ACSTJ de 27-05-2009
Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Recurso da matéria de facto Competência do Supremo Tribunal de Justiça Conhecimento oficioso Direito ao recurso Duplo grau de jurisdição Livre apreciação da prova In dubio pro reo Escutas telefónica
I -Constitui jurisprudência uniforme deste Tribunal a de que o recurso da matéria de facto, ainda que restrito aos vícios referidos no n.º 2 do art. 410.º do CPP (a chamada revista alargada), tem de ser dirigido ao Tribunal da Relação e que da decisão desta quanto a tal aspecto não é admissível recurso para o STJ, ficando precludidas todas as razões que foram ou podiam ser invocadas nesse recurso. II - Esta interpretação colhia apoio na letra do art. 432.º do CPP, na medida em que, após a revisão operada pela Lei 59/98, de 25-08, a al. d) daquele preceito passou a conter a expressão, antes inexistente, «visando exclusivamente o reexame da matéria de direito», e mantém plena actualidade, apesar da modificação contida na Lei 48/2007, de 29-08, agora reportada à al. c) da mesma norma. III - Todavia, ainda que o recurso se limite à matéria de direito, o STJ poderá sempre conhecer dos vícios, mas por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito. IV - O direito ao recurso, enquanto manifestação do direito de defesa, isto é, o direito que os recorrentes têm a ver reapreciada a causa por um tribunal superior, mostra-se assegurado com a interposição de recurso para o Tribunal da Relação, sendo que a tutela constitucional não exige um duplo grau de recurso mas apenas um duplo grau de jurisdição – art. 32.°, n.º 1, da CRP. V - A livre apreciação da prova não é sinónimo de uma operação intelectual puramente caprichosa, subjectiva ou emocional e, logo, imotivável. Está assente numa valoração crítica, conjugada e racional, ligada a máximas do conhecimento científico, a regras de experiência ou a juízos lógico-dedutivos que permitam ao julgador objectivar a apreciação dos factos, o que se torna imprescindível para actuar o direito ao recurso (na perspectiva do recorrente) e sindicar a motivação da decisão (na perspectiva do tribunal superior). VI - Porque é um dos princípios basilares do processo penal, a livre apreciação está sujeita ao controlo do tribunal de recurso, ainda que conheça somente de direito, sempre que a sua preterição for evidente, sem necessidade de outras averiguações probatórias. VII - É sabido que o Tribunal da Relação não procede a um segundo julgamento de facto, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não pressupõe a reanálise pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzida, mas tão-só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido mencionados no recurso e das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas sugiram ou permitam) decisão diversa; é uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o mesmo entende incorrectamente julgados e às razões dessa discordância. VIII - Exactamente por ter presente esta realidade é que a jurisprudência constitucional salienta que quando a decisão recorrida para o STJ é a do Tribunal da Relação a fundamentação que pode estar em causa é a expressa por este e não já a da 1.ª instância. Nesta acepção, é uma fundamentação derivada, sendo-lhe lícito socorrer-se da fundamentação originária para justificar as suas opções. IX - A violação do princípio in dubio pro reo pressupõe um estado de dúvida insanável no espírito do julgador, só podendo ser afirmada quando do texto da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido. Saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito a matéria de direito, mesmo que de revista alargada. X - Assim, se da leitura da decisão não se retirar que o tribunal, colocado perante uma dúvida sobre a prova, optou por uma solução desfavorável ao arguido não se pode concluir pela violação daquele princípio. XI - A investigação que implique a intromissão nos direitos fundamentais só é permitida nos casos previstos na lei, desde que seja exigida para a defesa de valores essenciais e com salvaguarda da proporcionalidade entre os meios empregues e o fim que se propõe alcançar – arts. 18.º, n.ºs 2 e 3, 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, da CRP, 126.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, e 8.º, §§ 1.º e 2.º, da CEDH. XII - As escutas telefónicas, não constituindo meios de prova, mas meios de obtenção de prova, devem ser encaradas como um meio de obtenção de prova de ultima ratio e nunca de prima ou sola ratio ou para se obter o flagrante delito; por essa razão, tem-se salientado a natureza excepcional das escutas telefónicas no contexto dos diversos meios de obtenção da prova, por se ter presente a danosidade social elevada, já que fere o mais íntimo dos segredos do ser humano, cuja protecção emerge do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar. XIII - A cominação estabelecida no art. 189.º para o desrespeito do estatuído nos arts. 187.º e 188.º, todos do CPP, é a nulidade; no entanto, pela diferença qualitativa que existe na previsão destas normas, tem-se distinguido entre os pressupostos substanciais de admissão das escutas (art. 187.º) e as condições processuais da sua aquisição (art. 188.