ACSTJ de 25-06-2009
Esgotamento do poder jurisdicional Sentença Correcção da decisão Excesso de pronúncia Nulidade da sentença Fundamentação Cúmulo jurídico Fórmulas tabelares
I -Princípio elementar e básico de direito adjectivo é o de que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – n.º 1 do art. 666.º do CPC, aqui aplicável ex vi art. 4.º do CPP. II - Possibilita a lei, porém, a correcção oficiosa ou a requerimento da sentença, para correcta observância dos seus requisitos, desde que a correcção não incida sobre qualquer das omissões ou falhas integrantes de nulidade, com previsão no art. 379.º, bem como para rectificação de qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial – art. 380.º. III - Daqui decorre estar vedado ao juiz alterar o decidido, suprir as nulidades da sentença (a menos que a decisão não admita recurso), bem como proceder a qualquer correcção que importe modificação essencial. IV - Numa situação em que o tribunal a quo, após realização de audiência tendo em vista o conhecimento superveniente de concurso de crimes e depois da prolação do respectivo acórdão, no qual o arguido foi condenado na pena conjunta de 10 anos de prisão, na sequência de requerimento apresentado por aquele, solicitando a correcção do acórdão, por não consideração no cúmulo efectuado de penas aplicadas a crimes integrantes do concurso, entendeu reformular o cúmulo jurídico, com prolação de novo acórdão, nele tendo incluído duas penas não consideradas no acórdão objecto do pedido de correcção, do que resultou o agravamento da pena conjunta para 10 anos e 6 meses de prisão, dúvidas não restam de que violou o instituto da correcção da sentença e o princípio geral de direito adjectivo atrás enunciado, segundo o qual proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz. V - Tais anomias consubstanciam um claro excesso de pronúncia, o que inquina o acórdão proferido na sequência do pedido de correcção formulado pelo arguido da nulidade prevista na parte final da al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ou seja, torna-o inválido – n.º 1 do art. 122.º do mesmo diploma. VI - Princípio de matriz constitucional em matéria de decisões judiciais é o princípio da fundamentação, consagrado no art. 205.º, n.º 1, da CRP, o qual se traduz na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão – art. 97.º, n.º 5, do CPP. VII - Tal princípio, relativamente à sentença penal, acto decisório que, a final, conhece do objecto do processo, traduz-se numa fundamentação reforçada que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender os juízos de facto e de direito assumidos pelo julgador e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantais de defesa – art. 32.º, n.º 1, da CRP. VIII - De acordo com o n.º 2 do art. 374.º do CPP, a fundamentação da sentença faz-se através da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. IX - A decisão que visa o cúmulo jurídico de penas aplicadas em sentenças já transitadas em julgado, neste e noutros processos, ou seja, a determinação de uma pena conjunta, englobadora de penas já definitivamente aplicadas, conquanto assuma indiscutivelmente a natureza de sentença, configura uma decisão diferente da sentença tal qual esta é definida na al. a) do n.º 1 do art. 97.º e estruturada no art. 374.º, ambos do CPP. X - Tal circunstância conduz, necessariamente, a que aquela decisão não esteja sujeita a todos os requisitos previstos no art. 374.º, que relativamente a alguns deles não seja exigível o seu preciso e rigoroso cumprimento e que, no que concerne a outros, a sua aplicação haja de ser feita com as necessárias adaptações. XI - É o que sucede com os factos provados e não provados constantes das sentenças condenatórias aplicadoras das penas a cumular e com a indicação e exame crítico das provas em que o julgador se baseou para nesse sentido decidir, não sendo necessária a sua consignação (transcrição), como impõe o n.º 2 daquele artigo, sendo suficiente enumerar os crimes em concurso e as respectivas penas, com indicação das datas da sua prática, das condenações e do trânsito em julgado, suposta, obviamente, a presença nos autos de certidões (narrativas completas) daquelas sentenças. XII - Exigir a transcrição da enumeração daqueles factos e a transcrição da indicação e exame crítico daquelas provas, sob pena de nulidade da sentença, seria enveredar por um formalismo excessivo, desnecessário, inimigo da economia e da celeridade que o processo penal deve ter. XIII - No entanto, atento o concreto desiderato da decisão de cúmulo de penas, bem como o critério legal norteador da determinação da pena conjunta, consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente – n.º 1 do art. 77.º do CP –, após a análise destes factores, deve o julgador dar a conhecer as específicas razões que determinaram o concreto quantum da pena conjunta. XIV - Como se consignou no Ac. deste Supremo Tribunal de 16-11-2005 (CJSTJ, XIII, tomo 3, pág. 210), a fundamentação da pena conjunta não se deve confundir com a fundamentação de cada uma das penas singulares, visto que na fixação da pena conjunta releva a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos reflecte uma personalidade propensa ao crime, ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido. XV - Não basta, pois, para correcta fundamentação da sentença o simples apelo, sem mais, à personalidade do condenado, acompanhado do uso de fórmulas tabelares, como o número, a natureza e a gravidade dos crimes, desacompanhadas dos elementos de facto efectivamente considerados na efectuação do cúmulo jurídico. XVI - Resultando do exame do acórdão recorrido que: -na decisão proferida sobre a matéria de facto, o tribunal a quo não indicou as datas em que os crimes em concurso foram perpetrados, com excepção dos crimes objecto do presente processo, nem as datas do trânsito em julgado das decisões que condenaram o arguido nas penas objecto do cúmulo jurídico efectuado, tendo-se limitado à asserção genérica de que todas aquelas decisões transitaram em julgado; -nele não é feita qualquer menção sobre se, para além dos crimes em concurso, o arguido cometeu ou não outros; -a fundamentação da pena conjunta imposta circunscreveu-se a «Além disso, tem-se ainda em atenção a personalidade evidenciada pelo arguido e os factos praticados na sua globalidade, impondo-se aqui realçar que os ilícitos criminais pelos quais o arguido foi condenado foram de natureza idêntica, todos relacionados com a falsificação de documentos e com a prática de crimes de burla. Contudo, a conduta ilícita do arguido desenrolou-se num espaço de tempo de apenas cerca de um ano, não evidenciando condutas ilegais anteriores relevantes. Apreciou-se ainda a integração familiar e social do aqui arguido. A pena única há-de ser, assim, fixada tendo como máximo o cúmulo material de 25 anos e o limite mínimo de 3 anos de prisão. Tudo visto e ponderado considera-se adequada a fixação da pena única de 10 (dez) anos de prisão»; o acórdão recorrido enferma de nulidade resultante de insuficiente fundamentação – al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.
Proc. n.º 537/03.0PBVRL -3.ª Secção
Oliveira Mendes (relator)
Maia Costa
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