ACSTJ de 27-05-2009
Insuficiência da matéria de facto Erro de julgamento Autoria Instigação Cumplicidade Co-autoria Comparticipação Ilicitude Culpa Homicídio qualificado Avidez Motivo torpe Meio insidioso Especial censurabilidade Medida concreta da pena
I -A insuficiência para a decisão da matéria de facto como vício, com as consequências que determina – reenvio para novo julgamento –, não pode ser assimilada à não suficiência dos factos provados para a decisão que esteja em causa, mas, diversamente, à impossibilidade de permitir uma qualquer decisão segundo as várias soluções plausíveis para a questão. Se os factos provados permitem uma decisão, embora diversa da que foi tomada, não existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada mas, eventualmente, se for o caso, erro de julgamento e de integração dos factos provados. II - O art. 26.º do CP, que tomou opção legislativa assumindo construções categoriais da dogmática, define a autoria em quatro espécies, tipos ou modalidades: a autoria imediata; a autoria mediata; a co-autoria e a instigação, que considera expressamente autoria e não apenas simples participação. III - Na distinção entre autoria e simples participação, o conceito legal de autor não coincide com o conceito ontológico ou real, pois que este englobaria apenas como autor o que realiza o facto típico, o “quem” anónimo de Welzel que integra os textos legais, excluindo da sua conceptualização o princípio da acessoriedade limitada, o participante ou “participe”, pois que este pressupõe a existência do facto antijurídico por parte do autor. Por sua vez, a diferenciada responsabilização criminal dos participantes, também não legitima um conceito unitário de autor. IV - Para a distinção entre autoria e participação duas concepções ofereceram um critério de distinção: o conceito extensivo de autor, complementado pela teoria subjectiva da participação, segundo a qual é autor quem age com animus auctoris e participante quem actua com animus socii. V - No conceito restritivo de autor e salientando a contribuição do autor ou a do participante, a doutrina orienta-se na definição do critério de decisão em três direcções: a teoria objectivoformal [em que o decisivo é apenas mas sempre a realização de algum ou de todos os actos executivos previstos no tipo legal], a teoria objectivo-material [em que seria autor quem contribuísse objectivamente da forma mais importante (causa essencial) para o facto], ambas abandonadas, e a teoria do domínio do facto que, provinda do finalismo, defende que, nos crimes dolosos, autor é quem domina finalmente a execução do facto; o controlo final do facto é o critério decisivo da acção. VI - Para Jescheck, é autor quem executa por si próprio todos os elementos do tipo, quem executa o facto utilizando outra pessoa como instrumento (autoria mediata), e quem realiza uma parte necessária de execução do plano global (domínio funcional do facto), ainda que não seja um acto típico em sentido estrito, mas participando em todo o caso da comum resolução criminosa (cf. Tratado de Derecho Penal – Parte General, trad. da 5.ª edição de 1996, págs. 701-702). VII - O domínio do facto, para Roxin (Problemas Fundamentais de Direito Penal, pág. 145 e ss.), podia manifestar-se em três vertentes: o domínio da acção, em que o agente por suas mãos executa o facto, caso do autor imediato; o domínio da vontade própria da autoria mediata, em que o homem de trás (o que formula o propósito criminoso e decide a sua efectivação) domina a vontade do homem da frente (o instrumento, ou executor que executa o facto), por coacção, indução em erro ou âmbito de um aparelho organizado de poder; e o domínio funcional do facto, característico da co-autoria face ao significado funcional da contribuição de cada co-autor, na divisão de trabalho ou repartição de tarefas na concretização da decisão conjunta. VIII - Na teoria do domínio do facto, autor é, em síntese, quem domina o facto e dele é “senhor”, dele dependendo o se eo como da realização típica – distinguindo-se, aliás e por vezes, um domínio positivo do facto (a capacidade de o fazer prosseguir até à consumação) e um domínio negativo (a capacidade de o fazer gorar) –, sendo, pois, o autor a figura central do acontecimento, em que, numa unidade objectiva-subjectiva, o facto aparece como obra de uma vontade que dirige o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objectivo. IX - Embora o conceito do domínio do facto esteja longe de ser unívoco, deve entender-se como um