ACSTJ de 14-05-2009
Abuso sexual de crianças Crime continuado Pressupostos Culpa Concurso de infracções Crime de trato sucessivo Coito oral Agravante Bem jurídico protegido Lenocínio Menor Tentativa
I -Nos termos do art. 30.º, n.º 2, do CP, a prática repetida do mesmo tipo de crime ou de tipos de crime que protejam o mesmo bem jurídico, desde que executada de forma homogénea e próxima, do ponto de vista temporal, e no quadro de uma mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, constitui um só crime (continuado). II - A razão de ser da unificação de uma pluralidade de condutas radica, pois, na diminuição da culpa, pelo que a mera reiteração criminosa, ainda que homogénea na sua execução, será insuficiente para unificar as diversas condutas, assim como o será uma qualquer situação externa que eventualmente facilite a reiteração, desde que essa facilitação não constitua uma “solicitação” suficientemente forte que envolva ou traduza uma diminuição considerável da culpa do agente. III - Essencial é distinguir entre a ocorrência ou subsistência de uma mesma situação externa que “empurre” o agente para a repetição da mesma conduta, por um lado, e a procura ou organização pelo agente de novas oportunidades para repetir uma conduta anteriormente praticada, por outro. Por outras palavras: há que distinguir entre a reiteração criminosa que resulta de uma situação externa que subsiste ou se repete sem que o agente para tal contribua e aquela que resulta de uma situação procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente. Neste segundo caso, são obviamente razões endógenas que levam à reiteração criminosa e portanto não existe atenuação da culpa, antes uma culpa agravada, estando pois excluído o crime continuado. IV - Acrescente-se que o n.º 3 do art. 30.º do CP, aditado pela Lei 59/2007, de 04-09, não alterou os dados da questão. O que esse número veio estabelecer, aliás de forma algo redundante, não é que nos crimes contra bens pessoais, tratando-se da mesma vítima, se deve sempre unificar as condutas, mas sim que nesses crimes a pluralidade de vítimas é obstáculo a essa unificação; ou seja, nesse tipo de crimes, a continuação criminosa só pode estabelecer-se em torno de cada vítima, e desde que estejam reunidos os demais requisitos do crime continuado, nomeadamente a mitigação substancial da culpa do agente. V - No caso dos autos: -o recorrente PI foi, além do mais, condenado [em 1.ª instância] como autor de nove crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 172.º, n.ºs 1 e 2, do CP (na versão anterior à Lei 59/2007), na pessoa do menor DS, de quatro crimes idênticos na pessoa do menor FS, e também de quatro crimes análogos na pessoa do menor JC; -os factos que estão assentes demonstram que os menores em causa exerciam a prostituição com vários homens, ou acompanhavam os prostitutos, em local notoriamente conhecido da cidade, pelo que era muito fácil ao arguido procurá-los para manter com eles relações sexuais remuneradas; por outro lado, tendo já o arguido mantido relações sexuais remuneradas, ou não, anteriormente, com cada um deles, era-lhe bem mais acessível a abordagem individual para repetir tais actos; havendo vários elementos externos facilitadores dos contactos sexuais, quando estes eram praticados com o mesmo menor e uma vez que foram realizados de forma essencialmente homogénea, em período relativamente próximo (atenta a «actividade» em causa), deve considerar-se, neste caso, que houve um crime continuado por cada uma das vítimas. VI - Trata-se de uma situação peculiar, pois a maioria dos abusos sexuais de menores são praticados sobre vítimas «indefesas», que são violentadas física ou psicologicamente, pelo que o STJ tem muitas vezes entendido que, em regra, existe um agravamento de culpa por cada um dos crimes cometidos, incompatível com o crime continuado. Por isso, nesses casos, tem-se considerado que há um único crime de trato sucessivo (que a moldura penal permite graduar de forma mais intensa) e não um crime por cada contacto sexual. VII - Mas não neste caso particular, pelas suas especiais circunstâncias. Não se pode dizer que “o arguido promoveu activamente a verificação de novas ocasiões favoráveis para que tal sucedesse”, antes que estes menores “ofereciam” os seus favores sexuais em local conhecido da cidade e, desse modo, facilitavam o contacto com os “clientes”, o que diminui substancialmente a culpa destes, embora, como é óbvio, se mantivesse a ilicitude da conduta punida nos termos da lei. Consequentemente, neste caso, é de acolher a figura do crime continuado em relação à reiteração de conduta com os menores DS, FS e JC. VIII - Deve entender-se excluída da previsão típica do n.º 2 do art. 172.º do CP (na redacção anterior à Lei 59/2007) a excitação do pénis do ofendido com a boca do agente, ou seja, a chamada fellatio. IX - O que justifica a agravação estabelecida no n.º 2 do art. 172.