Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 18-06-2009
 Pedido de indemnização civil Princípio da adesão Livre apreciação da prova Regras da experiência comum Competência do Supremo Tribunal de Justiça Matéria de facto Ofensa à integridade física agravada pelo resultado Negligência grosseira Crime omis
I -As razões lógicas dos sistemas que admitem o enxerto do pedido cível na acção penal são as mais díspares, mas todas elas se reconduzem, essencialmente, à vantagem da não contradição de julgados, à economia processual e ao interesse do lesado, que, funcionando como auxiliar do juiz, o habilita a melhor avaliar a extensão do dano, se exime a despesas e incómodos, além de que a estrutura do processo penal, se mais simples do que a cível, assegurará justiça mais célere, simples e acessível – cf. Prof. Vaz Serra, in BMJ 91.º/56.
II - No plano substantivo o processo penal recebe por incorporação os pressupostos que fazem nascer, nos moldes do direito substantivo, a obrigação de indemnizar (art. 129.º do CP); no plano da tramitação processual a acção penal rege-se pelos princípios orientadores do processo penal, com especificidades próprias de que são exemplo a ausência da cominação plena ou semiplena para a falta de contestação, a susceptibilidade de as pessoas com responsabilidade civil poderem intervir espontaneamente, a legitimidade do lesado para demandar – entendendo-se como tal todo o que sofreu dano, não tendo que ser necessariamente ofendido, cabendo-lhe, tão-somente, o ónus de sustentar e provar o pedido –, assimilando-o ao assistente, a circunstância de não ser obrigatória a constituição de advogado em certas condições, e o direito que assiste ao julgador de remeter os seus sujeitos processuais para os tribunais civis atenta a complexidade do pedido ou para fixação da parte não liquidada da indemnização, e mesmo de a fixar provisoriamente em certo contexto, indicando, ainda, os casos de excepção à regra da adesão obrigatória – arts. 78.º, 73.º, 74.º, 76.º, 80.º, 82.º, 82.º-A, e 83.º, todos do CPP.
III - Com o CPP87 o enxerto cível adquiriu estatuto de acção cível, sem prejuízo do princípio da adesão.
IV - Nele vigora o princípio do pedido, fazendo-se impender sobre o demandante o ónus de alegação de factos de que o juiz não conhece no exercício das suas funções, pedido esse, em certos casos, despido de especiais formalidades de alegação – cf. n.º 3 do art. 77.º do CPP – mas, no mais, adstrito a uma certa estrutura e oportunidade de apresentação.
V - Por força do princípio da adesão o demandante junta, pois, a sua concreta pretensão à enunciada na acusação, que, com a sua, constitui fundamento do enxerto, fundindo-se em uma só causa de pedir, simples ou complexa; por força da teoria da substanciação, consagrada no nosso direito, o objecto da acção cinge-se ao pedido, definido através de certa causa de pedir, enquanto acto ou facto concreto, idóneo, donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer – art. 498.º do CPC e Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 111.
VI - O facto penalmente relevante enquanto pressuposto da responsabilidade civil por facto ilícito é o resultante da actividade probatória do tribunal apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção probatória, nos termos do art. 127.º do CPP.
VII - Ao contrário do que sucede no sistema de prova legal, em que a convicção probatória se faz através de provas legalmente pré-fixadas, atribuindo-se a cada uma o significado abstractamente prescrito por lei, ao qual o juiz está vinculado e de que não pode divergir (por isso se apelida de sistema de prova vinculado), no sistema de prova livre o juiz valora objectivamente o facto, de acordo com a sua individualidade histórica, tal como foi adquirido no processo através dos diversos meios de prova, diligências e alegações, sem esquecer aquilo que, comprovados certos factos, pode inferir, porque é normal suceder (id quod plerumque accidit), sem grande margem de erro, ou seja, por força das regras da experiência que funcionam como “critérios generalizantes e tipificantes de inferência factual”, “…com validade no contexto atípico em que surgem…”, e que mais não são do que “índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância”, orientadores dos caminhos da investigação, oferecendo probabilidades conclusivas, mas nada mais do que isso, no ensinamento lapidar do Prof. Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, 1967/68, pág. 48.