conceito aberto, na expressão de Roxin, referido por Figueiredo Dias, isto é «cujo conteúdo é susceptível de adaptar-se às variadíssimas situações concretas da vida e que só na aplicação alcança a sua medida máxima de concretização». Por isso, o conceito básico do domínio do facto pode e deve ser afeiçoado e precisado segundo as circunstâncias do caso, e nomeadamente à luz das diversas espécies (também legais) de autoria e mesmo dos resultados que devem ser alcançados em tema de doutrina da participação. X - A doutrina do domínio do facto, na dimensão apontada, é a que melhor se harmoniza com os parâmetros da autoria nos crimes dolosos de acção. XI - A co-autoria pressupõe um elemento subjectivo – o acordo, com o sentido de decisão, expressa ou tácita, para a realização de determinada acção típica – e um elemento objectivo – que constitui a realização conjunta do facto, ou seja, tomar parte directa na execução. XII - A execução conjunta, neste sentido, não exige, todavia, que todos os agentes intervenham em todos os actos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, que se destinem a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a actuação de cada um dos agentes seja elemento componente do conjunto da acção, mas indispensável à produção da finalidade e do resultado a que o acordo se destina. XIII - O autor deve ter o domínio funcional do facto; o co-autor tem também, do mesmo modo, que deter o domínio funcional da actividade que realiza, integrante do conjunto da acção para a qual deu o seu acordo e, na execução de tal acordo, se dispôs a levar a cabo. O domínio funcional do facto próprio da autoria significa que a actividade, mesmo parcelar, do co-autor na realização do objectivo acordado se tem de revelar indispensável à obtenção da finalidade pretendida. XIV - A actuação que constitui autoria deve compreender-se em unidade de sentido objectivosubjectivo, como obra de uma vontade directora do facto; para a autoria é decisiva não apenas a vontade directiva, mas também a importância material da intervenção no facto que um co-agente assume. XV - Por isso só pode ser autor quem, de acordo com o significado da sua contribuição objectiva, governa e dirige o curso do facto (cf. Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, ob. e loc. cit.). XVI - A co-autoria fundamenta-se também no domínio do facto; o domínio do facto deve ser, então, conjunto, devendo cada co-autor dominar o facto global em colaboração com outro ou outros. A co-autoria supõe sempre uma “divisão de trabalho” que torne possível o crime, o facilite ou diminua essencialmente o risco da acção. XVII - Na co-autoria a execução é fruto de uma decisão conjunta, em conexão mútua entre as partes de execução do facto a cargo de cada um dos co-autores numa consideração objectiva. XVIII - A decisão deve revelar-se através de acções expressas ou acções concludentes e, por isso, qualquer dos co-autores responde pela totalidade da realização típica (cf. idem, págs. 791-792). XIX - A co-autoria não tem sempre de ser inicial, mas pode ser sucessiva. De todo o modo, a colaboração e a importância que reveste deve poder determinar suficientemente o “se” e o “como” da execução do facto. XX - A forma de comparticipação que se designa por “instigação” está definida (art. 26.º, 4.ª categoria, do CP) como a acção de quem dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução. XXI - Instigador é, pois, aquele que «dolosamente determinar outra pessoa à prática de um facto ilícito típico (doloso)», «quem produz ou cria de forma cabal […] no executor a decisão de atentar contra certo bem jurídico-penal através da comissão de um concreto ilícito-típico»; «o instigador possui o domínio do facto sob a forma de domínio da decisão». O instigador é o «verdadeiro senhor, dono ou dominador da decisão do instigado de cometer o facto» – instigação-determinação que, nos termos do art. 26.º, 4.ª do CP, constitui autoria (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 789-800). XXII -A integração diferencial entre as categorias da autoria (ou como simples participação), mais do que (ou antes) de excursões dogmáticas, há-de resultar dos factos provados e da específica singularidade com que se apresentem em cada situação, no entrelaçar de feixes concretos de relações entre agentes de um determinado facto ilícito-típico. XXIII -Revelando a conjugação factual que a recorrente não se limitou a determinar outrem à prática dos factos mas concertou o plano de execução, orientou a actuação, proporcionou as circunstâncias relativas ao lugar e atraiu aí a vítima, sempre em acordo com os coarguidos, especialmente com o JP, dominando o facto, nas condições da execução, também com domínio funcional em repartição de tarefas, e não apenas com domínio da vontade dos seus comparticipantes, o seu comportamento integra a autoria e, pelo acordo com outrem, na modalidade de co-autoria. XXIV -Os problemas suscitados pela concorrência de circunstâncias ou elementos que se não verificam em simultâneo relativamente aos vários comparticipantes têm solução nos arts. 28.