ACSTJ de 18-06-2009
Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Conhecimento oficioso Intenção de matar Matéria de facto Perícia médico-legal Valor probatório Erro de julgamento Legítima defesa Animus defendendi Excesso de legítima defesa
I -Continua em vigor o Acórdão n.º 7/95 do plenário das secções criminais do STJ de 19-091995 (DR I-A, de 28-12-1995, e BMJ 450.º/71) que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito. II - A determinação da intenção do agente, por respeitar à matéria de facto, não cabe no âmbito do recurso para o STJ. III - O juízo técnico-científico que, nos termos do art. 163.º do CPP, é subtraído à apreciação do julgador é o que foi recolhido segundo as regras do art. 151.º e ss. do mesmo diploma legal. O tribunal não se encontra vinculado aos exames/pareceres médicos emitidos fora do âmbito daqueles normativos, pois os relatórios médicos assim emitidos não consubstanciam uma verdadeira prova pericial, mas antes e apenas prova documental, podendo, por isso, ser livremente apreciados e valorados pelo tribunal. IV - Efectuados exames médicos às faculdades mentais da arguida fora do âmbito do art. 151.º e ss. do CPP e não sendo os resultados dos mesmos coincidentes, porque o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses não estabelece qualquer prioridade para qualquer deles, o tribunal tem legitimidade para solicitar esclarecimentos aos peritos médicos, ficando legitimado a fundar a sua convicção no relatório que se lhe apresentar mais sólido. V - De todo o modo, estando-se perante discordância atinente à matéria de facto, não pode a mesma ser objecto de sindicância pelo STJ. VI - O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP. VII - A consagração legal da legítima defesa no CP mais não é do que a explicitação do princípio constitucional fixado no art. 21.º da CRP, que estabelece que «Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública». VIII - A legítima defesa apresenta-se como uma causa de exclusão da antijuridicidade do facto, tendo por base uma prevalência que à ordem jurídica cumpre dar ao justo sobre o injusto, à defesa do direito contra a sua agressão, ao princípio de que o direito não deve nunca recuar ou ceder perante a ilicitude. IX - Independentemente das dúvidas que possam existir sobre a questão de saber que bens ou interesses estritamente individuais é que se devem considerar incluídos no direito de legítima defesa, todos concordam que ali se incluem a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade, o domicílio e o património (neste sentido, cf. Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, pág. 318). X - Constitui legítima defesa, nos termos do art. 32.º do CP, o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores, não pré-ordenada – ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime –, actual, no sentido de, tendo-se iniciado a execução, não se ter verificado ainda a consumação, e necessária, isto é, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa adequado – menos gravoso, por a todo o direito corresponderem «limites imanentes» – a sustar o resultado iminente – cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 45 e 59. XI - São, pois, pressupostos da legítima defesa: a actuação em defesa de uma agressão e o elemento subjectivo a que a doutrina dá o nome de animus defendendi (a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima). São requisitos da agressão: a ilegalidade (no sentido de o seu autor não ter o direito de a praticar, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou de se tratar de um inimputável), a actualidade (no sentido de se estar a realizar, em desenvolvimento ou iminente; a agressão inicia-se – já é actual – quando, colocando-nos numa perspectiva jurídico-penal, a pudermos considerar como acto de execução de uma determinada tentativa) e a falta de provocação; e requisitos da defesa: a impossibilidade de recurso à força pública, a necessidade e a racionalidade do meio. XII - A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão e, em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir. Deve ajuizar-se objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido – cf. Ac. do STJ de 18-12-1996, Proc. n.º 115/96 -3.ª. XIII - Sendo a circunstância de o agente ter praticado o facto para repelir a agressão actual e ilícita de que está a ser sujeito passivo um dos elementos constitutivos da legítima defesa, ou seja, que tenha agido com o intuito de defesa, não se verifica aquela causa de exclusão da ilicitude quando o tribunal dá como provado que o arguido agiu com o intuito de ofender corporalmente o visado – cf. Ac. do STJ de 16-04-1997, Proc. n.º 1255/96 -3.ª, SASTJ, n.º 10, Abril de 1997, pág. 97. XIV - Destinando-se a legítima defesa apenas a impedir ou repelir a agressão, compreende-se e exige-se que o defendente só utilize o meio considerado, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão. Como refere Maia Gonçalves (in CP anotado, pág. 167), «Não pode porém, ser imposto ao agredido defendente o uso de meios desonrosos, v. g. a fuga, quando sejam meio adequado para evitar a agressão, tanto mais que isso precludiria também a função de prevenção geral da legítima defesa. Assim entende a doutrina autorizada – cfr. Direito Penal do Prof. Figueiredo Dias, Tomo I, pág. 396-397, havendo também jurisprudência neste sentido». XV - Por meio utilizado deve entender-se não só o instrumento, objecto ou arma, mas também o próprio tipo de defesa. Por isso, para se averiguar da adequação do meio de defesa, deve ter-se em consideração as circunstâncias concretas de cada caso (designadamente o bem ou interesse agredido, o tipo e intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade física do agressor e do agredido e os meios de defesa disponíveis). Trata-se de um juízo objectivo, segundo o exame das circunstâncias concretas de cada caso, feito por um homem médio colocado na situação do agredido. XVI - Como se refere no Ac. deste Supremo Tribunal de 19-07-2006, Proc. n.º 1932/06 -3.ª, «O juízo sobre a adequação da defesa e dos meios de defesa, é um juízo objectivo e ex ante, no sentido de que o juiz se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes». XVII - Meios adequados para impedir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes e eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor serão considerados desnecessários e, assim, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido. XVIII - Relativamente ao elemento subjectivo (o animus defendendi), entende-se – com grande parte da doutrina e da jurisprudência – ser exigível o intuito ou a vontade de defesa por parte do defendente (embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, p. ex. indignação, vingança e ódio – v. g. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 46; Leal Henriques-Simas Santos, CP anotado, pág. 335; e Acs. do STJ proferidos nos Procs. n.ºs 41982, 42682 e 42837 in www.dgsi.pt). Porém, parte da doutrina considera que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da situação de legítima defesa, ou seja, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação. Assim, face a uma agressão actual e ilícita, deve ter-se por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa – cf., neste sentido, Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, pág. 318; Cavaleiro de Ferreira e Fernanda Palma, A justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos, 1990, pág. 611. XIX - A intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser resultante de factos objectivos que a indiciem, tal como a intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira. XX - Por outro lado, não haverá causa de exclusão da ilicitude, segundo o disposto no art. 32.º do CP, no caso do agente fraudulentamente se ter colocado na situação objectiva de legítima defesa mediante provocação deliberada e tendo desencadeado o ataque neste sentido. XXI - O excesso de legítima defesa consiste na verificação de uma acção que, pressuposta uma situação de legítima defesa, se materializa na utilização de um meio desnecessário para repelir a agressão. Assim, desde logo, para que haja excesso de legítima defesa têm de se verificar os requisitos da legítima defesa.
Proc. n.º 1248/07.2PAALM.S1 -3.ª Secção
Fernando Fróis (relator)
Henriques Gaspar
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