ACSTJ de 18-06-2009
Reincidência Pressupostos Acusação Insuficiência da matéria de facto
I -São pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, «por si só ou sob qualquer forma de participação»: -ser o crime agora cometido doloso; -ser este crime, sem a incidência da reincidência, punido com pena de prisão efectiva superior a 6 meses; -que o arguido tenha antes sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efectiva superior a 6 meses, por outro crime doloso; -que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos [este prazo suspende-se durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coacção, de pena ou de medida de segurança]. II - Além daqueles pressupostos formais, a verificação da reincidência exige ainda um pressuposto material: que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. III - À reincidência – melhor, ao afastamento da eventual prescrição da reincidência – interessam a data da prática do crime anterior (e não a da sentença condenatória) e a data da prática do crime actual. IV - Desconhecendo-se as datas em que os crimes anteriores foram praticados e as da detenção e da colocação do arguido em liberdade não é possível concluir que, descontado o tempo em que esteve preso, não decorreram mais de 5 anos entre a prática dos crimes anteriores e do actual, como erroneamente se fez na decisão recorrida. V - Podendo a reiteração criminosa resultar de causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas – caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena por não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto –, e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente, antes exige uma «específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor» (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 28-022007, Proc. n.º 9/07 -3.ª, de 16-01-2008, Proc. n.º 4638/07 -3.ª, de 26-03-2008, Procs. n.ºs 306/08 -3.ª e 4833/07 -3.ª, de que foi retirado o trecho transcrito, de 04-06-2008, Proc. n.º 1668/08 -3.ª, e de 04-12-2008, Proc. n.º 3774/08 -3.ª). VI - Tem sido sufragada, sem dissidências, pelo STJ a doutrina segundo a qual «o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa [homogénea ou específica], exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa. Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (…) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. Mas já relativamente a factos de diferente natureza [reincidência polítropa, genérica ou heterogénea] será muito mais difícil (se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível. Desta maneira, …, é… a distinção criminológica entre o verdadeiro reincidente e o simples multiocasional que continua aqui a jogar o seu papel» – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 268. VII - Em concreto, estando em causa crimes de natureza muito diferente, não bastava alinhar o percurso criminoso do arguido. Impunha-se um especial cuidado na descrição dos factos e circunstâncias que, ligando entre si o cometimento dos diversos crimes, indiciassem que a sucumbência agora verificada foi, é, consequência de uma qualidade desvaliosa enraizada na personalidade do arguido e não fruto de causas fortuitas, acidentais, exclusiva ou predominantemente exógenas que caracterizam a pluriocasionalidade – cf. Ac. do STJ de 04-12-2008. VIII - Ora, o crime anterior indicado na acusação (roubo) e o agora reiterado (tráfico de estupefacientes) são de natureza diferente, quer em função dos bens jurídicos violados, quer porventura em função da forma de execução. A acusação, porém, é completamente omissa quanto à forma de execução do primeiro, bem como quanto aos fins e motivos que presidiram à respectiva prática. Por isso que aquela “íntima conexão”, não podendo retirar-se automaticamente da condenação anterior, teria de assentar num conjunto de factos cuja avaliação e ponderação abalizasse o juízo decisivo de que o recorrente, ao traficar haxixe, não se sentiu suficientemente advertido ou intimado com aquela pesadíssima condenação para se manter fiel ao direito ou que, pelo contrário, o conjunto das circunstâncias que rodearam a vivência do arguido depois de colocado em liberdade condicional, não autorizando aquele juízo de culpa agravada, apenas indicia mera pluriocasionalidade. IX - Padece de insuficiência de factos, sendo, por isso, manifestamente infundada (art. 311.º, n.º 3, al. d), do CPP), a acusação que fundamenta a reincidência apenas na prática do crime anterior, fazendo-a derivar da anterior condenação como sua consequência automática, sem arrolar nenhum facto específico capaz de indiciar o pressuposto material – qualquer relação, radicada na personalidade do arguido, entre o crime de roubo e o de tráfico de estupefacientes, uma vez que a gravidade objectiva de um e de outro não basta. X - Em caso de insuficiência factual da acusação, se o tribunal a quo alargar a investigação para além dos limites de facto traçados por aquela estará a violar, além da garantia constitucional consagrada no art. 32.º, n.º 5, da CRP, o art. 339.º, n.º 4, do CPP e a tornar nula a decisão de procedência que vier a firmar, nos termos dos arts. 359.º e 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo Código. XI - Assim, nestes autos, é, pois, na acusação que radica de forma processualmente relevante a insuficiência factual, quer para completo e inequívoco preenchimento dos pressupostos formais da reincidência, quer para a integração do respectivo pressuposto material. E a consequência dessa insuficiência é a de ter de ser julgada manifestamente infundada, com a consequente e correspondente revogação do acórdão recorrido, por a ter julgado procedente.
Proc. n.º 159/08.9PQLSB.S1 -3.ª Secção
Sousa Fonte (relator)
Santos Cabral
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