ACSTJ de 25-06-2009
Mandado de Detenção Europeu Princípio do reconhecimento mútuo Formalidades Sistema de Informação de Schengen In dubio pro reo Recusa obrigatória de execução Recusa facultativa de execução
I -O mandado de detenção europeu, executado com base no princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais, para fins de procedimento criminal ou cumprimento de pena ou medida de segurança, e regulamentado na Lei 65/2003, de 23-08, em obediência à Decisão-Quadro 2002/584/JAI, de 13-06, do Conselho da União Europeia, veio substituir o processo de extradição, que se mostrou incapaz de, por forma agilizada, mercê da abertura de fronteiras e da livre circulação de pessoas, responder aos problemas de cooperação judiciária entre Estados. II - Tendo como antecedente o programa de execução do reconhecimento mútuo de decisões penais do Conselho Europeu, reunido em Tampere, aprovado em 30-11-2000, o MDE constituiu a primeira concretização no âmbito do direito penal do princípio do reconhecimento mútuo, havido como pedra angular da cooperação judiciária: tem subjacente uma ideia de mútua confiança, sem embargo do respeito pelos direitos fundamentais e princípios de direito de validade perene e afirmação universal. III - Assim, desde que uma decisão seja tomada por uma autoridade judiciária competente à luz do direito interno do Estado membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, o que significa que as autoridades do Estado onde a decisão deve ser executada devem causar-lhe o mínimo de embaraço. IV - A sindicância judicial a exercer no Estado receptor é muito limitada, sem abandono, contudo, do respeito por direitos fundamentais, produzindo a decisão judiciária do Estado emitente efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada pela autoridade judiciária nacional (cf. Ricardo Jorge Bragança de Matos, in RPCC, Ano XIV, n.º 3, págs. 327-328, e Anabela Miranda Rodrigues, in O Mandado de Detenção Europeu, RPCC, ano 13.º, n.º 1, págs. 32-33). V - O MDE rege-se, para além do respeito pelos princípios da confiança, cooperação mútua e celeridade, por um critério de suficiência, ou seja, o Estado da execução não deve precisar de mais informações do que aquelas que figuram no formulário pré-estabelecido, e também por uma eficiência de teor quase automático, na medida em que só em casos taxativamente limitados se possam erguer barreiras de inexecução. VI - Do mandado de detenção devem constar as informações enumeradas no art. 3.º da Lei 65/2003, de 23-08, além da identidade e nacionalidade da pessoa procurada, os factos penalmente relevantes, entre os quais a descrição das circunstâncias em que a infracção foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação da pessoa procurada, devendo ser traduzido numa das línguas oficiais do Estado membro da execução. VII - A enunciação dos factos é fundamental ao exercício do direito de recusa, seja ela obrigatória ou facultativa – arts. 11.º e 12.º da referida Lei –, relevando, essencialmente, para fins de verificação de amnistia, do princípio ne bis in idem, do decurso dos prazos de prescrição, da renúncia ao princípio da especialidade, do princípio da territorialidade, etc.. VIII - A descrição dos factos no formulário deve ser tão sucinta quanto possível e consignar apenas dados indispensáveis para apreensão do MDE pela autoridade judiciária de execução, sendo de evitar a transcrição completa de peças processuais, neste sentido se pronunciando a Procuradoria Geral da República, GDDC, in Manual de Procedimentos Relativos à Emissão de Mandado de Detenção Europeu. IX - Em ordem a uma maior celeridade processual, pela simplificação burocrática que importa ao esquema interestadual de cooperação, a inserção da indicação no Serviço de Informação Schengen produz os mesmos efeitos de um MDE, garantindo a supressão dos controles de fronteiras comuns (art. 95.º da Convenção de Aplicação do Acordo Schengen, de 19-061990), não dispensando, todavia, a ulterior emissão de mandado. X - O princípio ne bis in idem, que o recorrente aparenta invocar, só funciona com relação a casos julgados: nessa medida, o Estado membro de execução, desde logo por razões de justiça material e respeito pela pessoa humana, sindica o direito fundamental de prestar contas uma só vez, em nome de uma culpa só uma vez afirmada, intrometendo-se nas condições da entrega, obrigatoriamente, nos termos do disposto no art. 11.º, al. b), da Lei 65/2003, de 23-08 e, de modo facultativo, do art. 12.º, n.º 1, al. d), do mesmo diploma legal, por força de uma absoluta ou mitigada reserva de soberania que nesses preceitos é reconhecida. XI - Da conjugação dos arts. 12.º, n.º 1, al. d), e 11.º, al. b), da Lei 65/2003, de 23-08, resulta que o princípio ne bis in idem, numa particular exigência de rigor, só funciona como causa de recusa de entrega quando puder concluir-se, com segurança, que o procurado foi definitivamente julgado pelos mesmos factos e em condições que impeçam o posterior exercício da acção penal, só assim se violando o caso julgado penal. XII - A expressão «Por facto que motiva a emissão» e o termo «infracção» em uso nos arts. 11.º, al. a), e 12.º, n.º 1, al. a), da mencionada lei significam, segundo Figueiredo Dias (Direito Penal – Parte Geral, 2004, I, pág. 248), o facto complexo, formado pelo tipo de ilícito e de culpa, enquanto pressupostos categoriais sistemáticos mínimos, expressões de dignidade penal tipicizada, o que reforça a ideia de que condutas parcelares integrantes do conjunto não constituem óbice à entrega e nem traduzem uma violência à condição pessoal do recorrente. XIII - Fora disso, um desvio a essa teleologia seria transformar o tribunal da execução do mandado em tribunal de julgamento, sobrepondo-se a este, dissociando-se da função do MDE enquanto instrumento simplificado de entrega de pessoas, de combate célere e eficaz na luta contra a criminalidade internacional, cada vez mais sofisticada e com ramificações de controle mais complexo. XIV - O princípio ne bis in idem assenta, ainda, na necessidade de segurança jurídica, como limitação ao poder punitivo, assim como na ideia de que a cada indivíduo será aplicada a correspondente e suficiente pena (princípio da proporcionalidade), e é respeitado tanto pelo TPI, como pelos tribunais ad hoc, para os crimes cometidos no Ruanda e na ex-Jugoslávia, inscrevendo-se no conceito de respeito e protecção das liberdades individuais. XV - E é um princípio vigente não só a nível nacional (verticalmente) mas também a nível transnacional, ou seja, horizontalmente, com tradução nos arts. 54.º a 57.º, cap. 3, da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen. XVI - No âmbito da EU a regulação do princípio ne bis in idem tem como antecedente, mais recuadamente, a Convenção Europeia n.º 70, de 28-05, e, recentemente, a Convenção entre os Estados, aberta à assinatura dos Estados membros, e que, por Resolução da Assembleia da República n.º 22/95, de 12-01-1995, Portugal ratificou. XVII - Estando em causa pedidos de cumprimento concorrentes de MDE há lugar ao cumprimento do art. 23.º, n.º 3, da Lei n.º 65/2003, de 23-08, que dirime o conflito, podendo solicitar-se parecer ao Eurojust para a decisão a proferir. XVIII - A circunstância de penderem dois processos em diferentes Estados membros (Espanha e Itália) não é razão para Portugal se recusar a cooperar com a justiça do Estado membro emitente, por não se tratar de res judicata o seu objecto, pela simples e evidente razão de que nos dois processos ainda não foi proferida decisão.
Proc. n.º 1087/09.6YRLSB.S1 -3.ª Secção
Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral
|