VIII - Não são, pois, meios de prova, instrumentos de obtenção de prova, antes raciocínios, juízos hipotéticos, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, donde o seu carácter atípico, como se doutrinou no Ac. deste Supremo de 07-01-2004, Proc. n.º 03P3213, permitindo atingir continuidades imediatamente apreensivas nas correlações internas entre factos, conformes à lógica, sem incongruências para o homem médio e que, por isso, legitimam a afirmação de que dado facto é natural consequência de outro, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça, por não estar contaminado pela possibilidade física mais ou menos arbitrária, impregnado de impressões vagas, dubitativas e incredíveis.
IX - As regras da experiência são aquelas que, como ensina, por sua vez, o Prof. Vaz Serra, «são ou o resultado da experiência da vida ou de um especial conhecimento no campo científico ou artístico, técnico ou económico e são adquiridas, por isso, em parte mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, em parte mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria» – in Provas (Direito Probatório Material), BMJ 110.º/97, citando Nikisch –, que permitem fundar as presunções naturais, não abdicando da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil (cf. Ac. do STJ de 09-02-2005, Proc. n.º 04P4721).
X - É pacífico o entendimento por parte do STJ de que ao recorrente é vedado erigir na fundamentação do recurso anomalias ao nível da matéria de facto, embora possa sugeri-las e este Tribunal declará-las oficiosamente, se tal se mostrar imprescindível ao dizer do direito (cf. os recentes Acs. proferidos nos Procs. n.ºs 06P0303, em 22-04-2009, e 145/05, em 27-05-2009), mantendo-se o STJ ainda na reserva de competência fixada nos arts. 434.º e 432.º, n.º 2, al. c), do CPP, reforçando, também, este último a competência para o conhecimento restrito, exclusivamente, da matéria de direito atinente a acórdãos finais condenando em pena superior a 5 anos.
XI - Este Supremo Tribunal não se intromete, por regra, antes acata a matéria de facto fixada, como tribunal de revista que é, estando-lhe vedado sindicar a assente nas instâncias, porque não teve acesso às provas que desfilaram perante o colectivo, concentradas na audiência, imediação com elas, mas em sede de recurso pode exercer a adequada censura sobre a legalidade das provas de que o tribunal se serviu para fixar a matéria de facto, designadamente se elas envolvem violação da lei, ou sobre o grau de convicção necessário para a decisão (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 347), particularmente a adequação das considerações tecidas pelo colectivo como conformes às regras da experiência para sustentar a sua convicção. A este Tribunal não está vedado reexame sobre se o raciocínio usado pelo julgador incidente sobre certos factos consequencia, segundo a ordem lógica das coisas, um espaço factual sem soluções de descontinuidade, com utilidade à causa, capaz de fundar um facto suficientemente credível.
XII - Tendo em consideração que: -num plano objectivo, a causa da derrocada da varanda do 1.º andar do edifício, consistiu na «má colocação da armadura de ferro no betão» da laje da varanda, um «problema de betão armado», consequência da «colocação da armadura na parte inferior da varanda, quando o devia ser na parte superior», em desrespeito do projectado pelo arguido E, colocação da autoria dos trabalhadores contratados pelo arguido R, sob instruções deste, não portadores dos indispensáveis conhecimentos técnicos, em termos de prevenção de dano e segurança na construção, trabalho esse havido «como violação de uma regra básica»;-num plano subjectivo, o arguido E, técnico portador da exigível licenciatura em engenharia civil, ao projectar a obra a pedido do arguido R e assinar o termo de responsabilidade assumiu o encargo de direcção técnica, impendendo sobre ele o dever jurídico de a acompanhar a par e passo (mesmo que o R não lhe tivesse comunicado o início da obra, não constando que o haja impedido de a fiscalizar); -ao omitir o dever de acompanhamento da obra, sobretudo nas suas fases mais cruciais, designadamente enchimento de fundações e lajes aos vários níveis e locais, o arguido E colocou em risco a segurança da obra, pois que o erro técnico que motivou o arrastamento da varanda para a queda não foi evitado porque aquele não compareceu no momento da colocação das estruturas de betão armado nem fiscalizou essa colocação a posteriori, removendo o risco de lesão de bens jurídicos alheios; -essa conduta omissiva, própria de quem tem sobre si um especial dever de vigilância, de garantia de que o resultado lesivo não ocorre, torna o agente responsável, nos termos do art. 10.