ACSTJ de 14-05-2009
Direitos de defesa Defensor Concurso de infracções Conhecimento superveniente Cúmulo jurídico Reincidência Sucessão de crimes Pena única Pena cumprida, prescrita ou extinta Nulidade da sentença Omissão de pronúncia
I -No caso de defesa oficiosa, a carência de defesa, quando for manifesta, impõe-se ao juiz, exigindo atenção e intervenção adequada para respeitar o direito processual fundamental de defesa inscrito no art. 6.º, § 3.º, al. c), da CEDH (cf., v.g., os Acs. do TEDH nos casos DAUD c. Portugal, de 21-04-1998, e CZEKALLA c. Portugal, de 10-10-2002). II - A interpretação do art. 78.º, n.º 1, do CP tem de partir da consideração e da determinação do sentido de dois elementos essenciais da construção da norma: o momento de superveniência do conhecimento do concurso (art. 78.º, n.º 1, 1.ª parte), e os pressupostos de integração do concurso cujo conhecimento é superveniente (art. 78.º, n.º 1, 2.ª parte) para aplicação da pena única. III - Ambos os elementos são de dimensão processual, mas o segundo releva também de uma natureza estruturalmente substantiva ou material; o primeiro elemento, que se apresenta contingente no tempo, é eminentemente ou exclusivamente processual; o segundo elemento, que integra o objecto do conhecimento, é da ordem dos pressupostos materiais, e apela, por remissão, para a noção, material e específica, do concurso de crimes para efeitos de punição, constante do art. 77.º, n.º 1, do CP. IV - O momento do conhecimento superveniente tem exclusivamente a ver com o processo e com a oportunidade, rectius, com a exigência processual do conhecimento, que é contingente porque pressupõe a posterioridade (superveniência) do conhecimento; os pressupostos de integração do concurso não têm já que ver estritamente com o processo – em relação ao qual são relativamente indiferentes – mas com a definição e integração do conceito de concurso de crimes, que impõe a aplicação de uma «única pena». V - Há, pois, que decompor a norma do art. 77.º, n.º 1, 1.ª parte, do CP, para a determinação do sentido dos respectivos elementos integrantes, partindo das fórmulas de linguagem utilizadas: «quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles». VI - A punição do concurso de crimes com uma «única pena» pressupõe, pois, a existência de uma pluralidade de crimes praticados pelo mesmo agente que tenham de comum um determinado período de tempo, delimitado por um ponto de referência ad quem estabelecido na norma – o trânsito em julgado da condenação por qualquer deles; todos os crimes praticados antes de transitar em julgado a condenação por um deles devem determinar a aplicação de uma pena única, independentemente do momento em que seja conhecida a situação de concurso, que poderá só ocorrer supervenientemente em virtude de contingências processuais várias. VII - O segmento «por qualquer deles», usado na descrição da norma, requer, por sua vez, um acrescido esforço de interpretação, já que a simples enunciação verbal pode deixar em aberto significações plurais. «Qualquer deles» pode traduzir, com efeito, uma indiferenciação, no sentido de aleatoriedade do pressuposto, da ordem de factores arbitrária, em aproximação semântica a «qualquer um». Mas também pode significar, no imediato plano literal, a primeira ocorrência: o trânsito em julgado da condenação por «qualquer deles» pode significar que este momento relevante (o trânsito da condenação) se verifica logo que haja uma condenação transitada por um dos crimes – o que supõe sempre uma pluralidade antecedente, que apenas o é na medida em que, transitada uma condenação, se verifique que anteriormente a esse momento foi praticado pelo agente um outro ou mais crimes. VIII - Neste sentido, não haveria lugar à aplicação de uma «única pena» sempre que se verificasse que, após o trânsito de uma condenação, o agente praticara outros crimes pelos quais foi, também, posteriormente condenado. IX - A pluralidade de sentidos que o texto permite impõe que se façam intervir outros instrumentos metodológicos de interpretação para captar o sentido em que a norma deve ser interpretada, nomeadamente elementos de sistema e a razão de ser e finalidade da instituição do regime da pena única. X - Os arts. 77.º e 78.