ACSTJ de 14-05-2009
Cúmulo jurídico Fundamentação Factos provados Omissão de pronúncia Nulidade da sentença
I -Não é necessário nem útil que a decisão que efectue o cúmulo de penas constante de condenações já transitadas em julgado enumere os factos provados que integraram a decisão onde foram aplicadas as penas parcelares, mas já é necessário que a decisão que efectue o cúmulo descreva ou resuma todos os factos pertinentes de forma a habilitar os destinatários da decisão e o tribunal superior a conhecer a realidade concreta dos crimes anteriormente cometidos, bem como os factos anteriormente provados que demonstrem qual a personalidade, modo de vida e inserção social do agente, com vista a poder compreender-se o processo lógico, o raciocínio da ponderação conjunta dos factos e da personalidade do mesmo, que conduziu o tribunal à fixação da pena única. II - Embora não seja exigível o rigor e a extensão impostos pelo n.º 2 do art. 71.º do CP, nem por isso tal dever de fundamentação deixa de ser obrigatório, quer do ponto de vista legal, quer do ponto de vista material, sendo que os factores enumerados naquele preceito podem servir de orientação na determinação da medida da pena do concurso – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 291. III - A determinação da pena do cúmulo exige, pois, um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do condenado, de molde a poder valorar-se o ilícito global perpetrado. IV - Com efeito, na fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente não só pelos factos individualmente considerados mas também, e especialmente, pelo conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente (e não como mero somatório de factos criminosos), visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado – ob. cit., págs. 290292. V - Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso. VI - Na consideração dos factos (do conjunto de factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso. VII - Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente. Mas tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral e, especialmente na pena do concurso, os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente. VIII - A decisão que não enumera quaisquer factos e apenas se refere à identificação das decisões condenatórias havidas, indicando os crimes e as datas de ocorrência, bem como as penas aplicadas, mostra-se ferida da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, do CPP, por omissão de pronúncia. Na verdade, tal vício significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas – as questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. IX - Por outro lado, a decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas não se pode reconduzir à invocação de fórmulas genéricas e sem significação concreta; não basta dizer-se, sobre a personalidade dos arguidos, que “o seu percurso criminal é preocupante e revela uma acentuada propensão para o desrespeito das normas de conduta em sociedade que regulam dever-ser jurídico-penal”. Tem antes de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação conjunta dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese.
Proc. n.º 170/04.9PBVCT.S1 -3.ª Secção
Pires da Graça (relator)
Raul Borges
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