º, n.º 2, do CP; -o arguido E não agiu com o dever de cuidado que as circunstâncias do caso impunham, adequado a prevenir o dano, dever esse concretizado pelas normas jurídicas aplicáveis, complementado por normas prudenciais e usuais da profissão, o que significa que actuou com negligência – art. 15.º, n.º 1, do CP; -por seu turno, o arguido R iniciou, prosseguiu, introduziu alterações à obra projectada inicialmente e finalizou-a, à revelia do arguido E, que não contactou e ao qual se substituiu na respectiva direcção, representando a possibilidade de que a edificação, sobretudo as estruturas de betão, em particular as varandas, se processasse à margem das boas e aconselháveis regras de construção, uma vez que os trabalhadores por si contratados não dispunham dos conhecimentos indispensáveis, agindo sem o cuidado imprescindível, não comunicando o início da obra ao arguido E, sequer exigindo a presença de outro técnico qualificado ou o recurso a empreiteiro da construção civil, atenta a dimensão da obra, não curando de indagar, como se impunha e era capaz, se tinham sido cometidos erros que comprometessem a segurança, incorrendo em negligência; -a assunção de responsabilidades para cujo desempenho o agente não tem os conhecimentos e as capacidades necessárias, sendo esta falta conhecida (bastaria a mera cognoscibilidade do agente), implica tipicidade da conduta (cf. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, II, UCP, 2004, pág. 388, e Paula Ribeiro de Faria, anotação 17.ª ao art. 148.º do CP, in Comentário Conimbricense do Código Penal, 1999); -do facto material da queda advieram para o demandante L lesões muito graves, das quais resultou a privação da possibilidade de falar, de se locomover, de trabalhar, das suas capacidades intelectuais, ao fim e ao cabo a impossibilidade de usar o corpo, bem como perigo para a própria vida; -por sua vez, a demandante M ficou diminuída de forma grave na sua capacidade de trabalho, pois ficou com uma IPP de 23%; ambos os arguidos cometeram um crime de ofensa à integridade física com negligência grave, p. e p. pelos arts. 143.º, als. b) e c), e 148.º, n.º 3, do CP82, e pelos arts. 144.º, als. b) e d), do CP95, e 148.º, n.º 3, do CP na versão actual, agravando o resultado as lesões corporais advindas ao conjunto dos lesados.
XIII - O apurado facto material, histórico, tornado imutável, sobre ele se formando caso julgado, fundamenta os pressupostos em que se apoia a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliniana enunciados no art. 483.º do CC. E a responsabilidade civil do arguido R tem, ainda, a suportá-la a relação de comissão estabelecida com os trabalhadores contratados, nos termos do art. 500.º, n.ºs 1 e 2, do CC.
XIV - Não temos como certa a limitação, no domínio do direito não patrimonial, do quantum indemnizatório ao fixado para o dano da morte, porque em certos casos, sobretudo naqueles em que o lesado está condenado a permanecer numa situação irreversível enquanto for vivo, em estádio vegetativo, totalmente dependente de terceiros, em sofrimento permanente, tanto para si como para familiares, sem expectativa de recuperação, manda a justa avaliação das coisas, um justo critério de bom senso e de percepção da realidade, que serve de padrão, de guia no recurso à equidade para fixação do dano não patrimonial, que possa exceder-se esse quantitativo, em nome de uma justa e adequada tutela da integridade física e moral.
XV - O resultado morte funciona apenas como um ponto de referência, mas não inultrapassável. Sem se cair no exagero, nada impede que se arbitre uma indemnização por danos não patrimoniais superior ao montante fixado pelo dano da morte, ao nível jurisprudencial, e sem quebra da sua matriz uniformizadora, sublinhou-se no Ac. deste Supremo Tribunal de 03-09-2008, Proc. n.º 2389/08 -3.ª.
