ACSTJ de 14-05-2009
Admissibilidade de recurso Aplicação da lei no tempo Direito ao recurso Ofensa à integridade física qualificada Agravação pelo resultado Medida concreta da pena Indemnização Danos não patrimoniais Direito à vida
I -Em matéria de aplicação da lei no tempo, tem sido entendimento jurisprudencial que o recurso se rege pela lei em vigor à data da decisão recorrida ou, pelo menos, à da sua interposição, pois o direito ao recurso só surge com a prolação da respectiva decisão (cf. Acs. deste STJ de 23-11-2007, Proc. n.º 4459/07 -5.ª, e de 30-04-2008, Proc. n.º 110/08 5.ª). II - Integrando o recurso e a respectiva interposição um direito fundamental do arguido, se a lei nova lhe retirar um grau de recurso – para o STJ – que em abstracto lhe assistia face ao regime processual anterior é de admitir o recurso interposto (Ac. STJ de 05-03-2008, Proc. n.º 100/08). III - Vindo a arguida condenada, por decisão da 1.ª instância de 20-07-2007, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada agravado pelo resultado, p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, 146.º, n.ºs 1 e 2, 145.º, n.º 1, al. b), 144.º, al. d), e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), todos do CP na redacção anterior à da Lei 59/2007, de 04-09, punível, em abstracto, com pena de 4 a 16 anos de prisão, verifica-se que: -face à anterior redacção do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP era admissível recurso até ao STJ, uma vez que, de acordo com a moldura penal abstracta respectiva, tal crime é punível com pena de prisão superior a 8 anos e o acórdão é condenatório;-porém, de acordo com a nova redacção dada àquela al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP já não é permitido recurso para o STJ, pois o acórdão da Relação (proferido a 16-12-2008, de que agora se pretende recorrer) é condenatório, confirmou (in mellius) – em recurso – a decisão da 1.ª instância e aplicou pena de prisão não superior a 8 anos (aplicou a pena de 8 anos de prisão). IV - Sendo assim, da aplicação imediata do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP na actual redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, resulta agravamento sensível da posição da arguida, na medida em que lhe é retirado um grau de recurso. V - É que, a partir do momento em que foi proferido o acórdão da 1.ª instância, e porque a decisão lhe foi desfavorável, a arguida passou a ter o direito de recorrer face à redacção então vigente do referido preceito. VI - Aliás, a questão foi resolvida pelo acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2009 deste STJ, de 18-02-2009 (Proc. n.º 1957/08 -3.ª, publicado no DR n.º 55, I Série, de 1903-2009), que fixou jurisprudência no sentido de que «Nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, é recorrível o acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação, após a entrada em vigor da referida lei, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a 8 anos, que confirme decisão de 1.ª instância anterior àquela data». VII - Resultando provado, entre o mais, que: -durante cerca de quinze anos, e até finais de 2002, a arguida cuidou de crianças na sua residência; -em data não concretamente apurada, mas anterior a 16-09-2002, a arguida foi contactada pela assistente, N, a fim de prestar serviços de ama a seu filho LG, nascido a 30-04-2002, mediante o pagamento de quantia não apurada; -assim, e na sequência do acordado, a arguida passou a cuidar do menor LG na sua residência a partir de 16-09-2002; -no dia 09-01-2002, pelas 09h00, o menor LG foi entregue por seu pai à arguida, em casa desta, ficando a partir daí ao seu cuidado; -a hora não concretamente apurada, mas antes das 16h00, quando a arguida tinha o menor LG ao seu colo, por motivos desconhecidos, atirou-o com violência contra objecto não apurado, fazendo com que o mesmo batesse no mencionado objecto com a região posterior da cabeça; -em consequência do impacto, o menor LG sofreu traumatismo crânio-encefálico resultante de acção traumática de natureza contundente ou agindo como tal, lesões que foram causa directa e necessária da sua morte; -a arguida, ao arremessar o LG, teve a vontade e a intenção de ofender o corpo e a saúde deste, e representou o perigo para a vida do menor como consequência possível da sua conduta; apesar disso, e não obstante conhecer a fragilidade do menor LG, atenta a sua idade – 5 meses e 9 dias – a arguida não se absteve de actuar como actuou; -a arguida agiu de modo livre, deliberado e consciente, conhecendo a natureza reprovável da sua conduta; -a arguida omitiu qualquer informação que levasse à detecção imediata dum traumatismo; -a arguida é isenta de passado criminal e deixou de cuidar de crianças depois dos acontecimentos agora provados, vivendo presentemente sustentada por seus pais; -a respeito da arguida, sempre constaram boas informações no tocante ao exercício da sua actividade de ama de crianças, aliás também junto dos pais do menor LG; mostra-se adequado, face à moldura penal abstracta de 4 a 16 anos de prisão correspondente ao crime de ofensa à integridade física qualificada agravado pelo resultado pelo qual foi condenada, aplicar à arguida uma pena de 7 anos de prisão. VIII - A vida é um bem que não tem preço. É o bem supremo, o mais valioso, sendo passível de reparação ou compensação pecuniária – art. 496.