º do CP não são normas de incidência, dir-se-ia dogmática, aferente à teoria do facto ou à doutrina do crime, mas antes, na projecção sistemática que apresentam, exclusivamente atinentes à punição e à determinação da medida da pena, e aplicáveis nos casos, que definem, de fixação de uma pena única. XI - Por isso, têm de ser interpretados de acordo com as correlações conceptuais, lógicas e operativas perante outros institutos igualmente referentes à punição e à determinação da medida da pena, de modo a que se não produzam contradições ou desvios de sentido intrasistemáticos. XII - Nesta coordenação interna ao sistema, os pressupostos estabelecidos na lei para a intervenção do instituto da reincidência hão-de contribuir para definir também o espaço de intervenção das regras de fixação da pena do concurso: onde a lei determinar que se verifica a reincidência (o pressuposto objectivo da reincidência) não pode, salvo contradição de sistema, haver pena única. XIII - O art. 75.º, n.º 1, do CP dispõe, com efeito, para o que releva, que a punição como reincidente ocorrerá quando alguém cometer um crime de determinada natureza depois de ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, por outro crime com certas condições de gravidade. Verificada a reincidência, não pode haver lugar para a pena única, e o limite de exclusão, ou de separação, é o trânsito em julgado de uma condenação, que não pode também, por isso, ser senão aquela que delimita o espaço temporal ad quem da prática dos crimes que impõem a fixação de uma pena única. XIV - Mas se é assim, como exigência primeira de coerência sistémica dos institutos no caso de reincidência (conceptualmente delimitada), também tem de ser, pelas mesmas razões, nos casos em que se verifique simples sucessão de crimes, enquanto prática de um crime após o trânsito em julgado de uma condenação. XV - Por isso, o trânsito da condenação «por qualquer» dos crimes, referido no art. 77.º, n.º 1, do CP, não pode ser o trânsito da condenação por qualquer um dos crimes – que relevaria do simples acaso, do arbítrio, ou da pura contingência da cronologia e dos tempos processuais – mas o trânsito da primeira condenação relevante em cada caso para fixar os limites temporais para o passado. XVI - Os elementos da interpretação, racional e teleológico, confortam também, por seu lado, esta conclusão. XVII - As regras da punição do concurso, estabelecidas nos referidos arts. 77.º, n.º 1, e 78.º, n.º 1, não se destinam a modelar os termos de uma qualquer espécie de liquidação ou quitação de responsabilidade, reaberta em cada momento sequente em que haja que decidir da responsabilidade penal de um certo agente, mas têm como finalidade permitir apenas que em determinado momento se possa conhecer da responsabilidade quanto a factos do passado, no sentido em que, em termos processuais, todos os factos poderiam ter sido, se fossem conhecidos ou tivesse existido contemporaneidade processual, apreciados e avaliados, em conjunto, num dado momento. Na realização desta finalidade, o momento determinante só pode ser, no critério objectivado da lei, referido à primeira condenação que ocorrer, e que seja (quando seja) definitiva, valendo, por isso, por certeza de objectividade, o trânsito em julgado. XVIII - A posterioridade do conhecimento «do concurso», que é a circunstância que introduz as dúvidas, não pode ter a virtualidade de modificar a natureza dos pressupostos da pena única, que são, como se referiu, de ordem substancial. XIX - O conhecimento posterior (art. 78.º, n.º 1) apenas define o momento de apreciação, processual e contingente. A superveniência do conhecimento não pode, no âmbito material, produzir uma decisão que não pudesse ter sido proferida no momento da primeira apreciação da responsabilidade penal do agente (cf., neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 293-294). XX - Há, assim, para a determinação da pena única, como que uma ficção de contemporaneidade. A decisão proferida na sequência do conhecimento superveniente do concurso, deve sê-lo nos mesmos termos e com os mesmos pressupostos que existiriam se o conhecimento do concurso tivesse sido contemporâneo da decisão que teria necessariamente tomado em conta, para a formação da pena única, os crimes anteriormente praticados; a decisão posterior projecta-se no passado, como se fosse tomada a esse tempo, relativamente a um crime que poderia ser trazido à colação no primeiro processo para a determinação da pena única, se o tribunal tivesse tido, nesse momento, conhecimento da prática desse crime (cf., a propósito do regime análogo [“pena global”] do § 55 do Strafgesetzbuch, Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal – Parte General, trad. da 5.