ACSTJ de 03-06-2009
Consumo de estupefacientes Decisão contra jurisprudência fixada Recurso de decisão contra jurisprudência fixada Consumo médio individual Inexistência Alteração legislativa Republicação de diploma
I -A decisão recorrida rejeitou o requerimento para julgamento em processo sumaríssimo, por considerar que a detenção de produto estupefaciente para consumo, em quantidade superior a 10 doses individuais médias diárias, constitui apenas uma contra-ordenação e não o crime do art. 40.º do DL 15/93, de 22-01. II - Com esta posição, a decisão recorrida assume explicitamente que não segue a jurisprudência fixada, no acórdão deste STJ para fixação de jurisprudência n.º 8/2008, de 25-06, publicado no DR 146, Série I, de 05-08-2008, segundo a qual: «Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só «quanto ao cultivo» como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias». III - Dizem os n.ºs 1 e 3 do art. 446.º do CPP que, no caso de “qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele [STJ] fixada”, este Supremo Tribunal “pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada”. Assim, a lei indica que a regra é a de que a jurisprudência fixada deverá ser seguida, se necessário ordenando-se a sua observância. Surgindo como excepção, a eventualidade do seu desrespeito, no caso de a jurisprudência em apreço ser de considerar ultrapassada. IV - Só um condicionalismo superveniente, em relação à altura da prolação do acórdão para fixação de jurisprudência, poderá atingir a jurisprudência fixada. Para que a jurisprudência fixada possa ser considerada ultrapassada, importa que “os juízes na conferência constatem que a questão jurídica é de novo controvertida, porque há argumentos novos e ponderosos que justificam o reexame da jurisprudência fixada” (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1193). V - Tendo passado em revista a argumentação aduzida, na decisão recorrida, para se desrespeitar o acórdão deste STJ n.° 8/2008, não se vê que algo de novo e especialmente relevante possa levar a rever a posição adoptada no acórdão referido. VI - O DL 15/93, de 22-01, relativo ao “Tráfico e consumo de estupefacientes” criou um tipo de crime matricial, o do art. 21.º, com referência ao qual se previram os tipos derivados dos arts. 24.º, 25.º e 26.º. Estes, distinguem-se sobretudo pela adição de circunstâncias qualificativas agravantes, pela diminuição sensível da ilicitude e pela circunstância de o agente traficar para consumir, respectivamente. No art. 40.º do diploma previu-se o crime de consumo de estupefacientes, num capítulo, o IV, reportado a “Consumo e tratamento”, e por isso é que, no art. 21.º citado, a propósito da descrição dos comportamentos que integram o tipo, se acrescentou, “fora dos casos previstos no art. 40.º”. Portanto, a problemática do consumo era tratada de modo privilegiado à parte, mantendo-se embora numa área de criminalização. VII - A Lei 30/2000, de 29-11, no seu art. 28.º, revogou o art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, “excepto quanto ao cultivo”. Ao mesmo tempo, previu o consumo como actividade ilícita, mas em termos contra-ordenacionais, no seu art. 2.º. Só que, segundo o n.º 2 do dito art. 2.º, “Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias”. VIII - Assim, por um lado pretendeu-se deslocar a reacção ao fenómeno do consumo para a área das contra-ordenações, mas, por outro, circunscreveu-se bastante o círculo de comportamentos considerados relevantes, para efeito de se beneficiar de uma reacção sancionatória diferente. IX - A partir daqui, suscitaram-se fundadas dúvidas sobre o regime a aplicar, aos casos em que houvesse detenção só para consumo, e de quantidades de estupefaciente superiores ao necessário para o período de 10 dias, à luz do Mapa Anexo à Portaria 94/96, de 26-03. As opiniões divergiram tanto na jurisprudência como na doutrina, desde quantos entenderam ter-se operado não só uma descriminalização, como uma total despenalização do consumo ou detenção para consumo (sempre excluído o caso do cultivo), a quantos consideraram que estaria em causa uma contra-ordenação, mas sempre, e independentemente da quantidade de droga detida. Finalmente, já se considerou que o art. 21.