao bem jurídico protegido no que respeita à culpabilidade, equiparando tal estado à intenção criminosa. VIII - De facto, essa atitude do agente, caracterizada por prever como possível a produção do resultado e com ele se conformar, segundo a definição legal, não é uma componente da vontade da acção mas da culpabilidade. IX - Endereça-se ao agente com dolo eventual uma reprovação maior do que na negligência consciente, dada a sua deficiente atitude interna, mental, relativamente ao bem jurídico protegido, pois naquela reconhece o perigo mas confia na não produção do resultado típico. X - O dolo eventual é, assim, integrado pela vontade de realização da acção típica, pela consideração séria do risco na produção do evento e pela aceitação dessa produção, factor de culpabilidade, na definição de Jescheck (in Lehrbuch des Stratrechts, Ed. Comares, Granada, págs. 296 e 466). XI - No art. 14.º, n.º 3, do CP consagra-se a teoria da conformação, com o sentido e alcance – comenta Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 91 – de que comete o crime com dolo eventual o agente que leva a sério a lesão do bem jurídico como consequência possível da prática do facto e não se inibe de o praticar, sendo irrelevante indagar se confiou ou não na produção do resultado, mas sem recusar a importância de apurar se a consequência era tão remota que o agente não podia tê-la levado a sério; um juízo de grande probabilidade é dificilmente conciliável com a ausência do elemento volitivo, na esteira de Cavaleiro de Ferreira, ali citado, sendo que, ainda na perspectiva deste eminente penalista, «a mera suspeita de que eventualmente possa advir a realização de um crime exigirá uma prova mais segura da conformação da vontade com essa realização». XII - A conformação não tem de assumir o produto de um acto de reflexão e ponderação intelectual, mas de desprezo do agente pela salvaguarda do interesse tutelado pela norma jurídica, comenta ainda Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., nota 14. XIII - A questão da intenção criminosa, por pertencer ao domínio íntimo do agente (cf. BMJ 400.º/268), somente apreensível por factos dos quais com probabilidade forte se possa inferir – enquanto factos concludentes, alicerçados na correspondente prova –, escapa ao poder de cognição e de sindicância do STJ, ante o qual não desfilou o elenco das provas e sobre as quais não exerceu poder de imediação e apreciação, pelo que o dolo em qualquer das suas modalidades e elementos do tipo não cabe no âmbito do recurso. XIV - E, como é jurisprudência pacífica deste STJ, não se confunde o erro notório na apreciação da prova – ou a insuficiência para a decisão da matéria de facto –, vício grave, chocante, que há-de resultar de forma evidente do texto da decisão recorrida, sempre que fixou matéria de facto, que atenta contra a lógica das coisas, perceptível pelo homem médio, não conhecedor dos meandros do direito, com a diferente convicção formada pelo tribunal, o qual, nos termos do art. 127.º do CPP, avalia e valora livremente os factos e decide de acordo com as regras da experiência (enquanto «critérios generalizantes e tipificados de inferência factual», «índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam caminhos de investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso», na doutrina de Castanheira Neves (in Sumários de Processo Penal, 1967/68, 4, Os Princípios Fundamentais de Direito Processual Criminal, pág. 42 e ss.). XV - Nos termos do art. 18.º do CP, os tipos fundamentais de crime agravado em função do resultado, designadamente a morte, encontram a ratio dessa agravação na circunstância de tal resultado estar para além do dolo do agente, concentrando-se no descritivo típico uma especial combinação de dolo e negligência, em que o dolo se cinge à lesão corporal, mas em que o agente é punido de forma mais gravosa porque o perigo específico que envolve o seu comportamento se materializa num resultado agravante não previsto, situado para além da sua intenção, que, por razões de justiça e política criminal, não podia escapar à malha da punição. XVI - Além do nexo de causalidade adequada entre a conduta típica e o resultado agravante, a lei exige que esse resultado seja, pelo menos, imputável ao agente a título de negligência. XVII - A preterintenção no crime do art. 145.º do CP é um misto de dolo e de culpa: de dolo quanto ao tipo fundamental; de culpa em relação ao resultado agravado. XVIII - Mas pode o tipo fundamental ser praticado a título de negligência. Por isso Damião da Cunha (in Tentativa e Comparticipação nos Crimes Preterintencionais) consigna que no art. 18.º do CP se incluem as situações clássicas de preterintencionalidade de crime fundamental doloso com resultado não abrangido pelo dolo do agente como outras em que o tipo fundamental é negligente. XIX - Segundo o mesmo autor (ob. cit., pág. 571), situação diversa da do crime preterintencional é aquela em que o crime fundamental é doloso e o resultado agravado se consuma mas inexiste nexo de causalidade adequada entre o tipo fundamental e o resultado, ficando este a dever-se a outra fonte de perigo criado pelo agente. Neste caso existe concurso real entre o resultado do crime principal consumado e o devido a título de negligência.
Proc. n.º 1182/06.3PAALM.S1 -3.ª Secção
Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral
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