º do CP (na redacção anterior à Lei 59/2007) é a maior ilicitude que a imposição à vítima da penetração do seu corpo necessariamente envolve. Desde logo, pelas eventuais (e normais) consequências físicas que pode determinar (dores, lesões). Mas sobretudo pela carga psicológica que o acto envolve. X - É claro que, no tipo legal de crime e nas circunstâncias em análise [em que, quanto ao crime cometido contra o menor SG, a cinco crimes cometidos contra o menor DS e a todos os crimes cometidos contra os menores FS e JC, o recorrente “limitou-se” a introduzir os pénis dos menores na sua própria boca, “chupando-os”], quem comanda o acto, quem tem o domínio do facto, é aquele que “sofre” a penetração, mau grado a vítima assuma sexualmente o papel activo. Mas esse é precisamente o pressuposto da ilicitude: que a vítima assuma um papel sexualmente activo porque é isso que o agente quer, para satisfazer o seu desejo sexual, não o da vítima. É em função da vontade do agente que o acto se desenrola. A “superioridade” da vítima é falsa. Contudo, o acto em si comporta, pelas razões atrás expostas, uma menor lesão para a vítima. E por isso deve ser distinguido daqueles actos em que a vítima é reduzida a um papel puramente passivo. XI - Na verdade, são completamente diferentes actos, como a fellatio, que, sendo com o corpo da vítima, não são no seu corpo, pois não o invadem, antes constituem penetração do corpo do próprio agente. O acto é dentro do corpo do agente, é ele quem sofre a penetração, a invasão do seu corpo, com tudo o que isso pode encerrar de humilhante ou agressivo, limitando-se a vítima a colaborar com ele na realização do seu desejo. O acto não determinará, em princípio, quaisquer consequências físicas no corpo da vítima. Assim, quer do ponto de vista psicológico, quer do ponto de vista simbólico, pelo papel activo que a vítima aí desempenha, não adquire, esse acto, uma carga negativa semelhante ao acto de ser penetrado. XII - Em conclusão, é o especial desvalor de ser penetrado que a lei queria punir no n.º 2 do art. 172.º do CP, na versão anterior à Lei 59/2007. XIII - A entender-se que seria antes a participação num acto de penetração, qualquer que fosse o papel assumido pela vítima, estaria a atribuir-se à incriminação a intenção de tutela de um bem jurídico não propriamente individual (focalizado nas consequências que para a vítima resultam do acto), antes social (o valor que é socialmente atribuído aos actos sexuais em que ocorre a penetração, mesmo alheia), o que não se compagina com a natureza essencialmente individualista ou personalista do direito penal sexual. Com efeito, e como é consensual, o bem jurídico protegido nos crimes sexuais é a liberdade sexual, ou, na sua dimensão mais intensa, a autodeterminação sexual, e não os valores ético-sociais dominantes. Excluída se deve entender, pois, e em conclusão, a fellatio da previsão típica do n.º 2 do art. 172.º (versão anterior) ou do n.º 2 do art. 171.º (versão vigente) do CP. XIV - No que respeita ao crime de lenocínio de menores previsto no art. 176.º, n.ºs 1 e 3, do CP (na versão anterior à Lei 59/2007) e agora no art. 175.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CP (na redacção actual), elemento nuclear da infracção é o fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição por menor. Não suscita grandes dúvidas a interpretação destes conceitos, que se traduzem, o primeiro, na determinação da vontade do menor à prática da prostituição, e os restantes na disponibilização de meios para o seu exercício. Na determinação da vontade deve compreender-se não só a produção da mesma (quando inexistente antes da intervenção do agente), como a sua persistência (mediante essa intervenção). XV - Encontrando-se provado que: -o recorrente AN, que “frequentava”, tal como o menor LD, o P…, local onde se conheceram, propôs ao menor que vivessem juntos, num quarto de uma pensão, a fim de que este último suportasse as despesas inerentes ao arrendamento do quarto e ao sustento de ambos; -o menor aceitou, passando a ser ele, com os rendimentos provenientes do exercício da prostituição, a pagar as despesas com o quarto e com o sustento de ambos; -o recorrente AN apresentou uma vez o menor a um dos co-arguidos nos autos, CS, para que este mantivesse relações sexuais com o dito companheiro, LD, recebendo em troca € 5, não tendo no entanto chegado a concretizar-se qualquer relação sexual entre esse indivíduo e o menor, apesar de ser essa, inicialmente, a intenção de CS; praticou o recorrente uma tentativa de lenocínio, tentativa punível, atento o disposto nos arts. 23.º, n.º 1, e 175.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CP. XVI - Não se pode afirmar que o recorrente tivesse determinado o menor LD a prostituir-se, pois este já se dedicava à prostituição antes de conhecer aquele. É certo que, quando passaram a viver juntos, foi exclusivamente o menor que sustentou o “casal”, com os rendimentos provenientes da prostituição. Mas, embora esse facto pudesse de alguma forma ter intensificado a necessidade de o menor recorrer à prática de actos sexuais venais, para assim obter maiores rendimentos, não pode ser caracterizado como determinação, já que nenhum indício existe de que, de outra forma, o menor teria abandonado a prostituição. Por outras palavras, o arguido mais não fez do que aproveitar-se economicamente da actividade desenvolvida pelo menor, vivendo à custa dele, mas esse aproveitamento não integra o elemento típico fomento do exercício da prostituição, constante do tipo legal do crime de lenocínio de menores. XVII - Mas, tendo-se provado que o arguido apresentou o menor LD a um terceiro, para com ele manter relações sexuais, recebendo em troca desse “serviço” a quantia de € 5, sendo que a relação sexual, porém, não se consumou, esta “apresentação” constitui sem dúvida um acto de favorecimento da prostituição, pois que, dessa forma, o arguido “recrutou”, esporadicamente embora, um cliente para o menor, dirigindo-se este último e o dito cliente para uma pensão, para a prática de actos sexuais remunerados, que, todavia, não vieram a concretizar-se, por razões desconhecidas.
Proc. n.º 36/07 -5.ª Secção
Soares Ramos (relator, por vencimento)
Simas Santos (tem declaração de voto, acompanhando a declaração de voto do Cons.
Santos Carvalho)
Santos Carvalho (tem declaração de voto no que respeita à que
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