Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 27-05-2009
 Tráfico de estupefacientes Dupla conforme Admissibilidade de recurso Aplicação da lei no tempo Factos genéricos Princípio do contraditório Suspensão da execução da pena Regime concretamente mais favorável Reabertura da audiência In dubio pro reo
I -Numa situação em que: -o primitivo acórdão da 1.ª instância, de 09-07-2007, foi declarado nulo por omissão de exame crítico da prova e substituído por outro, proferido em 13-05-2008, que, tal como o anterior, condenou as arguidas VR e MA, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, nas penas de 7 anos e de 7 anos e 6 meses de prisão, respectivamente; -na sequência de novo recurso, foram aquelas penas reduzidas, por acórdão da Relação de 05-11-2008, para 5 anos e 5 meses e 5 anos e 4 meses, respectivamente; é de aferir o direito ao recurso das arguidas em função do regime vigente ao tempo daquela primeira decisão da 1.ª instância.
II - Com efeito, de acordo com o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP na redacção dada pela Lei 48/2007, de 29-08, em vigor desde 15-09-2007, só é possível o recurso de decisão confirmatória no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão. Ora, tendo as arguidas sido condenadas em penas de 5 anos e 5 meses e de 5 anos e 4 meses de prisão, é indubitável que não seriam admissíveis os recursos face à actual versão.
III - Todavia, face à redacção do mesmo preceito anterior à entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29-08, em que se referia pena aplicável e não pena aplicada, por no caso se estar perante crime punível com pena de prisão superior a 8 anos – em causa está a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, a que cabe a moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão – era admissível recurso do acórdão da Relação para o STJ.
IV - Aliás, este Supremo Tribunal, através do Acórdão de uniformização n.º 4/2009, de 18-02 (Proc. n.º 1957/08 -3.ª, DR I Série, n.º 55, de 19-03-2009), fixou jurisprudência no sentido de que «Nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, é recorrível o acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação, após a entrada em vigor da referida lei, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a oito anos, que confirme decisão de 1.ª instância anterior àquela data».
V - Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.
VI - Com a nova versão do art. 50.º do CP, introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, passou a ser possível a suspensão da execução da pena, reunidos os demais pressupostos, em casos em que tenha sido aplicada pena de prisão até 5 anos. Confrontado com este tipo de situação, nomeadamente em casos de sucessão de leis aplicáveis e face ao disposto no art. 371.º-A do CPP, tem sido entendido por alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal dever conhecer-se logo da possibilidade da concessão ou de negação da pena de substituição, havendo uma outra linha de orientação, que se acolhe, que defende que, na falta de elementos seguros e actualizados, não se deverá tomar posição sobre a questão ou que, face a tal carência de dados, se deverá remeter a decisão para o tribunal de 1.ª instância.
VII - Em concreto, colocando-se neste Supremo Tribunal pela primeira vez a questão da suspensão da execução da pena – na sequência da redução para 4 anos e 6 meses de prisão da pena aplicada à arguida VR –, deve ser adoptada a solução de ordenar a reabertura da audiência na 1.ª instância, a fim de ser ponderada a concessão, ou não, da pena de substituição, com elaboração de relatório social actualizado, através do qual se possa ter uma noção mais precisa e abrangente da personalidade da arguida, bem como da sua inserção familiar, e recolha de demais elementos que se mostrem necessários a essa ponderação.
VIII - A abordagem de eventual violação do princípio in dubio pro reo está balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, com o consequente alargamento da possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, operando de forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.
IX - Tal significa que, à semelhança do que ocorre na análise e exame de verificação dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo referido preceito, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento.
X - Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação da arguida, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e o da presunção de inocência, sendo de ter por definitivamente assente a matéria de facto apurada.
XI - O art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, tem como pressuposto específico a existência de uma considerável diminuição do ilícito; depende de um juízo positivo sobre a ilicitude do facto que constate uma substancial diminuição desta, um menor desvalor da acção, uma atenuação do conteúdo de injusto, uma menor dimensão e expressão do ilícito.
XII - Os pressupostos da disposição respeitam, todos eles, ao juízo sobre a ilicitude do facto no sentido positivo. Com efeito, a aplicação do art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, depende da constatação, face à específica forma e grau de realização do facto, de que o caso se situa forçosamente aquém da necessidade de pena expressa pelo limite mínimo do tipo base, reclamando uma substancial diminuição desta.
XIII - Os índices, exemplos padrão, ou Regelbeispiel, enumerados no preceito, a par de outros, são atinentes, uns, à própria acção típica (meios utilizados, modalidade, circunstâncias da acção), outros, ao objecto da acção típica (qualidade ou quantidade do estupefaciente), ou seja, pertinem todos estes factores ao desvalor da conduta, à execução do facto, fazendo parte do tipo de ilícito, não entrando em acção qualquer consideração relativa ao desvalor da atitude interna do agente, à personalidade deste, ao juízo sobre a culpa.