º e, eventualmente, até com mais probabilidade, os arts. 25.º ou 26.º, se aplicariam também a casos de consumo, estando em causa quantidades superiores a 10 doses diárias. X - De todo o exposto decorre que a opção do acórdão para fixação de jurisprudência foi no sentido de o art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, ter ficado só parcialmente revogado, mantendo-se em vigor na parte não prevista no art. 2.º da Lei 30/2000, de 29-11. Ou seja, mantendo-se a punição como crime, do cultivo, aquisição ou detenção da droga só para consumo, em quantidades superiores ao correspondente, segundo a Portaria citada, a 10 doses diárias médias. XI - Nove meses depois da prolação do “assento”, o legislador entendeu por bem proceder a mais uma alteração, concretamente a 16.ª, do DL 15/93, de 22-01. Fê-lo através da Lei 18/2009, de 11-05, cujo art. 3.º diz: “É republicado em anexo, que é parte integrante da presente lei, o Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com a redacção actual”. XII - O Anexo citado no art. 3.º é efectivamente republicado, mas não se limita a traduzir as modificações que a Lei 18/2009 introduziu, e que tiveram lugar só nos arts. 15.º e 16.º e nas tabelas I-A e II-A, anexas ao DL 15/93, de 22-01. Republica o art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, com uma redacção que não é a que está em vigor, e que a Lei 18/2009 não modificou. XIII - Dispensando qualquer comentário a esta disciplina, tendo em conta o que pudesse representar em termos de técnica legislativa, ou as consequências que daí pudessem advir, interessa apurar se, para efeitos do presente recurso, a aludida modificação do art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, na republicação do diploma efectuada pela Lei 18/2009, de 11-05, pode ter alguma repercussão. Parece claro que não. XIV - O art. 165.º, n.º 1, al. c), da CRP atribui competência legislativa à Assembleia da República em matéria penal. A Lei 18/2009, de 11-05, que não versa exactamente matéria penal, republica um diploma que inclui matéria penal. Terá resultado da iniciativa de Deputados, traduzindo-se num projecto de lei, ou do Governo, traduzindo-se numa proposta de lei, de acordo com o art. 167.º da CRP. Os projectos ou propostas de lei são agendados, discutidos e votados, na generalidade ou na especialidade, à luz do art. 168.º da CRP. XV - Se não houve iniciativa legislativa, discussão e votação, da alteração da redacção do art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, a republicação de uma redacção diferente do preceito, sem mais, é um acto inexistente, como acto legislativo. Só pode ser pois ignorada, por se tratar de uma alteração de um diploma legislativo operada por quem não tem nenhuns poderes para tal. XVI - Mas se houve projecto ou proposta de lei, discussão e votação quanto à matéria da alteração do art. 40.º focado, e tal alteração não foi incluída no art. 1.º da Lei 18/2009, de 11-05, é porque houve rejeição da iniciativa de alteração. Daí que a publicação de uma redacção do art. 40.º, tida por actual, mas que se afasta da redacção que o Parlamento não quis modificar, e portanto devia ser mantida na republicação, será na mesma um acto inexistente enquanto acto legislativo. Só pode ser pois ignorada, por se tratar de uma alteração de um diploma legislativo que terá sido operada por quem não tem nenhuns poderes para tal. XVII - O art. 3.º da Lei 18/2009, de 11-05, não tem ele mesmo qualquer conteúdo normativo. A republicação do DL 15/93, de 22-01, que esse art. 3.º anuncia, é um acto organizativo que se não propõe obviamente redefinir o direito, e simplesmente tornar mais acessível o texto da lei.
Proc. n.º 21/08.5GAGDL.S1 -5.ª Secção
Souto Moura (relator) **
Soares Ramos
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