º, n.º 3, 2.ª parte, do CC. Na verdade, estabelece o art. 496.º, n.º 1, do CC que na fixação da indemnização devem ser atendidos os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, dispondo o n.º 3 do mesmo preceito legal que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º. E no caso de morte podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do n.º 2 do art. 496.º do CC. IX - A doutrina e a jurisprudência têm entendido que do art. 496.º, n.ºs 2 e 3, do CC resultam três danos não patrimoniais indemnizáveis: -o dano pela perda do direito à vida; -o dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte; -o dano sofrido pela vítima antes de morrer, variando este em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima estava consciente ou em coma, se teve dores ou não e qual a sua intensidade, se teve ou não consciência de que ia morrer. X - Para determinar o montante de indemnização por danos não patrimoniais há que atender à sensibilidade do indemnizando, ao sofrimento por ele suportado e à sua situação sócioeconómica. E há também que considerar o grau de culpa do agente, a sua situação sócioeconómica e as demais circunstâncias do caso. De todo o modo, a indemnização por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico ou miserabilista (como se refere no Ac. deste STJ de 17-01-2008, in Proc. 7B4538). XI - No caso dos autos, como decorre da matéria de facto, provou-se ser o facto lesivo levado a cabo – dolosamente – pela arguida (embora estejamos perante crime preterintencional) que causou a morte da vítima (filho dos demandantes), que à data da morte tinha 5 meses e 9 dias de idade. Face aos valores que vêm sendo arbitrados por este Supremo Tribunal – cf., entre outros, os seguintes Acs. deste STJ: de 19-05-2005, Proc. n.º 0935/05 -1.ª, indemnização de € 75 000; de 27-04-2005 – vítima com cerca de 50 anos de idade e auferindo o vencimento mensal de 428,97x14 meses –, indemnização de € 50 000; de 0505-2005, Proc. n.º 0864/05 -2.ª, indemnização de € 50 000; de 24-11-2005, Proc. n.º 2831/05 -5.ª – a vítima tinha 33 anos de idade e era trabalhador, alegre e saudável –, indemnização de € 50 000; de 24-01-2006, Proc. n.º 3941/05 -6.ª – a vítima tinha 34 anos de idade, com um futuro prometedor –, indemnização de € 50 000; de 31-01-2006, Proc. n.º 3769/05 -1.ª, indemnização de € 50 000; de 14-12-2006, Proc. n.º 3737/06 -6.ª, indemnização de € 51 411; de 11-01-2007, Proc. n.º 4433/06 -2.ª – a vítima era um jovem de 18 anos, cheio de vitalidade –, indemnização de € 50 000, acrescida de € 9 000 pelo sofrimento entre o facto e a morte, passadas horas; de 25-01-2007, Proc. n.º 4654/06 -7.ª – a vítima tinha 25 anos, era um jovem saudável que estava a concluir a licenciatura e faleceu no dia seguinte ao do sinistro –, indemnização de € 49 880; de 17-04-2007, Proc. n.º 0225/07 -7.ª, indemnização de € 50 000; e de 26-04-2007, Proc. n.º 0827/07 -2.ª, indemnização de € 50 000 – o montante indemnizatório de € 50 000 fixado na decisão recorrida pela perda do direito à vida do menor LG é exagerado, devendo ser fixado em € 30 000. XII - Demonstrando-se, no caso concreto, que: -a morte do menor LG, filho dos demandantes, ocorreu em circunstâncias violentas; -o desenvolvimento fetal do menor LG foi acompanhado com intensidade por ambos os pais; -desde a morte do menor LG os demandantes têm vivido numa angústia permanente e têm chorado a morte de seu filho; -os demandantes são jovens e terão de viver toda a sua vida com a recordação da morte do menor LG e das circunstâncias em que ocorreu; e ponderando ainda que a indemnização pelos danos não patrimoniais visa, simultaneamente, compensar o lesado e sancionar o lesante, mostra-se excessivo o montante atribuído aos demandantes a título de indemnização por danos não patrimoniais próprios decorrentes da morte do seu filho LG – a decisão recorrida fixou-o em € 35 000 para cada um deles –, considerando os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, sendo mais justo e adequado fixar em € 15 000 a indemnização a atribuir a cada um dos demandantes.
Proc. n.º 1496/02.1TAFAR.S1 -3.ª Secção
Fernando Fróis (relator)
Henriques Gaspar
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