XIV - Para avaliar da verificação, ou não, do tipo privilegiado do art. 25.º do DL 15/93, de 2201, haverá que proceder à valorização global do episódio, não se mostrando suficiente que um dos factores interdependentes indicados na lei seja idóneo em abstracto para qualificar o facto como menos grave ou leve, devendo valorar-se complexivamente todas as circunstâncias.
XV - O critério a seguir será a avaliação do conjunto da acção tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão (o crime de tráfico é um crime de perigo abstracto) do bem jurídico protegido (saúde pública). Valerá o tipo privilegiado ou atenuado para os casos menos graves, sendo de assinalar a similitude e paralelismo com os pressupostos gerais da atenuação especial da pena, mas quedando-se aqui a “atenuação” em função do juízo de ilicitude, sem intervenção da culpa do agente e da necessidade de pena, presentes no art. 72.º do CP, pois o princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é o da diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.
XVI - O art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, possibilita a aplicação de uma pena cujo limite máximo fica aquém da aplicação à moldura penal do tráfico base das regras da atenuação modificativa da pena do art. 73.º do CP.
XVII - Na comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria são essenciais dois requisitos: urna decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado, e uma execução igualmente conjunta.
XVIII - O co-autor executa o facto, toma parte directa na sua realização, por acordo ou juntamente com outro ou outros, ou determina outrem à prática do mesmo. A co-autoria é a execução colectiva do facto, comunitária, em que cada comparticipante quer causar o resultado como próprio, mas com base numa decisão conjunta e com recurso a forças conjugadas.
XIX - A comparticipação criminosa exige um elemento subjectivo e um outro objectivo. O primeiro reclama uma decisão conjunta – que pode consistir num acordo, expresso ou tácito, ou, pelo menos, numa consciência de colaboração com carácter bilateral – e uma participação na execução do facto criminoso, conjuntamente com outro ou outros, num exercício conjunto do domínio do facto, ou numa contribuição objectiva para a consumação do tipo legal visado, isto é, não é indispensável nem necessário que cada um dos agentes cometa integralmente o facto punível, que execute todos os factos correspondentes ao preceito incriminador, que intervenha em todos os actos a praticar para obtenção do resultado pretendido, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado.
XX - A componente subjectiva «basta-se com o simples acordo tácito, com a simples consciência bilateral, reputado ao facto global, com o conhecimento pelos agentes da recíproca cooperação», não se exigindo que os co-autores se conheçam entre si, na medida em que cada um esteja consciente de que junto a ele vai estar outro (ou outros) e estes se achem imbuídos da mesma ideia – cf. Ac. do STJ de 11-03-1998, Proc. n.º 1133/97 -3.ª, CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 220.
XXI - A cumplicidade é a cooperação dolosa com outro na realização de um seu (dele) facto antijurídico dolosamente cometido. O cúmplice limita-se a favorecer um facto alheio, não toma parte no domínio do facto; o autor não necessita sequer de conhecer a cooperação que lhe presta (a chamada cumplicidade oculta) – cf. Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, tradução de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, ed. Bosch 1981, vol. II, pág. 962. XXII -Na comparticipação criminosa, de que a cumplicidade é um dos modos, «cada comparticipante responde pelo mesmo facto típico, porque todos os comparticipantes concorrem para a prática do mesmo facto. O modo de cooperação é que é diverso; o objecto a que se dirige a cooperação de todos é o mesmo: o facto, o crime». A cumplicidade é uma forma de participação secundária na comparticipação criminosa, e num duplo sentido: de dependência da execução do crime ou começo de execução e de menor gravidade objectiva, na medida em que não é determinante da prática do crime, que seria sempre realizado, embora eventualmente de modo e em tempo, lugar ou circunstâncias diversos. Traduz-se «num mero auxílio, não sendo determinante da vontade dos autores nem participa da execução do crime, mas é sempre auxílio à prática do crime e nessa medida contribui para a prática do crime, é uma concausa do crime» – cf. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, Verbo, 1998, vol. II, págs. 280, e 291-292. XXIII -A cumplicidade experimenta uma subalternização relativamente à autoria, estando-se face a actividade que se fica pelo auxílio, perante uma causalidade não essencial. A infracção sempre seria praticada, só que o seria em outro tempo, lugar ou circunstância – cf. Faria Costa, Formas do Crime, in Jornadas de Direito Criminal, Fase I, CEJ, 1983, pág. 174.
Proc. n.º 484/09 -3.ª Secção Raul Borges (relator) Fernando Fróis Pereira Madeira