ACSTJ de 18-06-2009
Assistente Recurso penal Qualificação jurídica Interesse em agir Burla qualificada Falsificação Documento Crime continuado
I -Numa situação em que: -encerrado o inquérito, o MP deduziu acusação contra o arguido pelos factos que descreveu no libelo acusatório e imputou-lhe a prática «na forma continuada [de] um (1) crime de Falsificação de Documento, p.p. no art. 256-1. al. a) e 3 e [de] um (1) crime de Burla Qualificada, p.p. nos arts. 217-218-2. al. a) e ainda nos termos dos arts. 30-2 e 79, todos do C.P.»; -notificada da acusação, a assistente veio dizer que, ao abrigo do disposto no n.º 2, al. a), do art. 284.º do CPP, aderia à acusação do MP, cujo teor deu «por integralmente reproduzido», aceitando, pois, de forma expressa e inequívoca, os exactos termos da acusação pública e, portanto, também a qualificação dos factos como constituindo o arguido autor de um crime continuado de burla e de um crime continuado de falsificação de documento; -prosseguindo o processo, não está documentado que a assistente, depois disso, designadamente no decurso da audiência de julgamento, tenha tomado qualquer iniciativa no sentido da alteração dessa qualificação, como lho permitia o art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, ou que o próprio arguido – que, em sede de contestação, ofereceu o merecimento dos autos – tenha alegado factos susceptíveis de a ela conduzir; -a assistente vem agora, numa fase tardia do processo, pugnar por uma qualificação jurídico-penal dos factos substancialmente diferente daquela que até ali sobraçou – comportamento que redunda, ao fim e ao cabo, em instigar o STJ a que ele próprio cometa a nulidade prevista no art. 425.º, n.º 4, com referência aos arts. 379.º e 358.º, n.º 3, ambos do CPP (estando sem hipótese a aplicação do n.º 4 do art. 424.º, por a assistente não ter requerido a realização de audiência), admitindo que o pedido, no caso concreto, envolve apenas a alteração da qualificação e não também uma alteração dos próprios factos da acusação (que ficaram integralmente provados) que teria de ser qualificada como uma alteração substancial, em conformidade com o disposto na al. f) do art. 1.º do CPP; tal questão não pode proceder, por formalmente não poder ser atendida. II - Para além disso, a concreta pretensão que a assistente formulou na acusação contra o arguido foi a de que devia ser condenado pela prática, na forma continuada, dos crimes de falsificação de documento e de burla. O objecto do processo, mais concretamente o objecto do julgamento, no que ao MP e à assistente dizia respeito, ficou aí fixado: os factos levados à acusação (cf. art. 339.º, n.º 4, do CPP). Esses factos não sofreram alteração; a recorrente nada requereu, em tempo útil, na fase processual própria, para tornar viável e atendível essa alteração da qualificação (cf. art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP); o tribunal da 1.ª instância não viu motivos para a modificar e julgou integralmente procedente aquela pretensão (quanto aos factos e quanto ao direito). III - Deste modo, não se pode afirmar que a assistente, tendo visto satisfeita integralmente a pretensão penal que deduziu, tem agora necessidade deste recurso, isto é, interesse em agir, para ver tutelada essa mesma pretensão. A que agora apresenta é uma pretensão nova e substancialmente diferente e foi formulada manifestamente fora de tempo, razão por que não pode ser atendida, levando à rejeição do recurso, nos termos dos arts. 420.º, n.º 1, al. b), e 414.º, n.º 2 (falta de condições para recorrer), ambos do CPP. IV - Relativamente à questão do crime continuado, segundo Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, tomo I, pág. 1030 e ss.), a exigência de uma proximidade ou afinidade espáciotemporal entre as violações plúrimas não tem, pelo menos em via de princípio, relevo especial. O mesmo, de resto, já ensinava Eduardo Correia, o autor moral da figura do crime continuado, tal como positivada entre nós, quando, em Direito Criminal, II, pág. 211, escrevia: «Restará acentuar que a exigência – … – de uma qualquer conexão no espaço e no tempo das actividades continuadas mal pode, …, assumir qualquer relevo especial … a conexão de espaço e tempo só poderá ter relevância na medida em que afaste aquela conexão interior». V - Figueiredo Dias refere ainda (ob. cit., pág. 1031) que compatível com a figura do crime continuado, tal como se encontra plasmada no art. 30.º, n.º 2, do CP, parece tanto a hipótese de à série de comportamentos presidir um dolo conjunto – as diversas realizações típicas devem, no essencial, ter sido planeadas previamente pelo agente – ou um dolo continuado – o agente planeou que repetiria a realização típica caso a ocasião se proporcionasse –, como a de se estar perante uma pluralidade de resoluções. O requisito decisivo é o de que o crime seja dominado por uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente – requisito substantivo este que se há-de estender à «inteira relação de continuação». Ou, como diz Eduardo Correia, (ob. cit., pág. 209), essencial à continuação criminosa será, «verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com a norma». VI - Configura-se um crime continuado se, perante o quadro factual apurado, há que reconhecer que foi a persistente situação de domínio sobre a contabilidade e a tesouraria da assistente, de que o arguido se serviu, com total êxito, para praticar a primeira infracção, que o arrastou para a reiteração criminosa, com apreciável diminuição da sua culpa, na medida em que, com a passagem incólume sobre as primeiras contravenções «se amoleceram e relaxaram as reacções morais ou jurídicas que o frenavam e inibiam». VII - «Quando um delinquente se encontra de novo ante uma determinada situação que, convidando à realização de um certo crime, já uma vez foi por ele aproveitada com êxito, há-de sem dúvida sentir-se fortemente solicitado a reiterar a sua conduta criminosa, e só muito dificilmente se manterá no caminho do direito». E «(…) se, de facto, não conseguir furtar-se à tentação, deverá conceder-se que a medida da sua culpa é sensivelmente menor do que a daquele outro que, em condições diferentes e porventura difíceis de vencer, renova a sua actividade» (cf. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, pág. 247). VIII - Esta ideia da culpa – «o ter de responder pelas qualidades juridicamente desvaliosas da personalidade que fundamentaram um facto ilícito-típico e nele se exprimem» (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 525) – sensivelmente diminuída, em função da persistência de uma situação exógena motivadora da reiteração criminosa não repudia nem contradiz a possibilidade de o arguido ter agido com dolo intenso, que tem a ver com a «atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito». IX - Não há dúvida de que o arguido para, de início, desprezar, violando-o, o dever de se conformar de acordo com o direito, isto é, de agir de modo a não lesar ou pôr em perigo os bens jurídicos radicados na esfera da sua entidade patronal, agiu com elevado grau de culpa e com dolo intenso, precisamente porque, através e com o processo que concebeu, evidenciou total desrespeito pela confiança que aquela nele depositou. Mas, depois, tendo violado uma primeira vez essa confiança e, depois, uma outra, e tendo verificado que, afinal, os poderes/deveres de fiscalização da sua actividade não funcionavam ou não eram suficientemente rigorosos de molde a dar pela falcatrua engendrada, a conclusão adequada é a de que a repetição dessa situação foi tornando cada vez menos exigível a sua actuação de acordo com o direito. Tal conclusão assenta na ideia de inexigibilidade, ínsita no conceito de crime continuado, no ponto em que se pode dizer que o homem médio, «normalmente fiel ao direito», teria, como o arguido, sucessivamente claudicado.
Proc. n.º 4145/03.7TDLSB.L1 -3.ª Secção
Sousa Fonte (relator)
Santos Cabral
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