º), para o efeito de assinalar ao vício que atinja os primeiros a nulidade absoluta e a infracção às segundas a nulidade relativa, sanável. XIV - Apesar de aquele preceito se referir genericamente à nulidade, não assume a mesma gravidade a intercepção de conversações efectuadas à revelia de qualquer autorização legal, pelo que o vício não pode deixar de ser sancionado com nulidade absoluta, e a preterição de formalidades processuais na recolha de escutas telefónicas validamente autorizadas, destinadas a documentar a operação e a salvaguardar o sigilo relativamente a elementos que não devem ser utilizados no processo; neste último caso essa inobservância não contende com a validade e a fidedignidade da prova obtida, razão pela qual à preterição dos procedimentos previstos naquele normativo é aplicável o regime das nulidades sanáveis previsto no art. 120.º do CPP. XV - Tendo o acórdão de 1.ª instância apreciado a [alegada] “nulidade das escutas telefónicas”, indeferindo-a, e tendo havido recurso para a Relação, a decisão desta, em sentido concordante, porque tomada em recurso e não pôs termo à causa, é “definitiva”, sendo o acórdão, nesta parte, irrecorrível – arts. 400.º, n.º 1, al. c), e 432.º, al. b), do CPP. Na verdade, tratando-se de questão interlocutória, a lei não lhe confere recorribilidade apenas pela mera circunstância de vir integrada numa decisão que contém outros segmentos, esses sim, recorríveis para o Supremo Tribunal. XVI - O art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, contém a matriz do crime de tráfico de estupefacientes, caracterizada por uma estrutura progressiva abrangendo uma tipicidade de comportamentos em que se pode desdobrar aquela actividade ilícita. Quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e de um tipo agravado, é no primeiro que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta; depois, nos tipos privilegiado e qualificado, vem definir os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos. E só a verificação afirmativa, positiva, desses elementos atenuativo ou agravativo é que permite o abandono do tipo simples. XVII - O tipo legal do art. 25.º do referido diploma legal vai ao encontro da necessidade de evitar que situações efectivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas, o que poderia acontecer se ficassem abrangidas na previsão genérica do art. 21.º. XVIII - O enquadramento naquela norma exige a análise global e concreta de toda a factualidade para que se possa avaliar se a ilicitude do facto criminoso se encontra não só diminuída mas, como a lei impõe, consideravelmente diminuída. Com efeito, a conclusão sobre a considerável diminuição da ilicitude do facto terá de resultar de uma valoração global deste, tendo em conta, não só as circunstâncias que o preceito enumera de forma não taxativa, mas ainda outras que apontem, ou não, para aquela considerável diminuição, v. g., a qualidade e quantidade do estupefaciente, a sua perigosidade, a intenção lucrativa, a duração da actividade, o tipo de actos concretamente praticados ou a existência de estrutura organizativa. XIX - Resultando do quadro factual apurado que: -o arguido LC detinha [peso líquido] “27,498 g de heroína e 15,580 g de cocaína”, que “destinava à venda”, com “intuito lucrativo”; -para o efeito possuía instrumentos próprios dessa actividade, como sejam “balança de precisão” e “produto de corte”; -o arguido NS não só “guardava em sua casa estupefaciente” como também “fazia entregas”, a pedido de um co-arguido; -aquando da busca domiciliária, o arguido NS detinha, no seu quarto de dormir [peso liquido] “5,992 g de cocaína”, acondicionada em “7 embalagens”, que “destinava à venda a terceiros”, utilizando um “telemóvel obtido com ganhos da sua actividade de tráfico e por ele utilizado na mesma”; é patente que não se verificam circunstâncias excepcionais que diminuam, por forma acentuada, a ilicitude do facto, mostrando-se correcta a decisão de condenação dos arguidos pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01. XX - O regime instituído pelos arts. 35.º, n.º 1, e 36.º, n.º 2, ambos do DL 15/93, de 22-01, demarcou-se do previsto no art. 109.º, n.º 1, do CP, pois naquele o objecto a declarar perdido tem apenas que ter servido ou ter estado destinado a servir para a prática de infracção prevista no respectivo diploma legal ou ser produto da actividade delituosa. XXI - Estando demonstrado que o valor monetário apreendido é fruto directo da actividade de tráfico de estupefacientes, nenhum reparo merece a declaração de perda a favor do Estado, que encontra plena justificação à luz do disposto no art. 35.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01. XXII -A jurisprudência deste Tribunal tende a considerar que, na criminalidade punida neste diploma, a perda de objectos a favor do Estado, tratando-se de instrumenta sceleris, depende apenas de um requisito em alternativa – que tenham servido ou que estivessem destinados a servir a prática de uma infracção prevista no diploma; tratando-se de producta sceleris, a declaração de perda depende tão-só de o objecto ser resultado da infracção. Mais, tem entendido que, com a eliminação da 2.ª parte do art. 35.º, se pretendeu ampliar as situações em que a declaração de perda de objectos deverá ocorrer – cf., entre muitos, Ac. de 18-05-2006, Proc. n.º 1571/06 -5.ª.
Proc. n.º 145/05 -3.ª Secção
Soreto de Barros (relator)
Armindo Monteiro
Oliveira Mendes
Santos Cabral (tem voto de vencido quanto à qualificação jurídica da conduta do arguido
NS, que integraria na previsão do art. 25.º do
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