º e 29.º do CP, que estabelecem a regra reconduzível à comunicabilidade de todas as qualidades, relações ou circunstâncias que sirvam para fundamentar ou graduar a ilicitude, e à incomunicabilidade das qualidades, elementos ou circunstâncias que caracterizem ou graduem a culpa (cf., v. g., Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 848 e ss.). XXV -As circunstâncias – exemplos padrão – enunciadas nas als. do art. 132.º, n.º 2, do CP estão concebidas como concretizações de modos de revelação de uma imagem global do facto agravado correspondente a um especial conteúdo da culpa (cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, págs. 26-27). XXVI -A definição do tipo orientador e a função dos exemplos padrão como reveladores de “especial censurabilidade ou perversidade” remetem-nos para o lugar de elementos constitutivos do tipo de culpa. XXVII -Nesta medida, será relativamente à actuação e à manifestação funcional da contribuição de cada co-autor que deve ser verificada, no sentido e imposição do art. 29.º do CP («cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes»), a concorrência de circunstâncias. XXVIII -Nesta perspectiva de enquadramento, não se suscitam dúvidas sobre a concorrência na actuação da recorrente (e nas finalidades que contaminaram a decisão de cometer o crime e na contribuição para a execução) das categorias valorativas da al. d) do n.º 2 do art. 132.º do CP (na redacção vigente ao tempo do factos, e actualmente al. e)) – a avidez («com o objectivo de se libertar definitivamente do marido e de lhe retirar e fazer seus valores e dinheiro, bem como o de beneficiar do prémio de um contrato de seguro, como forma de manter o seu elevado nível de vida, decidiu tirar-lhe a vida») –, e o consequente motivo torpe: por aqui se revela a especial censurabilidade, não obstante não se lhe poder referir a causação de sofrimento à vítima. XXIX -Também na co-autoria o condomínio funcional, tal como vem descrito, integra a recorrente na acção, juntamente com mais duas pessoas, como prevê o exemplo padrão da al. g) (actual al. h) do art. 132.º, n.º 2, do CP). XXX -A actuação da recorrente, definindo os locais e orientando os co-arguidos nos tempos de execução, atraindo a vítima ao local para ser (e onde foi) surpreendida, e conduzindo por comunicações a concretização da armadilha, constitui um meio insidioso que possibilitou a surpresa da actuação dos co-arguidos, integrando a circunstância da al. h) (actual al. i)). XXXI -Por fim, o tempo de formação e a permanência da intenção (persistência da intenção de matar «por mais de vinte e quatro horas»: no caso, «pelo menos em momento anterior a uma semana antes» da data dos factos) revelam, também, especial censurabilidade, a caber na al. i) (actual al. j)). XXXII -Quanto à circunstância fortemente impressiva que vem saliente em relação a todos os arguidos relativa ao modo de execução material do facto (a «violência inaudita e gratuita», na expressão da decisão da 1.ª instância), relativa à culpa («especial censurabilidade», ou mesmo «perversidade») não poderá ser comunicável à recorrente, devendo a desconsideração do exponencial de agravação ter algum reflexo na medida da culpa e do seu efeito como critério de limite na ponderação das especialíssimas exigências de prevenção geral.XXXIII -Deste modo, e com a valoração da decisão recorrida relativamente a todas as restantes circunstâncias atendíveis e vistas as impositivas necessidades de prevenção geral e a jurisprudência anterior do STJ (cf., v. g., Acs. de 02-04-2008, Proc. n.º 4330/07, de 26-032008, Proc. n.º 292/08, de 13-02-2008, Proc. n.º 4729/08, e de 19-04-2006, Proc. n.º 671/06), é de fixar a pena aplicada à recorrente pelo crime de homicídio qualificado pelo qual vem condenada em 21 anos de prisão.
Proc. n.º 58/07.1PRLSB.S1 -3.ª Secção
Henriques Gaspar (relator)
Armindo Monteiro
Pereira Madeira
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