XVI - Tendo a qualidade de vida do demandante ficado gravemente afectada, a sua esperança de vida reduzida a um estádio quase ou mesmo vegetativo, temporalmente comprometida, tudo isto acompanhado por um intenso e permanente sofrimento, dor física e psíquica (não exclusivamente a si circunscrita), o quantum doloris é elevadíssimo e o pretium doloris –a fixar em função da extensão e gravidade dos danos, do grau de culpa dos lesantes e da condição económica destes (desafogada) e do lesado e das demais circunstâncias do caso (art. 494.º do CC) –, sob o modelo de compensação (pois não pode ser avaliado pecuniariamente ou alvo de medida monetária), há-de corresponder-lhe em igual medida.
XVII - Por isso, uma avaliação justa do valor da integridade corpórea, física, enquanto direito de personalidade, com protecção na lei ordinária e fundamental (arts. 70.º do CC e 24.º e 25.º da CRP), rejeita uma compensação miserabilista, mostrando-se sem a mais leve razão para reparo o montante indemnizatório de € 45 000 pelo dano não patrimonial sofrido pelo demandante L, e merecendo também a nossa concordância a condenação ao pagamento de parte da indemnização em forma de renda, aqui com a natureza vitalícia, atenta a duração previsível do dano, assumindo expressão pecuniária coincidente com o salário mínimo nacional a arbitrar a terceiro que dele cuide enquanto for vivo – art. 566.º, n.º 2, do CC.
XVIII - A indemnização pelo dano patrimonial futuro deve corresponder a uma quantificação que, segundo o curso normal das coisas ou de acordo com as circunstâncias do caso concreto, à luz de um juízo prudencial, baseado na lógica e no bom senso, usando juízos de probabilidade e de verosimilhança, ou seja, mitigado pela equidade, a corrigir, em regra por defeito, os diversos critérios de cunho instrumental de que usualmente se lança mão.
XIX - Abrangendo um longo período de tempo, conhecendo-se de antemão as dificuldades de previsão, o apelo a critérios de equidade propicia um aceitável e justo critério, consagrado no art. 566.º, n.º 3, do CC, o que se mostra inconciliável com fórmulas matemáticas ou com o recurso a tabelas financeiras ou aos critérios usados para cálculo das pensões laborais ou de usufruto.
XX - Pode considerar-se um dado assente ao nível da jurisprudência e doutrina que o facto de se não exercer, à data do acidente, uma profissão não obsta ao cálculo da indemnização por dano patrimonial futuro, compreendendo-se neste as utilidades futuras e as simples expectativas de aquisição de bens; o dano pode resultar tanto da privação do que o homem tem como do impedimento de aquisição daquilo que estava a caminho de ter (Prof. Castro Mendes, Do Conceito Jurídico de Prejuízo, pág. 45).
XXI - Vem este Supremo Tribunal entendendo que a indemnização por danos futuros decorrente de incapacidade permanente deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não irá auferir e que se extinga no final do período provável de vida activa, que seja susceptível de garantir, durante essa vida, as prestações periódicas correspondentes ao rendimento perdido, factores tais como a idade da vítima e as suas condições de saúde, o seu tempo provável de vida activa, a natureza do trabalho que realizava, o salário auferido, deduzidos os impostos e as contribuições para a segurança social, o dispêndio relativo a necessidades próprias a depreciação da moeda, a evolução dos salários, as taxas de juros do mercado financeiro, a perenidade ou transitoriedade de emprego, a progressão na carreira profissional, o desenvolvimento tecnológico e os índices de produtividade, capital este que, sendo entregue imediatamente, deve ser objecto de uma dedução, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia, dedução que é usual situar-se em ¼ – cf. Ac. do STJ de 29-10-2008, Proc. n.º 3373/08 -3.ª. XXII -A natureza da responsabilidade civil entre os responsáveis demandados é solidária, nos termos do art. 497.º, n.º 1, do CC, mas o direito de regresso entre eles existe na precisa medida das respectivas culpas e das consequências que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis – n.º 2. XXIII -No caso concreto, é desigual o grau de culpa que os arguidos manifestaram, e em maior grau a do R, ilidindo os factos a presunção de culpa por igual, sendo de fixar em 30% a do demandado R e em70% ado E.
Proc. n.º 81/04.8PBBGC.S1 -3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Santos Cabral