ACSTJ de 03-06-2009
Processo respeitante a magistrado Ministério Público Difamação Processo de averiguações Processo disciplinar Causas de exclusão da ilicitude Liberdade de expressão Direito de crítica Princípio da proporcionalidade Princípio da necessidade
I -Na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objectiva, caem fora da tipicidade de incriminações como a difamação, os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, e bem assim sobre os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do MP, as decisões e o desempenho político dos órgão de soberania (Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, págs. 232 e ss.). II - Por “crítica objectiva” deve entender-se a valoração e censura crítica, enquanto se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, que não serão atingidos na sua honra pessoal [enquanto cientistas, artistas, desportistas, etc.] ou cuja honra e consideração não é atingida com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica, sendo certo que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da verdade das apreciações subscritas, e o direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas (Costa Andrade, op. cit.). III - São ainda de levar à conta da atipicidade, os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou da prestação em exame [o crítico que estigmatizar uma acusação como «persecutória» ou «iníqua» pode igualmente assumir que o seu agente, normalmente um magistrado do MP teve, naquele processo, uma conduta «persecutória» e «iníqua» ou que ele foi, em concreto «persecutório» ou «iníquo»] (Costa Andrade, op. cit.). IV - Atingem, porém, a honra e consideração pessoal, os juízos que percam todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que legitimaria a crítica objectiva (Costa Andrade, op. cit.). V - Tal como na liberdade de imprensa, assim também no discurso jurídico se encontram, com frequência, situações de colisão entre a liberdade de expressão e os direitos individuais, a exigir uma ponderação dos bens jurídicos conflituantes. VI - Numa clara opção em prol da liberdade de expressão nos tribunais, estabelece o art. 154.º, n.º 2, do CPC que “não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”. VII - A interpretação deste preceito sai enriquecida se for iluminada pela perspectiva da “crítica objectiva”, por ser fácil de surpreender uma clara similitude entre o critério da “crítica objectiva” e o “uso de expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”. VIII - O autor do discurso judiciário não pode olvidar os interesses em causa, aproveitando a oportunidade de apresentação duma peça jurídica para, desviando-se do seu fim próprio, produzir ataques à honra e consideração devidas à contra-parte, numa clara descontinuidade do plano lógico-conceitual em que actua; neste caso, estaremos perante uma típica conduta do crime de difamação. IX - Poderemos, todavia, falar de atipicidade se, ainda que de forma contundente, o autor do escrito se refere aos factos praticados pela contra-parte que tenha por ilícitos, conforme o princípio consagrado no n.º 1 do art. 31.º do CP: “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”. X - As ofensas à honra e consideração são atípicas quando se contenham nos limites do exercício da crítica a factos; fora desse âmbito serão típicas, mas hão-de ter-se por justificadas, quando resultem do cumprimento dum dever ou do exercício dum direito se não violarem os princípios da proporcionalidade e da necessidade. XI - Age no cumprimento dum dever imposto por lei, o que determina a exclusão da ilicitude da conduta, nos termos do art. 31.º, n.º 2, al. c), do CP, o inspector do MP nomeado para proceder à instrução do processo de averiguações que descreve a factualidade disciplinarmente censurável que apurou, ainda que tais factos, cuja autoria foi atribuída ao inquirido, sejam passíveis de ofender a honra e consideração do assistente. XII - Num processo de averiguações, é de exigir ao instrutor que aja com imparcialidade, na medida em que lhe compete sopesar os factos e qualificá-los à luz das infracções disciplinares, mas tem de se admitir que, tendo o relatório como finalidade habilitar a entidade com poder disciplinar a decidir, o seu autor possa utilizar uma argumentação e uma linguagem mais incisiva, mais enérgica, na formulação do juízo crítico, com vista a pôr em relevo a incidência disciplinar dos factos.
Proc. n.º 828/08 -5.ª Secção
Arménio Sottomayor (relator) **
Souto Moura
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