ª edição, pág. 787). XXI - Esta interpretação tem sido expressa, «sem discrepância», na jurisprudência deste Supremo Tribunal desde 1997. XXII -Resumindo: o limite, determinante e intransponível, da consideração da pluralidade de crimes para efeito de aplicação de uma pena única, é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido por qualquer dos crimes praticados anteriormente; no caso de conhecimento superveniente aplicam-se as mesmas regras, devendo a última decisão, que condene por um crime anterior, ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito da primeira, se o tribunal, a esse tempo, tivesse tido conhecimento da prática do facto. XXIII -Há, assim, em relação a um conjunto que integre uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, que verificar o trânsito em julgado das decisões condenatórias, começando pela decisão que tiver transitado em primeiro lugar. XXIV -Na determinação da decisão primeiramente transitada, que constitui o elemento relevante, não haverá actualmente, após a revisão do CP pela Lei 59/2007, de 04-09, que desconsiderar as penas já cumpridas ou extintas: o art. 78.º, n.º 1, 2.ª frase, dispõe que a pena «que já tiver sido cumprida» será «descontada no cumprimento da pena única aplicada no concurso de crimes». Isto é, a pena já cumprida integrará o concurso de crimes segundo a regra geral de definição que parte da anterioridade da prática dos crimes em relação ao trânsito em julgado da condenação por qualquer deles que primeiramente ocorrer. XXV -No entanto, o regime anterior não era coincidente neste aspecto. O art. 78.º, n.º 1, do CP, na redacção anterior, resultante da Lei 48/95, de 15-03, ao dispor que as regras da punição do concurso constantes do art. 77.º se aplicavam quando se mostrar que o agente praticou outros crimes «anteriormente a uma condenação transitada em julgado», mas «antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta», excluía estas penas cumpridas, prescritas ou extintas da punição do concurso e das regras de formação do concurso de crimes; não haveria, assim que considerar para a definição do cúmulo o trânsito em julgado de uma condenação em pena que tivesse sido já cumprida, ou estivesse prescrita ou extinta. XXVI -Não pode considerar-se que tenham transitado em julgado as decisões que apliquem, de modo necessariamente sic stantibus, penas únicas, enquanto não for proferida a decisão que englobe a última das condenações que integre um cúmulo de conhecimento superveniente. XXVII -Por outro lado, não havendo definitividade das decisões anteriores, não podem existir expectativas legítimas do arguido. Enquanto não for proferida decisão que considere todas as penas aplicadas, não existem expectativas sobre a fixação da pena única. XXVIII -E, tendo sido interposto recurso, a dimensão garantística do arguido está assegurada pelo meio processual da proibição da reformatio in pejus. XXIX -Como tal, o caso julgado emergente dos cúmulos anteriormente realizados não impede a exclusão, no cúmulo a realizar posteriormente, de penas incluídas naqueles e a autonomia sucessiva de penas, se tal resultar, no caso, das regras de punição do concurso. XXX -Ao não proceder a uma ponderação diferenciada do cúmulo jurídico emergente da aplicação do regime anterior e do regime posterior à revisão de 2007 e à subsequente escolha fundamentada do que se mostre em concreto mais favorável ao arguido, o acórdão recorrido deixou de se pronunciar sobre questão essencial, que deveria apreciar, incorrendo em nulidade por omissão de pronúncia, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP. XXXI -Ao englobar no cúmulo jurídico penas respeitantes a condenações por factos praticados após o trânsito em julgado de condenações noutras penas aí igualmente incluídas, o tribunal recorrido não se pronunciou sobre a questão da sucessão de penas que não se encontram, entre si, numa relação de concurso, nem sobre a eventual inclusão noutro(s) cúmulo(s) jurídico(s) das penas excluídas do primeiro, sendo a(s) respectiva(s) pena(s) única(s) de cumprimento sucessivo relativamente à primeira, assim incorrendo igualmente em nulidade por omissão de pronúncia, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP. XXXII -Por outro lado, e no que respeita a outro arguido, o acórdão recorrido: -ao não ponderar, na elaboração do cúmulo jurídico, a data que considerou na matéria de facto provada como sendo a do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º …, isto é, o dia 19-03-2004, deixou de se pronunciar sobre questão essencial, que deveria apreciar, incorrendo em nulidade por omissão de pronúncia, prevista no referido preceito legal; -ao considerar uma outra data como sendo a do trânsito da indicada decisão, diversa da constante da matéria de facto provada, elaborando o cúmulo jurídico com base nesse pressuposto, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, igualmente incorrendo em nulidade por excesso de pronúncia, também prevista no aludido preceito.
Proc. n.º 606/09 -3.ª Secção
Henriques Gaspar (relator)
Armindo Monteiro
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