ACSTJ de 27-05-2009
Documentação da prova Inaudibilidade da prova gravada Tradução Irregularidade Assinatura Transcrição Ineficácia da prova Fundamentação Exame crítico das provas Nulidade da sentença Conhecimento oficioso Duplo grau de jurisdição Cúmulo jurídico
I -Havendo deficiências na gravação destinada à documentação da prova em audiência de discussão e julgamento, ainda que comprometendo a sua audição ou perceptibilidade, aquelas não configuram a existência de nulidade – que não se encontra elencada nem nos arts. 119.º e 120.º do CPP nem em outra disposição legal sobre a matéria (art. 118.º, n.º 1, do mesmo diploma legal) – mas sim a de irregularidade, nos termos do n.º 2 do art. 118.º, sujeita ao regime do previsto no art. 123.º, ambos do CPP. II - Tal situação irregular deve ser reclamada durante a audiência, uma vez que, atento o princípio do contraditório, a legitimidade e o interesse em agir do recorrente, sujeito processual, sempre este poderia averiguar da fiabilidade e perceptibilidade da gravação aquando do registo da prova oralmente produzida. III - Na verdade, determina o art. 123.º, n.º 1, do CPP que qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto, ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado. IV - Não incumbe ao STJ averiguar da deficiência ou não das gravações, da sua perceptibilidade, uma vez que se trata de questão de facto, relativa ao objecto de recurso em matéria de facto. V - A apreciação efectuada quanto às invocadas deficiências das gravações é aplicável mutatis mutandis à invocação de deficientes traduções de língua estrangeira por intérprete. Na verdade, somente a falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considera obrigatória, constitui nulidade dependente de arguição, nos termos do art. 120.º, n.º 2, al. c), do CPP. Não ocorrendo falta de nomeação de intérprete, a inobservância legal do acto de tradução fica sujeita ao regime jurídico das irregularidades. VI - A falta de assinatura – concretamente nos documentos onde se encontram as transcrições das escutas telefónicas – não gera ineficácia da prova, pois que «no caso de qualquer das pessoas cuja assinatura for obrigatória não puder ou se recusar a prestá-la, a autoridade ou o funcionário presentes declaram no auto essa impossibilidade ou recusa e os motivos que para elas tenham sido dados» – art. 95.º, n.º 3, do CPP. VII - Antes da vigência da Lei 59/98, de 25-08, entendia-se que o art. 374.º, n.º 2, do CPP não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentavam a decisão, com indicação das provas que serviam para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem que o julgador expusesse pormenorizadamente o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que constituíam a fonte da convicção do tribunal acarretava a nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º do CPP, por violação do art. 374.º, n.º 2, do mesmo diploma legal. VIII - Actualmente, face à nova redacção do n.º 2 do art. 374.º do CPP, é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas. Com efeito, a referida Lei 59/98, de 25-08, aditou a exigência de tal exame, que se manteve inalterada na revisão de 2007, operada pela Lei 48/2007, de 29-08. IX - O exame crítico das provas tem como finalidade impor ao julgador que esclareça quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra. X - Não dizendo a lei em que consiste aquele exame, tem o mesmo de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo. XI - A fundamentação decisória não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à comunidade mais vasta de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controle indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão. Para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do juiz o exame crítico das provas, que é a sua descrição e o juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório, ou seja, a crítica porque umas merecem credibilidade e outras não, impondo que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada. XII - Desde que a motivação explique o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, inexiste falta ou insuficiência de fundamentação para a decisão. XIII - A nulidade da sentença que não contém as menções referidas no art. 374.º, n.º 2, do CPP (art. 379.º, al. a), do mesmo diploma adjectivo) é oficiosamente cognoscível em recurso, uma vez que as nulidades de sentença enumeradas no n.º 1 do art. 379.º do CPP têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades respeitantes aos restantes actos processuais, estabelecendo-se no n.º 2 do mesmo artigo que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso. XIV - Relativamente aos tribunais de recurso, a norma do art. 374.º, n.º 2, do CPP não tem aplicação em toda a sua extensão, não fazendo, nomeadamente, sentido a utilização da parte final de tal preceito (exame crítico das provas que serviram para formar a livre convicção do tribunal) quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo Tribunal da Relação. Na verdade, como se elucida no Ac. deste Supremo Tribunal de 14-06-2007 (Proc. n.º 1387/07 -5.ª), se a Relação fundamentou a decisão, acolhendo, e justificando na parte respectiva, a fundamentação do acórdão do tribunal colectivo que se apresenta como detalhada, as instâncias cumpriram suficientemente o encargo de fundamentar, sendo que a discordância quanto aos factos apurados não permite afirmar que não foi (ou não foi suficientemente) efectuado o exame crítico pelas instâncias. XV - O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2.ª instância, mas tão-somente o exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe tenham sido referidos em recurso e das provas que impõem decisão diversa, e não, indiscriminadamente, de todas as provas produzidas em audiência. XVI - O concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes. Por outro lado, o concurso tanto pode ser constituído pela repetição do mesmo crime como pelo cometimento de crimes da mais diversa natureza. Por outro lado ainda, o concurso pode ser formado por um número reduzido de crimes ou pode englobar inúmeros ilícitos criminais. XVII - A determinação da medida da pena conjunta do concurso – que é feita em função das exigências gerais da culpa e da prevenção – impõe que do teor da decisão conste uma especial fundamentação, só assim se evitando que a medida da pena única surja como resultado da apregoada, e ultrapassada, arte de julgar, de um acto intuitivo, puramente mecânico e, por isso, arbitrário. XVIII - Em caso de cúmulo jurídico de penas, embora não seja exigível o rigor e a extensão da fundamentação nos termos do n.º 2 do art. 71.º do CP, nem por isso o cumprimento de tal dever deixa de ser obrigatório, quer do ponto de vista legal, quer do ponto de vista material, podendo os factores enumerados no citado n.º 2 servir de orientação na determinação da medida da pena do concurso – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 291. XIX - Aduz, ainda, o mesmo Autor que a doutrina alemã discute muito a questão de saber se factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição de dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta. Em princípio impõe-se uma resposta negativa; mas deve notar-se que aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto verdadeiramente não o será, consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração (ob. cit., pág. 292, § 422).
Proc. n.º 1511/05.7PBFAR.S1 -3.ª Secção
Pires da Graça (relator)
Raul Borges
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